sábado, 14 de maio de 2016

A involução social, política, moral e ética de um governo ilegítimo


Não é preciso esperar um mês, sequer uma semana, para fazer uma avaliação do governo ilegítimo. Cinco horas depois da notificação pelo Senado, o presidente interino deixou claro seu compromisso com a dilapidação das políticas e das instituições de proteção e garantia de direitos, de proteção social e de combate à corrupção.

A composição ministerial do novo governo chega a ser uma afronta inominável à população brasileira: um time composto por 100% de homens brancos, 78% milionários, 31% donos de rádio e TV, 31% citados na Operação Lava Jato mostra a que veio o coronel da velha república. Ao escolher como lema “ordem e progresso” (os ideais de Benjamin Constant e dos fundadores da república de e para poucos - fazendeiros, ilustrados positivistas, maçons e militares), o governo ilegítimo deixa claro que a ordem burguesa conservadora, elitista e opressora prevalecerá de agora em diante, lançando o país no século 19. Ordem burguesa, para ficar claro, é aquela estrutura policial-judicial-estatal que, em nome da lei, sufoca, reprime e, no limite, elimina todo o opositor. Não é à toa que os pitbulls globais, por exemplo, já vomitam nos noticiários da emissora oficial do golpe expressões do tipo “desordeiros” ou “baderneiros” (em relação aos movimentos sociais e manifestações contra o governo) para justificar a repressão.

         No campo dos direitos humanos, quero sublinhar, tivemos uma regressão de quase meio século. Desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assistimos no mundo inteiro uma ampliação das políticas públicas de defesa, garantia, proteção e promoção de direitos. No Brasil, mesmo que tardiamente, desde o governo Sarney, passando pela Constituição Federal de 1988, depois no governo FHC (com a criação de órgãos, programas, projetos e políticas de direitos humanos) e a ampliação e consolidação dessas políticas nos governos Lula e Dilma, tivemos a construção de uma sólida política de estado de direitos humanos. Agora, ruborizados de vergonha, assistimos, numa canetada e de forma violenta, a extinção dos ministérios da Igualdade Racial, das Mulheres, da Juventude, dos Direitos humanos. Na prática, um colossal retrocesso em relação aos direitos de mulheres, jovens e negros, e mais especificamente, dos quilombolas, povos de matriz africana, povos e comunidades tradicionais, população LGBT, grupos vítimas de tráfico de pessoas e tortura, entre outros.

Chama a atenção o fato de se localizar justamente no Ministério da Justiça o novo órgão que cuidará desses temas. O atual titular da pasta da justiça (?), que era secretário de segurança de São Paulo, autorizou a invasão das escolas e a prisão de adolescentes que as ocupavam, protestando contra a máfia da merenda. Além disso, já foi advogado de Eduardo Cunha, o inominável, e do PCC (Primeiro Comando da Capital) (veja aqui). Recentemente, disse à imprensa que determinadas manifestações populares são atos de guerrilha (veja aqui). Será mera coincidência essa estreita relação do novo governo com o governo Alckmin? Seria uma prévia do projeto dos tucanos com os peemedebistas para 2018?

É bom lembramos, aqui, Hannah Arendt: primeiro, a violência destitui a fala, no caso, das minorias. Depois, vêm todas as outras formas de domínio e de opressão. Esses grupos historicamente invisibilizados e vulnerabilizados da sociedade brasileira passam, de agora em diante, a serem definitivamente excluídos e extirpados do estado (não-democrático de direita).

Como se não bastassem tantos retrocessos e violências contra uma sociedade plural, desigual e diversificada, o governo ilegítimo fundiu os ministérios da Educação e da Cultura, colocando em seu comando um político do DEM que é a favor do rebaixamento da idade penal e que tem questionado, repetidas vezes, políticas de ampliação da educação pública, de ações afirmativas e de alargamento do acesso à universidade pública. Também aqui há uma visão do século 19, que sustenta o perverso argumento segundo o qual as universidades públicas devem ser centros de formação da elite dirigente do país. 

Na biografia do titular da educação consta ainda o fato de ele ter fortes relações com o instituto que cedeu ao governo tucano de São Paulo o projeto de reestruturação das escolas, ocasionando uma forte e cívica reação dos estudantes que passaram a ocupá-las, primeiro denunciando esse projeto; depois pelo roubo da merenda naquele estado (veja aqui).

Em relação a violência contra os trabalhadores e as trabalhadoras deste país,  a transformação do Ministério do Trabalho e Previdência Social em Ministério do Trabalho e o fato de a Previdência passar a ser uma mera atribuição do ministro da Fazenda, com o compromisso explícito de realizar uma ampla reforma (alterando a idade mínima para aposentadoria, desvinculando o salário mínimo do reajuste das aposentadorias e possivelmente privatizando a Previdência) mostra claramente o desdém do governo ilegítimo para com a classe trabalhadora. O ministro da fazenda, que recuso citar seu nome, teve a desfaçatez de afirmar que “direitos adquiridos é um conceito impreciso” (veja aqui), não restando dúvida que o feitor dos trabalhadores não poupará sequer os direitos previdenciários já adquiridos.

E tem mais: a extinção da Controladoria-Geral da União (CGU), o órgão responsável nos últimos anos pelo sistemático combate e desmonte da corrupção na máquina pública federal (sendo mais eficiente que as estruturas seletivas do judiciário e ministério público nessa área), foi extinta em ataque frontal ao direito de acesso à informação e limitação do combate à corrupção. Sua extinção e substituição pelo Ministério de Transparência, Fiscalização e Controle, esse pomposo nome que não significa nada na prática, retira autonomia do órgão (fundamental para um enfrentamento eficiente da corrupção). Ademais, trata-se de uma afronta à doutrina internacional do controle interno que determina que mecanismos de controle estejam diretamente vinculados à Presidência da República. Não precisa escrever mais sobre isso. O fato de o presidente ilegítimo e sete de seus ministros estarem envolvidos em diversas denúncias de corrupção sugere que há algo muito estranho e oculto no aparente reino dos que tomaram o poder sem ter votos. A cegueira da justiça em relação a esse e outros fatos mostra que a degradação dos poderes não se limita no executivo e no legislativo.

A questão agrária e rural será, agora, uma espécie de “puxadinho” do Ministério de Desenvolvimento Social. Sob o comando de um peemedebista gaúcho, a ordem é fortalecer o “empreendedorismo rural”. Quantas palavras bonitas “pra inglês ver”, bem nos moldes positivistas da velha república. Provavelmente, doravante ocorrerão ações sistemáticas para desmontar o que foi criado visando o fortalecimento e a autonomia dos agricultores familiares, camponeses e indígenas que garantem mais de 70% dos alimentos que os brasileiros consomem. De agora em diante, no governo dos coronéis, esses segmentos do campo passam a ser tratados como pobres coitados e não mais como importantes atores do desenvolvimento socioeconômico e ambiental do país.

Por fim, a violência real e simbólica praticada contra a presidenta Dilma (uma mulher que é bela, recatada, do lar, da luta, da democracia e com mãos limpas) virou escândalo na comunidade internacional. Nenhum chefe de estado e de governo apareceu para defender o governo ilegítimo. Ao contrário, as notícias que temos de várias fontes, obviamente não da imprensa golpista, é que o constrangimento é geral. Até mesmo liberais democratas de variados países que, apesar de serem serviçais do mercado são respeitadores da lei, andam atordoados com as notícias do Brasil. Um vexame sem fim...

É preciso, neste momento, dizer algo mais: instituições e pessoas que se dizem defensores da democracia e se calam frente a tanta violência precisam sair da toca (do comodismo, do medo ou da paralisia decisória). Afinal, como diz o velho ditado popular, geralmente, “quem cala consente”.


Com racionalidade, alguma serenidade e estudando um pouco da história e da política brasileiras, consigo compreender claramente os processos de conquista do poder pelas elites desse país. Historicamente, são inúmeros os exemplos que mostram que esses grupos poderosos (ora com a cruz e a espada; ou com a chibata; ou com as armas e canhões e, agora, com a ajuda do parlamento, da mídia e da justiça) se impõem pela força, contra o povo e o projeto de uma nação, das mais variadas formas. Por isso, o sentimento não é de ódio no coração, nem confusão na mente. Sinto-me triste, envergonhado e angustiado frente à imensa involução social, política, moral e ética de um governo ilegítimo. Por isso, não reconheço um governo golpista.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Impeachment: a farsa do jogo jogado


Assistiremos hoje a mais uma congressada, desta vez urdida pelo Senado Federal, levando os usurpadores, que não passaram pelo crivo das urnas e, portanto, não têm mandato popular para o Palácio do Planalto. Para dar ares de seriedade, os senadores (em sua maioria brancos e ricos e muitos com pendências judiciais) não repetirão a palhaçada da sessão da Câmara. Porém, por mais que escondam, não deixarão de explicitar a farsa de um processo cuja ré é julgada sem ter praticado crime. A farsa do jogo jogado que começou com a não aceitação de Aécio do resultado das urnas tem seu pseudocoroamento no dia de hoje.

Ao longo de um ano, sob a batuta de Janot, Moro, da Polícia Federal e da mídia chafurdaram a vida e as ações de Dilma tentando encontrar um crime de responsabilidade. Como não tiveram êxito, inventaram essa desculpa esfarrapada das pedaladas fiscais para justificarem a empreitada golpista.

As duas coalizões golpistas (veja aqui) conseguiram apear do poder uma presidenta eleita democraticamente e impedida de exercer seu mandato, numa afronta abissal à Constituição. Porém, o resultado desse estupro à democracia virá em doses cavalares nos próximos dias e anos.

Ter esperança na justiça é evidente perda de tempo. Se o STF desejasse um mínimo de moralidade na República deveria ter determinado não somente o afastamento de Eduardo Cunha do seu mandato e da presidência da Câmara, mas também anulado todos os seus atos desde o recebimento da denúncia da PGR em dezembro de 2015. E, nesses atos, estaria inclusa a patética sessão da Câmara de 17 de abril quando foi determinado o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Como dizia Ruy Barbosa "a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta." (IN: "Oração aos Moços", 1921).

Depois de apresentar um relatório eivado de vícios, o tucano Antônio Anastasia (PSDB), assistiu seu parecer na Comissão daquela Casa ser   desconstruído publicamente pelos três juristas citados por ele no documento. Os constitucionalistas Lenio Luiz StreckMarcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia aparecem na peça de Anastasia como se reforçando o ponto de vista do relator.

Num embate entre Anastasia e o advogado geral da União José Eduardo Cardoso, durante uma das oitivas na Comissão do Impeachment do Senado, o mineiro quis, espertamente, dar ares de legalidade a trama golpista, sendo confrontado imediatamente pelo defensor de Dilma Rousseff:  

“O fato de existir direito de defesa formal, não real, onde as pessoas já entram com a convicção formada, indica uma decisão política e não uma decisão imparcial. O senhor (Anastasia) diz que nunca viu golpe com direito de defesa? Eu já vi. Eu já vi injustiça com direito de defesa. Todos os julgamentos mais iníquos da humanidade foram feitos com direito de defesa. Aliás, quando se quer esconder uma iniquidade, se dá o direito de defesa retórico onde as cartas já estão marcadas, onde o jogo já está definido”. (José Eduardo Cardozo – veja aqui).

A destruição da democracia terá um preço colossal. Conforme as palavras proferidas pelo insuspeito professor Paulo Sérgio Pinheiro, integrante do governo FHC e reconhecido internacionalmente pela defesa dos direitos humanos, 

“o que vai acontecer é a derrubada de tudo o que se constituiu nos últimos 25 anos em termos de direitos humanos, controle civil das Forças Armadas, fortalecimento dos movimentos sociais e da sociedade civil democrática organizada”. “O perfil do governo golpista simplesmente é um sinal fraco do governo, com práticas de direita e extrema direita, que estarão ainda por vir” (veja aqui). 

O respeitado cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, em uma rede social, postou ontem (10/05) uma análise corajosa, típica daqueles que não têm medo em desvelar a trama cujos resultados ainda não conhecemos e que precisa ser reproduzida, quase que na íntegra, aqui: 

Qualquer objeção jurídica ou lógica à decisão é pura perda de tempo. Por isso o golpe fracassou. As sucessivas ilegalidades da força-tarefa da Lava-Jato, com prisões injustificadas, humilhações de investigados, difamações, tortura psicológica de presos, vazamentos operados com oportunismo, incansável repetição de incriminação e degradação de investigados ou mesmo réus em curso de julgamento, linguagem virulenta de procuradores, policiais federais e Procurador-Geral da República, cultivando hostilidade e ódio na opinião pública e, finalmente, o apelo dos homiziados de Curitiba aos movimentos sociais conservadores e mídia golpista para continuado apoio, esquecendo as instâncias judiciárias e de outros poderes a que estão subordinados, substituiu a indumentária de cavaleiros pelo restabelecimento da moralidade pelo descarado uso da força bruta, e só ela, contida nas leis. Não há salvação: Michel Temer é um usurpador e seu governo não deve ser obedecido. Não deve e não o será. O golpe fracassou socialmente e o usurpador só governará mediante violência física, repressão sem disfarce. Ou a sublevação social pela democracia é submetida pela força (e aí o golpe, finalmente, será vitorioso), ou a coerção servirá de combustível à sublevação. Então, de duas uma: ou Michel Temer renuncia e o STF convoca novas eleições ou as forças armadas intervirão. ”

terça-feira, 10 de maio de 2016

INTELECTUAIS E ESTUDIOSOS BRASILEIROS: É HORA DA AUTOCRÍTICA



Até um ano atrás, os intelectuais brasileiros (cientistas políticos, sociólogos, historiadores, juristas...) fiavam na estabilidade democrática. Acreditando no respeito às regras da democracia procedimental e, principalmente, na formalidade da Constituição Federal de 1988, afirmavam, quase que unanimemente, que nossa democracia era sólida.

A bem da verdade, desde 1889, ocasião da proclamação da República por um grupo de liberais conservadores, o Brasil não experimentou NEM UMA DÉCADA de intensa estabilidade democrática. As elites conservadoras, já na gênese da república, trataram de confabular um regime de intensa instabilidade política, porque nunca tiveram apreço à democracia real, apesar da defesa formal de um regime no qual o princípio liberal-republicano do respeito às leis sempre foi um acessório, a começar pelo sistema de justiça (veja, aqui, o estudo do grande jurista Fábio Konder Comparato, traçando a história de um "poder submisso às elites, corrupto na sua essência e comprometido secularmente com a injustiça").


As elites nunca se importaram, nestas plagas, com a educação para a cidadania e para a preocupação com a coletividade, visando a consolidação da república como uma realidade política fática, fatores já destacados por PLATÃO no diálogo entre Sócrates e Glauco:


A lei não visa o bem-estar absoluto de uma só classe de cidadãos mas, ao contrário, procura que no Estado seja alcançado com a concórdia entre todas as classes, seja por meio da persuasão, seja pela coação, obrigando a todos a repartir entre si a contribuição que cada um está em condição de trazer para a coletividade. Se a lei assim os torna cidadãos, seu objetivo não é o de deixá-los livres para fazer o que quiserem, mas de obrigar a cada um a colaborar para a concórdia do Estado. (PLATÃO. A República. Tradução de Ciro Mioranza. 2ª ed. São Paulo: Editora Escala, 2007, pp. 249, 269, grifos nossos).

O circo que assistimos nos últimos 18 meses somente confirma o que todos sabíamos, mas não queremos reconhecer: somos uma república das bananas, na qual, salvo exceções, as elites (políticas, econômicas, intelectuais, religiosas e jurídicas) nunca foram liberais democráticas de fato, apesar de defenderem a democracia formal (uma democracia na qual 99% dos brasileiros labutam para engordar a renda do 1% dos endinheirados, posicionando o país nas primeiras posições dos ranking de desigualdade, concentração de renda e sonegação fiscal).

Conviver pacificamente, num descomunal cinismo social, neste país que assiste em berço esplêndido e impunemente o extermínio de 60 mil cidadãos por ano (a maioria negros e pobres e parte significativa sendo eliminada por agentes do estado) é um dos dados mais evidentes da intensa fragilidade de uma sociedade que nunca foi, não é e continuará não sendo nem republicana, nem liberal-democrática e cujo estado nunca foi, não é e não continuará sendo de direito (a não ser na formalidade da lei que é manipulada ao bel-prazer dessas elites).


Neste sentido, são pertinentes e apropriadas as ponderações de Jessé Souza em A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixar manipular pela elite, acerca  do servilismo dos intelectuais brasileiros aos interesses dos poderosos:

Todos os dias indivíduos normalmente inteligentes e classes sociais inteiras são feitos de tolos para que a reprodução de privilégios injustos seja eternizada entre nós. Para enxergar com clareza nosso real lugar no mundo, é fundamental compreender como nossa elite intelectual submissa à elite do dinheiro construiu uma imagem distorcida do Brasil de modo a disfarçar todo tipo de privilégio injusto. Os poucos que hoje controlam tudo precisam desse “exército de intelectuais”, do mesmo modo que os coronéis do passado precisavam de seu pequeno exército de cangaceiros. (...) E produzir “convencimento” é precisamente o trabalho de intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado

Se para atenderem aos seus interesses momentâneos e casuísticos, as elites desconstroem, desobedecem e subvertem as leis que são por elas impostas, por que o cidadão teria apreço às leis e às regras do jogo democrático?

O trocadilho parece infantil, mas é a pura realidade. Temos um ESTADO DE DIREITA (liberal-elitista, conservador e antidemocrático). É preciso refletir melhor sobre a histórica baixíssima qualidade dessa dita democracia tupiniquim... para mudá-la.


(Atualizado em 10/05/2016, ao meio dia)

domingo, 8 de maio de 2016

Consuma-se a farsa do impeachment

Aproxima-se o dia no qual os usurpadores, que não passaram pelo crivo das urnas e, portanto, não têm mandato popular, conseguirão apear do poder uma presidenta eleita democraticamente e impedida de exercer seu mandato sem ter praticado crime de responsabilidade, numa afronta abissal à Constituição.

Antes, dado que já cumpriu o seu "dever", assistimos a extemporânea retirada de Cunha do comando da Câmara Federal. Em pouco mais de um ano no comando daquela Casa, articulou a coalizão parlamentar do golpe. Agora, para dar "ares de legalidade" é afastado pelo STF. Cumprido seu papel de jagunço político será, doravante, uma espécie de bode expiatório, a purgar publicamente para o deleite daqueles que ainda acreditam na isonomia e efetividade da justiça.

Sobre ele, pesam dezenas de acusações de corrupção ativa e passiva, há anos.  Não obstante, comandou como uma ninfa incólume a abertura do processo de impeachment, sob os olhares passivos dos ministros do Supremo, guardiões da Constituição e, por consequência, das regras procedimentais da democracia, criando, desde então, uma situação incontornável sob o ponto de vista político.

Se o STF desejasse um mínimo de moralidade na República, deveria ter determinado não somente o afastamento de Eduardo Cunha do seu mandato e da presidência da Câmara, mas também anulado todos os seus atos desde o recebimento da denúncia da PGR em dezembro de 2015. E, nesses atos, estaria inclusa a patética sessão da Câmara de 17 de abril quando foi determinado o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Como dizia Ruy Barbosa "a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta." (IN: "Oração aos Moços", 1921).

As duas coalizões golpistas (veja aqui) urdiram uma trama quase perfeita. Porém, o resultado desse estupro à democracia virá em doses cavalares nos próximos dias e anos.

         O mais vergonhoso é que desde a derrota eleitoral de 2014, os golpistas, não aceitando os resultados das urnas, tramaram de todas as formas para violentarem a vontade soberana do povo. Desde o primeiro momento, Aécio questionou as eleições, a ponto de colocar em xeque a eficiência das urnas eletrônicas. Ao longo de um ano, sob a batuta de Janot, Moro, da Polícia Federal e da mídia, chafurdaram a vida e as ações de Dilma tentando encontrar um crime de responsabilidade. Como não encontraram, inventaram essa desculpa esfarrapada das pedaladas fiscais para justificarem a empreitada golpista.

         O vexame é tão óbvio e ululante que Glenn Greenwald (jornalista, escritor e advogado americano, especialista em Direito Constitucional, que iniciou a divulgação, através do jornal britânico The Guardian, das informações sobre os programas de vigilância global dos Estados Unidos pela NSA, revelados em junho de 2013 através dos documentos fornecidos por Edward Snowden),  escreveu em seu twitter: “a elite brasileira cansou de perder as eleições; em vez de continuar tentando, resolveu destruir a democracia” (confira aqui).

A última presepada da coalizão golpista está sendo urdida no Senado. Depois de apresentar um relatório eivado de vícios, o tucano Antônio Anastasia, assistiu seu parecer na Comissão daquela Casa ser   desconstruído publicamente pelos três juristas citados por ele no documento. Os constitucionalistas Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia aparecem na peça de Anastasia como se reforçando o ponto de vista do relator.

Porém, segundo os professores supracitados, Anastasia usou um argumento deles para defender o contrário do que eles acreditam com relação ao artigo 85 da Constituição, que versa sobre os crimes de responsabilidade. Os três advogados escreveram um artigo expondo o "equívoco". “O senador Anastasia nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos”. (Confira aqui). 

Anastasia não tinha condições morais e éticas para relatar o impeachment: além de ser do PSDB (o partido que manejou o golpe e até pagou parecer jurídico para a feitura do pedido originário de impeachment – veja aqui), pedalou inúmeras vezes como governador. 

Apresentado por alguns golpistas como constitucionalista (veja aqui), Anastasia é da área do Direito Administrativo. No texto de punho do próprio autor na plataforma Lattes está escrito: “tem experiência na área do direito; com ênfase em direito administrativo”. Seu título de mestre foi obtido em 1990. Observamos duas pequenas publicações do autor que versam sobre temas correlatos ao direito constitucional (leia aqui). Portanto, dizer que Anastasia é um constitucionalista não seria mais uma fraude?

No embate entre Anastasia e o advogado geral da União José Eduardo Cardoso, durante uma das oitivas na Comissão do Impeachment do Senado, o mineiro quis, espertamente, dar ares de legalidade a trama golpista, sendo confrontado imediatamente pelo defensor de Dilma Rousseff:  “O fato de existir direito de defesa formal, não real, onde as pessoas já entram com a convicção formada, indica uma decisão política e não uma decisão imparcial. O senhor (Anastasia) diz que nunca viu golpe com direito de defesa? Eu já vi. Eu já vi injustiça com direito de defesa. Todos os julgamentos mais iníquos da humanidade foram feitos com direito de defesa. Aliás, quando se quer esconder uma iniquidade, se dá o direito de defesa retórico onde as cartas já estão marcadas, onde o jogo já está definido”. (José Eduardo Cardozo – veja aqui).

A destruição da democracia pelos infames golpistas terá um preço alto. Conforme as palavras proferidas pelo insuspeito professor Paulo Sérgio Pinheiro, integrante do governo FHC e reconhecido internacionalmente pela defesa dos direitos humanos, “o que vai acontecer é a derrubada de tudo o que se constituiu nos últimos 25 anos em termos de direitos humanos, controle civil das Forças Armadas, fortalecimento dos movimentos sociais e da sociedade civil democrática organizada”. “O perfil do governo golpista simplesmente é um sinal fraco do governo, com práticas de direita e extrema direita, que estarão ainda por vir” (veja aqui).

Finalmente, como escreveu o professor de ciência política da Universidade Federal de São Carlos e professor visitante na Universidade de Cambridge, Pedro Floriano Ribeiro, em artigo no El País, “a democracia comporta gestões melhores e piores, e à oposição (recente ou antiga) cabe fustigar o Governo à espera de novas eleições, quando disputará a narrativa sobre a administração que se encerra em busca do voto popular. Qualquer coisa fora disso recoloca o país no circuito das repúblicas bananeiras - seja uma quartelada clássica, seja a congressada e conspiração palaciana ora em curso. O vice ansioso parece muito atento às pompas e circunstâncias, e preocupado com a autoimagem e seu lugar na história. Pois bem: deve saber que está chegando à Presidência de braços dados com o que há de pior na política brasileira – incluindo o deputado misógino, travestido de valentão linha-dura, capaz de regozijar-se com a dor da tortura alheia, numa das piores canalhices já registradas no parlamento brasileiro. (....) Temer está garantindo, assim, um lugar menos decorativo na história política brasileira – história que comporta, no entanto, papéis de todos os tipos. O dele dificilmente será dos mais honrosos." (Leia aqui).

Porém, enganam-se aqueles que pensam que os democratas e defensores de uma sociedade justa e igualitária se acovardarão diante de tamanha violência. Como escreveu o conceituado professor e criminalista Leonardo Isaac Yarochewsky, “quando os caminhos legais são fechados; quando o judiciário se omite; quando a injustiça é flagrante; quando a Constituição da República é rasgada; quando a farsa e a insensatez tomam o lugar da verdade e do juízo; quando a ética é destruída pela indecência; quando não há mais esperança, só resta o caminho da resistência e da desobediência civil”. (Veja aqui).


quinta-feira, 5 de maio de 2016

Para inglês ver: o afastamento de Cunha

Cunha já cumpriu o seu "dever". Em pouco mais de um ano no comando da Câmara articulou, comandou e usurpou poderes junto com a coalizão parlamentar do golpe. Agora, pra dar "ares de legalidade" é afastado pelo STF. Cumprido seu papel de jagunço político será, doravante, uma espécie de bode expiatório, a purgar publicamente para o deleite daqueles que acreditam na justiça...

Sobre ele, dezenas de acusações de corrupção ativa e passiva, há anos. As ninfas do Supremo assistiram passivas um bandido comandar o processo de impeachment na Câmara, criando uma situação incontornável sob o ponto de vista político.

Do outro lado, a PGR, na figura de Janot, o estrategista da trama, de forma milimetricamente calculada e em parceria com Moro e a imprensa, em doses homeopáticas, foram tocando a empreitada jurídica. Agora, querem parecer isentos. Janot, depois de protocolar nesta semana um pedido "mais robusto" de afastamento de Cunha aproveitou, também, para denunciar Aécio, Lula e Dilma. A desfaçatez não tem limites nessa república das bananas...

Que a justiça brasileira é morosa e seletiva, todos sabíamos. Que é cínica e conivente com o golpe, temos certeza.
Caso a decisão do STF fosse para colocar em curso um mínimo de moralidade na República, o afastamento de Eduardo Cunha do seu mandato, além da Presidência da Câmara, incluiria a anulação de todos os seus desde o recebimento da denúncia da PGR em dezembro de 2015. E, nestes atos, estaria incluída a sessão da Câmara de 17 de abril quando foi determinado o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff.

As duas coalizões golpistas (político-parlamentar e midiática-jurídica-empresarial-elitista) urdiram uma trama quase perfeita. Porém, o resultado desse estupro à democracia virá em doses cavalares nos próximos dias e anos...

"A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta." (Ruy Barbosa. "Oração aos Moços", 1921).

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O impeachment e a geopolítica internacional

Condenar, questionar, não aceitar e lutar contra o impeachment não é, necessariamente, defender a presidenta Dilma Rousseff ou o governo do PT. Fundamentalmente, é lutar pelo respeito às regras mais basilares da democracia e posicionar-se contrariamente às investidas daqueles que burlam descaradamente o resultado das urnas. Respeito à duração dos mandatos é um dos requisitos mínimos de qualquer definição de democracia ou discussão sobre sua qualidade.

Às vésperas do desembarque dos usurpadores, que não foram eleitos e querem governar, é preciso refletir, também, sobre os interesses externos nesse malfadado golpe.

 Até parece que ficou démodé problematizar acerca dos interesses alienígenas no Brasil em pleno século XXI. Quem ousa tocar no tema é logo rotulado de defensor de teorias conspiratórias; às vezes, de saudosista ou messiânico, a depender dos gostos e ideologias dos interlocutores. Mas, qualquer analista atento já percebeu que, para além das coalizões conservadoras que articulam e implementam o golpe no Brasil (veja aqui), há evidentes interesses externos numa desestabilização econômica, política e social do país para que os grupos autóctones, de mentalidade colonial, retomem seu histórico reinado nestas plagas, a serviço dos velhos interesses exógenos.

É claro que as revelações da espionagem norte-americana (que atingiram a Petrobras e explicitaram os interesses externos nas reservas do pré-sal, não poupando sequer a chefe de estado e de governo, a presidenta Dilma), como revelou Edward Snowden, deixaram transparecer para o mundo o submundo da política externa dos EUA. Com a velha e esfarrapada justificativa de garantir a paz e o equilíbrio geopolítico mundial, os americanos, criminosamente, espionam governos, empresas e líderes políticos sem o menor escrúpulo e ao arrepio da legislação internacional, que garante independência e salvaguardas aos governos e aos interesses das Nações. Os EUA continuam se postando como os “cães de guarda” do capitalismo internacional e não poupam atos criminosas para se manterem na dianteira do jogo de disputas entre as nações, a qualquer custo. A política externa americana se baseia na máxima: os fins justificam os meios. Por isso, não têm o mínimo pudor: invadem países, furtam informações privilegiados de estados nacionais e empresas, promovem guerras não autorizadas pela ONU, como é prática de qualquer império bárbaro. Por que descuidariam de suas “colônias americanas”?

O cientista político e historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de “A segunda Guerra Fria – geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos” (Civilização Brasileira, 2013) trouxe detalhes, por exemplo de como agem os EUA na desestabilização das nações, via mídia. (Aliás, outros estudos já apontaram essa mesma tática na empreitada norte-americana junto ao golpe civil-militar de 1964). Além da CIA, especialmente as ONGs financiadas pelo dinheiro oficial e semioficial como a USAID, a National Endwoment for Democracy, entre outras, atuam comprando jornalistas e treinando ativistas na América Latina. O The Pentagon´s New Map for War & Peace enuncia as formas de desestabilização econômica e social através dos meios de comunicação, jornais, redes sociais, empresários e infiltração de ativistas. “Não tenho dúvida de que no Brasil os jornais estão sendo subsidiados (...) e que jornalistas estão na lista de pagamento dos órgãos citados acima e muitos policiais e comissários recebem dinheiro da CIA diretamente em suas contas”, afirmou Luiz Alberto Moniz Bandeira. (veja aqui).

Ademais, em tempos de pujança da economia da China, a política externa do Tio Sam, com a ajuda dos serviçais autóctones, não mede esforços para manter o domínio colonial no seu “quintal latino-americano”. Adolfo Perez Esquivel, Nobel da Paz em 1980, em passagem pelo Brasil nesses dias, deixou claríssimo:

 “Pelo trabalho que realizo, sempre olho para a realidade de um país da América Latina sob a perspectiva de uma visão continental. Não há casualidades em tudo o que está acontecendo agora contra o governo de Dilma. Isso faz parte de um projeto de recolonização continental. Já houve experiências piloto no continente que devem ser lembradas. A metodologia é a mesma. O que aconteceu em Honduras, com a derrubada de Manuel Zelaya, e depois no Paraguai, contra o governo de Fernando Lugo, foram ensaios de golpes de Estado de um novo tipo. Golpes de Estado que não necessitam dos exércitos. Basta ter os meios de comunicação, alguns juízes e dirigentes políticos da oposição para provocar a desestabilização de um governo. (...). É uma política dos Estados Unidos, que nunca abriu mão de seu objetivo de ter a América Latina como seu quintal. A política norte-americana nos golpes em Honduras e no Paraguai ficou muito clara. É preciso ter em mente que os Estados Unidos e também a Europa estão esgotando seus recursos e necessitam dos recursos naturais de nossos países, incluindo recursos minerais estratégicos e os recursos do Aquífero Guarani, uma das grandes reservas mundiais de água, um bem cada vez mais escasso. Então, não são pequenos os interesses dos Estados Unidos na região. Não é por outra razão que eles mantém bases militares na América Latina.” (Entrevista concedida ao Sul21, em 02/05/2016).

Ainda sob o ponto de vista da geopolítica internacional, a tática norte-americana de desestabilização de governos, domínio da opinião pública e erosão dos movimentos socais foi utilizada tanto no enfraquecimento da “primavera árabe”, quando nas insurreições populares no Oriente Médio. Como afirmou o filósofo e sociólogo senegalês Gilbert Achcar, professor da Universidade de Londres, quando esteve no Brasil, em 2011, os EUA tentam compensar seu enfraquecimento nas regiões onde sempre dominou, buscando construir novas alianças. E sabemos como são e funcionam essas “novas alianças”. As recentes visitas do tucano Aloysio Nunes aos EUA, como emissário de Temer, e sua confissão de que “já existe algo sendo esboçado” (veja aqui) entre os EUA e o Brasil depois do impeachment é uma das evidências do complô.

Na América Latina e, no Brasil (a bola da vez), a estratégia dos EUA, em conluio com as elites, a imprensa e o judiciário locais consiste em desestabilizar os governos progressistas, alinhando-os às maquinações do capitalismo rentista internacional, ou derrubá-los por vias transversas.
É neste contexto que observamos, também, um recrudescimento das direitas em várias partes do mundo a partir dos próprios EUA, com Donald Trump, por exemplo, e da Europa (veja o artigo de Marcello Musto, da Carta Maior, aqui>.

Nesse novo rearranjo do capitalismo internacional, cada vez mais concentrador e oligopolizado, ressaltamos que na América Latina está se fechando um ciclo de governos progressistas que elevaram o nível de vida dos mais pobres e ampliaram a democracia de fato (para além da democracia de direito). Agora, esses governos estão sendo devastados por uma onda direitista, de viés conservador, elitista e, em alguns casos, fascista, que já triunfou na Argentina e está pressionando todos os países sul-americanos. É importante lembrar que, como ocorreu na Europa, uma vez que a democracia liberal e sua ortodoxia econômica mostraram uma gritante fraqueza e falta de decisão diante do aprofundamento da crise econômica nos anos 1920 e 30, a população se radicalizou e clamou por mudanças e ação. Foi neste contexto que os radicais de direita tomaram o poder. Mera coincidência?

Obviamente, as aventuras norte-americanas na América Latina têm fôlego porque coalizões nacionais, entre elas os grandes empresários brasileiros (que surfaram nos bons ventos da economia sob Lula), agora querem voltar ao nível de ganho que tinham sob as políticas neoliberais, naqueles tempos pouco memoráveis de FHC. Não é à toa e nem por acaso que, não obstante a sonegação fiscal no Brasil estar na casa de 500 bilhões de reais por ano, segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, são justamente os setores empresarial e comercial que patrocinam o golpe contra Dilma. As federações das indústrias, alavancadas pela Fiesp do pato amarelo plagiado, as federações do comércio (principalmente de São Paulo), a Associação Brasileira da Indústria Eletrônica e Eletrodomésticos, entidades e conglomerados empresariais de outros estados estão em campanha aberta pelo impedimento e pelo fim do tipo de democracia social implantada por Lula-Dilma, como lembrou Leonardo Boff em artigo publicado no JB on line. Falou-se, inclusive, de uma ação direta dessas entidades no “convencimento” dos deputados federais. Com este Congresso, precisava?

Noam Chomski (intelectual e ativista político, um ferrenho crítico da política internacional desde os anos 1960, em particular crítico dos Estados Unidos, o qual acusa de desenvolver um programa de globalização imperial, com sérias consequências para a cidadania planetária) tem advertido que os EUA não toleram as investidas do Brasil para se tornar uma potência no Atlântico Sul. Causa arrepio aos norte-americanos as articulações em torno dos BRICS, por exemplo, assim como a presença crescente da China, seu principal rival econômico, pelos vários países da América Latina, especialmente no Brasil. Portanto, uma forma de inviabilizar as articulações sul-sul, patrocinadas pelos BRICS, é enfraquecer o Brasil, que além de uma potência regional exibe, também, uma riqueza natural que nos coloca em destaque no cenário das disputas mundiais.

Aqui, entram claramente os interesses no pré-sal e no aquífero Guarani, uma das maiores reservas de água doce do mundo. Tanto os Estados Unidos como a Europa estão esgotando seus recursos naturais pelo insano modelo de consumo e necessitam dos recursos naturais e minerais estratégicos, como as grandes reservas mundiais de água. Em relação ao pré-sal, o sociólogo da Uerj, Adalberto Cardoso, cujas pesquisas incluem temas da sociologia do trabalho sociologia urbana, numa entrevista à Folha de S. Paulo, de 26/04/2015, afirmou:

“Seria ingenuidade imaginar que não há interesses internacionais e geopolíticos de norte-americanos, russos, venezuelanos, árabes. Só haveria mudança na Petrobras se houvesse nova eleição e o PSDB ganhasse de novo. Nesse caso, se acabaria o monopólio de exploração, as regras mudariam. O impeachment interessa às forças que querem mudanças na Petrobras: grandes companhias de petróleo, agentes internacionais que têm a ganhar com a saída da Petrobras da exploração de petróleo. Parte desses agentes quer tirar Dilma."


Precisa desenhar?

domingo, 1 de maio de 2016

Mídia e Judiciário: instituições que não emergem da vontade popular, não têm controles democráticos e nem sempre têm compromissos com a democracia


 “Quarto poder” é uma expressão criada para qualificar, de modo livre, o poder das mídias em alusão aos outros três poderes típicos do estado democrático: Legislativo, Executivo e Judiciário. Esta expressão refere-se ao poder dos meios de comunicação quanto a sua capacidade de manejar a opinião pública, a ponto de ditar regras de comportamento, influenciar as escolhas dos indivíduos e da própria sociedade.

Cena do filme Mad City - O quarto poder (1997), de Costa-Gavras

O filme "Mad City" discute o poder dos media sobre a opinião pública, mostrando a manipulação da mídia para favorecer os interesses de poderosos grupos; a sua capacidade de construir e destruir mitos; a sede por notícias e aquilo que se diz notícia; a dúvida do que seria o verdadeiro jornalismo. Analisa também o sensacionalismo e o circo construído em cima de determinados fatos.

No Brasil, o poder da grande mídia tem sido objetivo de muitas reflexões. Venício A. Lima, no Observatório da Imprensa, nos oferece importantes interpretações sobre a influência da grande mídia. Veja AQUI.  

Com o surgimento da Internet e a popularização das redes sociais, os oligopólios midiáticos começaram a perder terreno. Um dado importante a ser destacado é que esses  poderosos grupos financeiro-comunicacionais não exercem mais a influência decisiva em campanhas eleitorais determinando, por exemplo, o curso da história. Portanto, para manterem seus privilégios e dos grupos econômicos que as financiam, as empresas de comunicação não têm como interessante e vantajosa a defesa das regras do jogo democrático. É neste contexto (de uma sociedade que se democratiza e que acessa outras fontes de informação; na qual o povo tem dado evidentes mostras de alguma autonomia) que o quarto poder posiciona-se como parceiro de primeira hora para reforçar cada vez mais o Judiciário, sem se preocupar com a defesa intransigente das regras procedimentais da democracia. Por que?

Penso que a grande mídia age desta forma não porque deseja um Judiciário democrático. Muito pelo contrário. Age desta forma porque deseja, ardorosamente, que os togados – distantes do povo e incrustados nos  tribunais - não se “contaminem” com os ventos democratizantes – que garantem a pluralidade, a diversidade cultural e a igualdade de direitos. Para os cartéis midiáticos é importante que o Judiciário se mantenha afastado dos anseios populares e democráticos para respaldar eventuais arbitrariedades perpetradas cotidianamente pelos poderosos e ratificadas pelo quarto poder. Neste sentido, a mídia tradicional chega ao ponto de querer determinar, antes mesmo do pronunciamento dos tribunais, quem são os culpados, quais são as penas, quem são os réus; enfim, quem são os “bandidos malvados” que devem ser eliminados a qualquer custo, muitas vezes ao arrepio da lei. Ressalve-se que existem juízes, promotores, delegados e advogados que lutam, às vezes ingloriamente, contra essa macroestrutura opressora de poder...

Todos os grandes veículos de comunicação caminham em uníssono para a blindagem do Judiciário, representado nesse momento pelo STF, pelo juiz Moro e pelo procurador Janot. Por outro lado, insuflam, criminosamente, a população contra os demais poderes, sendo o “patinho feio” da vez o poder executivo, notadamente a presidenta Dilma Rousseff. E escondem os bandidos incrustados, por exemplo, no Congresso. 

Portanto, essas empresas de comunicação se alinham ao Judiciário para manterem intocado o establishment, numa sociedade que ainda não conseguiu fazer nem a basilar reforma agrária e, muito menos, a “reforma agrária do ar”.


No golpe em curso no Brasil, a mídia e o judiciário se alinham para blindarem as coalizões político-parlamentar e midiática-jurídica-empresarial-elitista. (*)

Todos os países democráticos já conseguiram avançar em legislações de controle social da mídia. Os poucos países que não avançaram nesse pantanoso terreno, buscam manter os privilégios dos grandes meios de comunicação calçados, justamente, em decisões do poder judiciário. Não é à toa que os togados representam, historicamente, salvo exceções, o lado conservador das sociedades.

Recordo-me de dois textos publicados em 2012, portanto há quatro anos, que parecem ter sido escritos ontem. Em relação ao Judiciário, Roberto Amaral advertia: “ao contrário do Executivo e do Legislativo, o Judiciário, no Brasil, é o único dos poderes republicanos que desconhece a única legitimidade conhecida pela democracia, aquela derivada da soberania popular. Em vez de mandatários da vontade da cidadania, expressa em eleições periódicas das quais derivam mandatos certos, os membros do Judiciário – agora me refiro aos Tribunais superiores, a começar pelo STF –, são nomeados pelo Presidente da República; em vez de exercerem mandatos a termo (como os titulares dos poderes Executivo e Legislativo em todas as instâncias) suas investiduras relembram a monarquia, pois são vitalícias". Veja AQUI.

Também naquele ano, Eduardo Guimarães já nos alertava para um golpe que se avinhava caso a sociedade continuasse imobilizada contra as forças reacionárias que se assanham nos últimos tempos no Brasil: “afirmo que a sociedade está indignada com mídia, oposição e Judiciário por conta do que essas forças hoje discricionárias estão perpetrando contra a democracia. E o que é que a sociedade recebe dos que prometeram representá-la? Deram vazão à sua voz? Não, acovardaram-se miseravelmente. E o pior é que não pagarão sozinhos um preço desse imobilismo que terá que ser pago”. Leia, AQUI.

Para além da briga pelo “grito mais alto e definitivo”, há que se registrar outro fato: a grande mídia, aliada de primeira hora dos segmentos da direita enrustida e raivosa brasileira, não tolera que o “andar de baixo” tenha conseguido alguma autonomia nos últimos anos: em pesquisas de opinião publicadas pelo Datafolha e Ibope, recentemente, o percentual dos que “confiam muito” na imprensa caiu de 31% para 22% e os “não confiam” de jeito nenhum nos jornais subiu de 18% para 28%. Aos poucos, separa-se o joio do trigo; ou seja, a OPINIÃO PUBLICADA NÃO SE TRANSFORMA, NECESSARIAMENTE, NA OPINIÃO PÚBLICA. 

É neste cenário que a crescente politização da justiça, determinada e glamourizada em boa medida pela ação da mídia, no Brasil, se constitui num risco à democracia.

Enganam-se aqueles que rejubilam com os arroubos autoritários do Judiciário. A quem interessa que um poder tão distante do povo possa se sobrepor às demais instituições republicanas?


Como acreditar e respeitar um poder que negocia aumento salarial para seus quadros num momento de profunda crise e recessão econômicas, de enorme instabilidade política e social e com líderes do Parlamento que são verdadeiros bandidos?

A bem da verdade, além de não derivar da vontade popular, o Judiciário é um poder sem controle. Prova disto, é que nem mesmo o Conselho Nacional de Justiça consegue fazê-lo transparente. "Nós, magistrados, temos tendência a ficar prepotentes e vaidosos. Isso faz com que o juiz se ache um super-homem decidindo a vida alheia. Nossa roupa tem renda, botão, cinturão, fivela, uma mangona, uma camisa por dentro com gola de ponta virada. Não pode. Essas togas, essas vestes talares, essa prática de entrar em fila indiana, tudo isso faz com que a gente fique cada vez mais inflado. Precisamos ter cuidado para ter práticas de humildade dentro do Judiciário. É preciso acabar com essa doença que é a juizite", disse em certa ocasião a ministra Eliana Calmon, ex-presidente do Conselho Nacional de Justiça à revista que se tornou a porta-voz-mor da direita refratária e perversa brasileira.

Temos inúmeros políticos de conduta reprovável no Legislativo e no Executivo. Mas estes dois poderes, não obstante suas mazelas, possuem mecanismos de prestação de contas e controles interno e externo mais efetivos. O voto, por exemplo, é um desses mecanismos.

E em relação ao Judiciário, o que podemos dizer em termos de transparência, controle e prestação de contas à sociedade? Qual a participação popular na configuração do Judiciário?

A onipotência das togas, numa democracia, é indesejável. Os juízes têm que ter limites. Não podemos concordar que uma juristocracia determine os rumos da vida republicana, em detrimento da Constituição. Juízes, promotores, delegados, policiais não são donos da verdade e não estão acima das leis.

A democracia se consolida quando há respeito e valorização ao pluralismo das ideias e às múltiplas manifestações e composições sociais. A disputa pelo poder só é legítima dentro das regras constitucionais. Neste contexto, as decisões da justiça assim como a opinião monocromática e interesseira da mídia não podem extirpar, anular e impedir a diversidade de opiniões, crenças, ideias e a vontade popular. 


Eleições livres e periódicas e respeito à duração dos mandatos são requisitos mínimos de qualquer definição de democracia ou discussão sobre sua qualidade.

Os conflitos e as disputas políticas e sociais fazem parte do processo democrático. Portanto, nem o poder judiciário, nem o poder econômico e muito menos a mídia que, teoricamente, não é um poder não têm o direito de sobrepujar as deliberações que emanam do povo através das eleições, nas democracias representativas. Se o judiciário e a mídia querem ser respeitados, que sejam os primeiros a cumprirem a Constituição.

Nem toda solução para os dilemas sociais se dá pelas vias penais, judiciais e/ou policiais, através de imposições discricionárias seja da judicatura, seja do tribunal midiático. Ao contrário, a solução para crises de ordem política deve-se dar no campo político, respeitando as regras do jogo democrático e, fundamentalmente, a vontade popular.

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Sobre as coalizões político-parlamentar e midiática-jurídica-empresarial-elitista veja AQUI .


(Editado em 01/05/2016, às 19 horas).


quarta-feira, 27 de abril de 2016

Dando nomes aos bois: os atores que movem o impeachment

Fundamentalmente, duas grandes coalizões tocam o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A primeira é uma coalizão político-parlamentar. Aécio, Cunha e Temer são seus principais líderes. Aécio e Cunha não ganharam as eleições, mas querem governar. Cunha dispensa comentários. Às favas as regras do jogo democrático.

No parlamento, a bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia) é o instrumento dessa coalizão para efetivar o golpe. Conforme informou a Agência Pública de Jornalismo, 

em ordem decrescente, votaram pelo impeachment as bancadas da bala (88,24%), empresarial (85,32%), evangélica (83,85%), ruralista (82,93%), da mineração (79,12%) e dos parentes (74,49%), formada por deputados com familiares na política. Nesses grupos, o porcentual de apoio ao impedimento foi superior ao valor registrado na votação de domingo, que resultou em 71,54% das manifestações pelo impeachment se considerados todos os deputados, com 367 votos – o que fez com que o processo seguisse para o Senado Federal. A bancada da bola ficou bem próxima desse patamar, uma vez que 71,43% dos seus integrantes votaram “sim”.

Não vou ficar citando, aqui, nomes de sub-celebridades que compõem a bancada BBB. Basta uma pesquisa na Internet e todos saberão...

Importante, aqui, um comentário sobre o papel do PMDB nesse imbróglio: entre os vários erros do PT, na sua empreitada no e pelo poder, um deles foi acomodar-se e acovardar-se nessa engrenagem perversa à brasileira (o "é dando que se recebe tupiniquim") conhecida como “presidencialismo de coalizão” e fiar-se, como donzela, no partido mais fisiológico do país, que até mesmo no processo da decantada redemocratização negociou cada centímetro para acomodar suas raposas e, em todas as ocasiões possíveis, usurpar do poder: inclusive, emplacando presidentes pelas vias indiretas como quer, mais uma vez, o vice Michel Temer. Porém, os significados da traição peemedebista na votação do impeachment e na postura repugnante de Temer ganham um contorno ainda mais emblemático (e simbólico) por se tratar de uma agremiação que usufruiu do poder ao seu bel-prazer durante os últimos 14 anos e, quando chamado à responsabilidade pelos erros do governo (no qual mamou até a última "gota de leite"), traiu vergonhosamente uma mulher honesta e com as mãos limpas. 

Como é de conhecimento nacional, boa parte da turma do PMDB que apoiou o governo (e o PT sempre soube disso) tem rabo preso (não obstante as vistas grossas do sistema de justiça da casa grande): muitos, atolados na lama da corrupção até o pescoço há décadas; outros, que gerenciaram a corrupção durante os anos do governo petista em seus postos-chave nas estatais, agências públicas e ministérios; outros tantos, que se beneficiaram direta e indiretamente do governo para se favorecerem de formas variadas em seus estados, municípios, além do plano federal, etc. etc... Salvo exceções (e elas existem) trata-se de uma agremiação usurpadora, por natureza. Está no seu DNA. Explico: quando o antigo MDB (das lutas democráticas e populares contra a ditadura) começou a acomodar os espertalhões de todas as extirpes e dos variados recantos nacionais no processo de redemocratização transformando-se em PMDB, nascia o partido mais fisiológico e oportunista da nação. Dos emedebistas históricos restam poucos; daqueles que honram a bandeira original do partido, são raríssimos.

A outra coalizão pode ser denominada de midiática-jurídica-empresarial-elitista. Congrega os poderosos grupos de mídia nacionais (liderados pela Globo, Abril e Folha); uma juristocracia (incrustrada em vários segmentos da advocacia, dos Ministérios Públicos de estados e da União e na magistratura, liderada por Janot e Moro, com a anuência do STF); o segmento empresarial cuja mentalidade nos remete a um capitalismo colonial, antinacional e extrativista (liderado pela Fiesp, na figura de Skaf) e grupos elitistas, principalmente alguns segmentos da classe média (historicamente acostumados com privilégios e não com direitos universais, ao invés de usarem seu poderio político de vocalização de demandas e formação da agenda pública para lutar por justiça social e equidade, ou seja, contra a concentração de renda nas mãos de poucos, direcionam um discurso odioso contra os pobres, as políticas de transferência de renda e para aqueles políticos e partidos que representariam tais extratos socioeconômicos).

Essas duas grandes coalizões lideram um processo político, sem fulcro na legalidade e legitimidade, apesar dos contorcionismos que já foram feitos e outros tantos que virão para dar uma pseudoconstitucionalidade ao golpe. Neste sentido, é curioso (e ridículo) o fato de o senador Antônio Anastasia (PSDB), ilustre professor de direito constitucional, ter sido escolhido para relatar o processo, no Senado.

Expliquemos: Dilma está sofrendo um processo de impeachment por praticar “pedaladas fiscais”, porque atrasou o pagamento a bancos públicos - no caso para garantir o Plano Safra (2015), o Minha Casa Minha Vida e o Bolsa Família (2014), sem que tivesse sido registrado nenhum prejuízo para os bancos ou para o Tesouro. Já o relator do impeachment, senador Anastasia (que juntamente com Aécio - que perdeu as eleições e não aceita a derrota-, governaram Minas por longos 12 anos), ambos, quando foram governadores, recorreram várias vezes às “pedaladas fiscais”, tendo, inclusive, sendo feito um Termo de Ajustamento de Conduta (ou Gestão) por não terem conseguido cumprir a aplicação devida dos recursos constitucionais de saúde e educação. As pedaladas de Aécio e Anastasia não envolviam bancos públicos. Mas, eram manipulações grosseiras do orçamento do estado para viabilizarem o malfadado “choque de gestão”. Segundo informou sua assessoria de comunicação, em 25 de junho de 2015, 

o Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública contra o Estado de Minas Gerais por descumprimento da Emenda Constitucional 29/2000, que fixou a obrigatoriedade de aplicação do percentual mínimo de 12% do orçamento em ações e serviços de saúde pública, como atendimentos de urgência e emergência, investimentos em equipamentos e obras nas unidades de saúde, acesso a medicamentos e implantação de leitos. De acordo com a ação, o governo estadual, por 10 anos, entre 2003 e 2012, descumpriu sistematicamente preceitos legais e constitucionais, “em total e absurda indiferença ao Estado de Direito”, efetuando manobras contábeis para aparentar o cumprimento da EC 29.

Lembremos, por fim, que pedaladas fiscais foram cometidas pelos presidentes anteriores e que dezesseis governadores de estado, atualmente, praticam esses malabarismos para fecharem anualmente as contas do executivo.

Portanto, no Brasil, continua em vigor o ditado: o pau que dá em Chico, NÃO dá em Francisco.

Se existisse ética na política, o senador Anastasia deveria se julgar impedido de relatar o processo. Mas, na luta política atual, às favas, também, ética.


(Publicação simultânea nos portais Dom Total e Brasil 247)