terça-feira, 5 de abril de 2016

CRISES POLÍTICA E INSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS NA BUSCA PELA SUPERAÇÃO, DENTRO DA LEGALIDADE


A atual crise política, com graves reflexos na vida das pessoas, das instituições, no tecido social e na economia é resultado de variáveis que, analisadas isoladamente, não são capazes de explicar a complexidade do fenômeno e só servem para criar uma visão minimalista, enviesada e maniqueísta, a serviço de interesses escusos.
Admitindo que toda opinião é interessada (não necessariamente interesseira), a pretensão desse rápido inventário é, modestamente, propor uma análise da crise. Aliás, mais precisamente como veremos a seguir, o melhor seria falar de crises, no plural. Os objetivos deste texto opinativo são motivar a reflexão e o debate; suscitar críticas e questionamentos a respeito de análises parciais que tentam explicar o momento político, contrapondo as soluções pré-fabricadas e eivadas de interesses, advindas de segmentos pouco comprometidos com uma democracia inclusiva e propor uma saída republicana e democrática para a superação desse nebuloso processo, dentro da legalidade. É isso que tentaremos propor a seguir.
Nosso recorte temporal explicativo de algumas das variáveis que deflagraram uma série de conflitos sociais, políticos e culturais não retrocederá às raízes históricas da nossa cultura patrimonialista, escravocrata, elitista, machista e racista. Há farta bibliografia que pode ser consultada a esse respeito. Partiremos dos eventos ocorridos em 2013, as chamadas “jornadas de junho”. Naquele momento, não somente no Brasil, mas em várias partes do mundo, uma série de atos de protesto questionavam, entre outros, a democracia representativa. Vozes de diversos segmentos sociais, com interesses diferentes, demandavam mudanças substantivas no modelo esgarçado de governança democrática, no qual os representantes eleitos não representam os interesses da maioria dos eleitores.
Havia evidências claras de múltiplas falências que, a rigor, apontavam para algo muito mais profundo: o esgotamento do modelo do capitalismo rentista. Esse esgotamento pode ser percebido em várias dimensões: colapso do ecossistema; da política; da economia baseada na especulação (e sua última grande crise, a partir de 2008, nos Estado Unidos); das instituições tradicionais (incapazes de dar respostas às demandas de sociedades cada vez mais complexas).
No mesmo período, sinais do refluxo da crise econômica global batiam às portas do nosso país. Como sabemos, o sistema político foi incapaz de incorporar as reivindicações dos diversos segmentos que saíram às ruas naquele ano.


Não somente o sistema político tradicional dá sinais de distanciamento entre representantes e representados. O pedido de impeachment feito pela OAB nacional sem uma consulta ao conjunto dos advogados, mostra que as cúpulas institucionais se distanciaram das bases e, muitas vezes, agem discricionariamente para atender a interesses de grupos no poder e não necessariamente aos interesses coletivos.


1. Uma economia que produz exclusão e disputas virulentas
Quando analisamos a realidade sociopolítica brasileira nas duas últimas duas décadas, observamos que o modelo de desenvolvimento iniciado no governo Lula, baseado na exportação de commodities, no acesso facilitado ao crédito (e consequente endividamento popular em grande escala), no consumo de massa (puxado por uma descomunal e caótica expansão urbana), só foi possível, em boa medida, pelo poder de compra do mercado chinês, que alterou e impulsionou o capitalismo global.
As políticas inclusivas do governo Lula não foram suficientes para atender a variadas expectativas da classe média. Paradoxalmente, os mais ricos e os mais pobres, guardando as devidas proporções, foram os grandes beneficiários das políticas econômicas no período.
Thomas Piketty, autor de “O capital no século XXI”, aponta que o foco das tensões sociais em vários países está relacionado com a perda patrimonial da classe média, o que pode explicar, também, o crescimento da direita e do egoísmo social. Segundo este autor, na década de 1970, a classe média possuía cerca de 30% do patrimônio total. Hoje está mais próximo de 25%. Ao mesmo tempo, observa-se um aumento na concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos. No caso brasileiro, segundo o IBGE (dados de 2013), os 10% mais ricos concentram 42% da renda nacional. Neste sentido, a perda de posição da classe média poderia levar esse segmento para a extrema-direita: “quando não conseguimos resolver os problemas sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro: trabalhadores, imigrantes, gregos preguiçosos, etc.” (conforme Piketty).


A circulação desenfreada e sem lastro de dinheiro foi a tábua de salvação do capitalismo na última década.


É importante analisar o fato de que parte da classe média brasileira, historicamente acostumada com privilégios e não com direitos universais, bandeou, nos últimos anos, para um discurso e prática que beiram o fascismo.  Ao invés de usar seu poderio político de vocalização de demandas e formação da agenda pública para lutar por justiça social e equidade, ou seja, contra a concentração de renda nas mãos de poucos, alguns segmentos da classe média direcionam um discurso odioso contra os pobres, as políticas de transferência de renda e para aqueles políticos e partidos que representariam tais extratos sociais.
A violência, que sempre determinou a “ordem” das relações sociais no Brasil, tornou-se, com o apoio da mídia, o recurso utilizado em doses cavalares por setores da classe média que tentam reposicionar-se num cenário de disputas reais e simbólicas.  Não nos enganemos: a paz dos túmulos não existe mais.

2. Disputa eleitoral e fragilidade institucional
Para complicar o cenário das disputas em jogo, a busca frenética pelo poder se agudizou depois das eleições de 2014, produzindo um clima a detonar ferrenhas querelas entre atores políticos e seus seguidores e defensores. Alguns elementos são mais ou menos evidentes nessas disputas. Em primeiro lugar, mas não necessariamente nesta ordem, observamos as dificuldades e mazelas da manutenção do presidencialismo de coalizão: um arranjo político que demanda capacidade de produção de agenda pelo presidente e habilidade na articulação com outros poderes, como o Legislativo.


Neste sentido, o desembarque oportunista do PMDB do governo Dilma evidencia o fisiologismo e o corporativismo característicos do principal partido que sustentou as coalizões presidencialistas desde a redemocratização.


Para além da crise do presidencialismo de coalizão, como já dito anteriormente, a crise de representação, marcada pelo distanciamento entre representantes e representados, atingiu também as diferentes Casas Legislativas e, muito especificamente, o Congresso Nacional. Além dos limites da democracia representativa, fragilidades nos nossos arranjos políticos e institucionais apontam para os poucos e frágeis mecanismos de democracia direta e participativa; uma cultura altamente individualista e pragmática; uma tradição de criminalização da política pelos segmentos conservadores; a perversidade do mercado eleitoral, através do financiamento empresarial e privado das campanhas; a burocratização e centralização partidária e o papel seletivo desempenhado pela mídia e pelo Judiciário.
Além dessas vicissitudes (algumas conjunturais, outras estruturais), a configuração política brasileira apresenta elementos marcantes de uma longa tradição autoritária, centralizadora e elitista; a concentração unipessoal do poder, principalmente, no Poder Executivo e nas mãos de elites políticas tradicionais, a facilitar o clientelismo; a endêmica corrupção nos setores público e privado; um sistema eleitoral defeituoso, principalmente pelo abuso do poder econômico nas eleições; má organização partidária (extinção, fusão, multiplicação ilimitada de partidos; baixa fidelidade partidária; partidos pragmáticos), além de outras questões como a desproporcionalidade da representação política dos Estados no Legislativo Federal e a baixa (ou a não) representação de segmentos sociais (indígenas, negros, LGBT, mulheres) nos Parlamentos.
É muito importante destacar, aqui, que o processo eleitoral de 2014 foi marcado pela violência marqueteira baseada na destruição do outro a qualquer custo. Soma-se nesse quadro a incapacidade do candidato derrotado nas eleições, Aécio Neves, de aceitar o resultado das urnas. Desde o primeiro momento, Aécio questionou a legitimidade das eleições. Primeiro, colocando em xeque, irresponsavelmente, a eficiência das urnas a criar um clima de desconfiança generalizada em relação ao pleito e, depois, tramando estratégias para apear do poder a presidente Dilma Rousseff e ocupar seu lugar, mesmo que de forma ilegítima. Aécio, sem dúvida alguma, lidera um conjunto de políticos que prestam um enorme desserviço à democracia brasileira.

3. Os discursos e práticas de ódio, vingança e medo
Outro fenômeno que ressurgiu nas últimas eleições foi um misto difuso de ódio e vingança, fazendo da disputa eleitoral uma verdadeira guerra, quando o processo democrático da escolha dos representantes deveria ser tão-somente um embate civilizado e respeitoso de ideias, opiniões e pontos de vista sobre os rumos do país. Instalou-se um clima generalizado de ódio, vingança e medo no seio da sociedade e das famílias, insuflado pela mídia e pelas redes sociais.
Neste contexto, o filósofo e cientista político esloveno Slavoj Žižek nos ajuda a pensar algo importante: a unificação de todos os medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos grupos e líderes mais conservadores. Essa estratégia justificou, por exemplo, o nazismo (os nazistas tinham horror dos judeus, dos homossexuais...); ou o golpe civil-militar de 1964 (medo do comunismo). 
A soma dos muitos medos (os verdadeiros ou aqueles construídos no imaginário social) produz um ambiente propício para se criar um clima de pânico; instalar a desconfiança generalizada; propagandear uma insatisfação irracional, mesmo num espaço institucionalmente normal e com funcionamento adequado das instituições. A partir daí, podem-se construir as saídas autoritárias, através de pseudo-heróis "salvadores da Pátria"; justifica-se o injustificável com argumentos falaciosos, mas aparentemente palatáveis e aceitos pela cultura vingativa que, em alguma medida, nos congrega enquanto herdeiros da tradição cristã-ocidental que se contenta, muitas vezes, com a eleição de bodes expiatórios para a superação das nossas mazelas.


A partir da unificação dos medos é fácil propagar o discurso do ódio, da violência e da eliminação a qualquer custo daqueles que encarnam os “males” que devem ser combatidos pelos “bons”.


A intolerância, o racismo, o preconceito (principalmente de matrizes socioeconômica e étnico-cultural), o fascismo disfarçado de nacionalismo são alguns dos "demônios" que saíram (porque lá sempre estiveram) do armário dos brasileiros.


Apesar de escolarizados, muitos segmentos bem posicionados social e economicamente são deseducados, porque negam a igualdade de direitos e desconhecem a história, dado que a conquista de direitos, mesmo lenta e gradual, é irreversível em qualquer sociedade minimamente democrática e plural.


4. O papel da mídia e de PODEROSOS segmentos do mundo jurídico
É importante adicionar outros elementos nessa análise. O papel que vem sendo desempenhado por uma mídia venal e a serviço de grupos econômicos e políticos pouco comprometidos com a igualdade, a justiça e a paz social.
À medida que o poderio econômico, com seus interesses políticos, foi dominando a mídia nacional presenciamos uma incestuosa relação no universo da comunicação de massa: parte do jornalismo - subjugado às conveniências do grande capital e/ou de grupos políticos elitistas (e conformado com os interesses econômicos dos proprietários dos grandes oligopólios midiáticos) - passou a agir em uníssono contra o governo de Dilma Rousseff, comportando-se como um partido político.
Paradoxalmente, a imprensa internacional, com seus interesses, mas também com sua longa tradição democrática, tem se colocado contrária à ideia de um impeachment no Brasil desde o início da crise política do segundo mandato da atual presidente. Ao longo dos últimos meses, não foram raras as reportagens e análises internacionais que apontam que o caminho da retirada da presidente, do ponto de vista internacional, seria um erro.


Para uma leitura crítica da comunicação é importante não confundir opinião pública com opinião publicada.


O franco posicionamento dos representantes dos oligopólios midiáticos contrários ao governo eleito se somou a diferentes grupos sociais e políticos que deram uma guinada à direita, capitaneando parte dos insatisfeitos que se apresentaram nos protestos de 2013, recrudescendo a disputa ocorrida na eleição de 2014 e mostrando seu poder, por exemplo, no Parlamento, com a eleição de Eduardo Cunha como presidente da Câmara dos Deputados.
É importante destacar, na consolidação de uma coalização de direita, o financiamento de suas ações pelos representantes do empresariado, liderados pela Fiesp e por setores econômicos internacionais ávidos pela retomada das políticas privatistas (principalmente da Petrobrás) e a participação de parte da bancada religiosa; além das bancadas policial e da bala (salvo exceções), que andam saudosas daqueles tempos em que os “representantes da lei e da ordem” agiam como capatazes impunes dos senhores da Casa Grande. Lembremos que um número bastante expressivo de parlamentares (não somente no Congresso, mas em outras casas legislativas nos Estados e Municípios) se elegeram graças ao dinheiro das empresas nas eleições passadas. A chamada “Lista da Odebrecht” não deixa dúvidas sobre isso.
A configuração e a articulação de grupos e partidos de direita, com suas visões de mundo e de sociedade, são importantes para o aperfeiçoamento da democracia. Todos os atores políticos que disputam o poder podem fazê-lo com legitimidade e devem ser reconhecidos em suas empreitadas. Porém, todos devem se submeter às regras do jogo democrático; e que prevaleçam os interesses da população e não dos grupos em disputa (pelo poder): “todo poder emana do povo” (CF 1988, parágrafo único, do artigo 1º).
Ainda há que se apontar o protagonismo de uma coalizão jurídica conservadora e hermética, incrustrada em vários segmentos da advocacia, dos Ministérios Públicos de estados e da União e na magistratura. Em nosso país, lamentavelmente, muitos daqueles que deveriam ser os primeiros a respeitar, defender e lutar pelo respeito à lei e ao Estado de Direito são, às vezes, os primazes em destruir midiaticamente as reputações de indivíduos com ou sem provas. Se apresentam como “justiceiros” que, impunemente, destroem a vida e a reputação alheia para aplacar seus instintos persecutórios ou para atender à produção do gozo perverso da especularização midiática. Pensam, tacanhamente, que o direito penal resolve todos os problemas e mazelas sociais. Exercem seu ministério com base numa paranoia de acusação sem direito à defesa, facilitando a "perseguição" ou "delação", ao gosto do cliente, no caso, da mídia hegemônica. Infelizmente, o reducionismo judicial, transformado em ativismo persecutório, tem produzido uma justiça ainda mais seletiva e corroborado um pensamento torto, simplista, odioso e infantil Brasil afora.
O Ministério Público, a Polícia Federal e o Judiciário foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 sem nenhuma prestação de conta de suas ações (e omissões) durante a ditadura. E mais: os três órgãos foram fortalecidos a partir de 1988, sem nenhum mecanismo efetivo de controle. Juízes, promotores e policiais, por exemplo, têm vencimentos acima do teto constitucional. Atualmente, essas estruturas, povoadas pelos filhos das elites, formam um estado paralelo dentro do estado de direito.


Pior que a judicialização da política é a politização do Judiciário.


Ademais, a aliança espúria e virulenta entre setores do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário com a imprensa, desde o chamado “Mensalão” e agora na “Operação Lava Jato” - tramando jogadas midiáticas com traços fascistas -, constitui num perigo inominável não somente para a ordem democrática, mas também para todos os cidadãos e as demais instituições sociais. Quando a acusação em doses cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de culpa, chantagem e difusão do medo, mesmo não havendo investigações suficientes, provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e promover caça às bruxas flerta-se com um estado totalitário.


O que a Lava Jato investiga de fato, por meio de investigações secundárias, não é a corrupção na Petrobras, não é a ação corruptora de empreiteiras, não são casos de lavagem de dinheiro: são “os governos do PT”.
(Jânio de Freitas, colunista da Folha).


Como escreveu o jurista Fábio Konder Comparato, o caráter patrimonialista, elitista, hermético e autoritário do Judiciário brasileiro fez com que esse poder se tornasse o menos transparente da República, avesso a investigações de toda ordem, impedindo, desde sempre, que as inúmeras denúncias de corrupção e favorecimento de seus quadros e de elites políticas tradicionais fossem punidas nos limites da lei. Ao contrário, passa-se, em parceria com a mídia (serviçal dos interesses das elites e, simultaneamente, o tribunal da santa inquisição da contemporaneidade) uma falsa imagem de austeridade e idoneidade moral do judiciário.
E não adianta esconder: os excessos e arroubos autoritários cometidos por juízes, policiais e promotores na Lava Jato fizeram com que o primeiro poder a ser questionado, nesse momento, seja justamente o Judiciário.

5. Garantir as conquistas SOCIAIS e buscar saídas seguras para as crises política e institucional

Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. (RIBEIRO, 1995, p. 120)

Não há democracia numa sociedade estamental, como era o Brasil até bem pouco tempo. Porém, para além da liberdade, a igualdade de direitos faz parte do processo de consolidação da cidadania e é fundamento das democracias contemporâneas. Não é possível, em pleno século XXI, que as elites sociais, políticas e econômicas brasileiras continuem a defender a concepção liberal tradicional de democracia; ou seja, um modelo de governança cujo objetivo maior é manter o poder político nas mãos de poucos e inacessível à população. As democracias contemporâneas têm como imperativo ético a consolidação da cidadania.


Não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios historicamente acumulados. 
Não é possível alcançar a paz sem perder nada.


Com a Constituição de 1988 incorporamos, mesmo que lentamente, os pressupostos basilares de um estado democrático e de direito. Porém, ainda resta um grande caminho a ser percorrido rumo a efetividade da cidadania em nosso país. A violência institucional, os preconceitos, o racismo, a seletividade dos sistemas de justiça criminal e de segurança pública, o ódio travestido de nacionalismo, a fragilidade do Estado na promoção da justiça e na consolidação de direitos indicam que “se muito vale o já feito, mais vale o que será”.
Portanto, uma crise, por mais aguda que seja, não pode colocar em risco os poucos avanços conquistados nas últimas três décadas.
Não se pode deixar de reconhecer que os governos do PT e este partido têm, também, muitas responsabilidades pelo recrudescimento das disputas em curso. As escolhas que foram feitas no passado por Lula (concessões ilimitadas aos grupos políticos tradicionais; subserviência à política econômica do capitalismo rentista; pacto entre elites dos mundos do trabalho e empresarial; incapacidade de propositura de reformas estruturais, entre outras) e atualmente por Dilma (inabilidade política para a negociação; erros estratégicos na concessão aos grupos de direita, em detrimento das demandas populares, ocasionando um distanciamento das bases sociais; composição da base de governo marcada pelo fisiologismo e inabilidade política, entre outros) certamente contribuíram para o caos instalado. Porém, impopularidade e equívocos administrativos na condução do Estado não justificam um processo de impedimento sem crime de responsabilidade caracterizado, como determina a Constituição.


Quando no poder, o PT não foi firme o suficiente na luta pela memória e pela verdade e foi incapaz de reformar o sistema de segurança pública: essa estrutura jurídico-policial criada para incriminar, perseguir, vigiar e punir os pobres, os trabalhadores, os movimentos sociais, os negros, as mulheres e outras minorias. Ao contrário, o PT manteve intocados os torturadores e assassinos incrustados nessas estruturas e que desde sempre deram o devido respaldo à direita.


Entre os vários engodos patrocinados, propositalmente, pela mídia tradicional está a confusão que associa o processo de impeachment à operação Lava Jato. Como se sabe, uma coisa não tem nada a ver com a outra. As motivações que ensejaram o pedido de impedimento são diferentes dos objetivos da operação. Contudo, lamentavelmente, a Lava jato tem servido para alimentar os grupos que defendem o impeachment.
Em relação ao pedido de impedimento da presidente, alguns vícios são claros para um observador atento. Um princípio basilar do direito aponta que um julgamento nunca pode ser processado por “juízes” com evidentes conflitos de interesse com o fato julgado. Acontece que, na comissão do impeachment, 31 deputados são denunciados por variados crimes e lutam pela sobrevivência a qualquer custo, sem contar que o aceite para o processo de impedimento foi ato do presidente da Câmara, réu em vários processos, numa evidente estratégia de retaliação ao partido da presidente que ajudou na aprovação de abertura de processo de sua cassação no Comitê de Ética (?). Ademais, o argumento das pedaladas fiscais é claramente insuficiente, pelo fato de que os presidentes anteriores e atualmente outros mandatários do poder executivo (governadores de estados) usam das mesmas estratégias de manobras contábeis, sem constrangimentos. Por fim, não é possível afastar a presidente e colocar em seu lugar um vice que, quando no exercício do mandato presidencial, também assinou decretos similares àqueles que ensejariam a perda do mandato da atual presidente. Isso sem contar que, na linha de sucessão, depois de Temer vem Eduardo Cunha e Renan Calheiros (além do presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski). Em relação aos três políticos, podemos plagiar o Ministro Luís Roberto Barroso, do STF: “Meu Deus do céu! Essa é a nossa alternativa de poder?” E em relação ao Ministro Lewandowski, por mais que o respeitemos e admiremos, o exercício da presidência da República por um juiz que não foi eleito para tal fim, salvo em casos excepcionalíssimos, constituiria um flagrante desrespeito à soberania popular que se expressa na representação determinada pelas urnas.


6. Por uma concertação nacional
Porém, a saída para a crise atual (um jogo no qual todos perdem) deve ser pela via da política e não pelos tortuosos caminhos judiciais e/ou policiais. Em defesa da democracia, da Constituição e do Estado de direito é fundamental que as lideranças políticas e da sociedade, de variadas matrizes ideológicas, pactuem uma concertação com vistas à superação desse trágico momento nacional, criando condições para uma transição dentro dos marcos da legalidade, não para acomodar interesses escusos, mas em nome de um bem maior: o país e seu principal patrimônio, o povo brasileiro.
As ações da mídia e do juiz Sérgio Moro, apoiados pelas lideranças políticas pró-impeachment parecem não apontar para uma disposição ao diálogo. Continua-se buscando o confronto a todo o custo, mesmo depois de inúmeras manifestações de segmentos sociais e populares exigindo o respeito à legalidade e à Constituição e rejeitando o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. 
Por outro lado, somente uma reforma política profunda propiciaria uma estabilidade para o sistema político.
É importante lembrar que, com as instituições políticas e de representação em frangalhos, nenhum governo terá legitimidade e condições objetivas para pactuar uma transição, a não ser por vias negociadas. Portanto, essa concertação deve ser suprapartidária e envolver entidades da sociedade civil como a CNBB (por exemplo, que tem demonstrado apreço à ordem democrática e buscado, através de inúmeros comunicados e posicionamentos institucionais, uma saída negociada para a crise).
De imediato, uma concertação política, que é diferente de uma coalizão política, poderia resolver os impasses atuais. Uma coalizão é formada por atores que têm ideias e crenças similares e se associam tendo em vista objetivos comuns. Uma concertação é articulada entre atores que, mesmo tendo crenças pessoais, grupais e objetivos diferentes se associam com vistas a interesses maiores, para além dos negócios e interesses particularistas ou de grupos. No caso, uma concertação capaz de construir uma transição segura, legalista e nos marcos democráticos.
Quem sabe, uma concertação que construa uma solução a garantir o cumprimento do mandato da atual presidente e, ao mesmo tempo, crie condições para a realização de eleições gerais, incluindo, com todos os riscos, um novo sistema de governança: um semipresidencialismo que resguarde o apreço do povo brasileiro à figura do presidente, mas que tenha a figura do primeiro-ministro na condução do governo. Essa concertação em prol do país teria condições, por exemplo, de propor essa alteração na Constituição.
Para aqueles que pensam no país e não no seu umbigo está na hora de buscar soluções seguras para a crise. Caso contrário, a aposta no caos terá custos altíssimos para a sociedade, mas, certamente, para aqueles que pensam em sair ilesos desse processo dantesco no qual estamos mergulhados.

Referências bibliográficas:

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