sábado, 14 de janeiro de 2017

Governo Obama, que apoiou o golpe, não deixa saudades


No último dia 10 de janeiro, Obama fez seu discurso de despedida. Repetindo a fórmula que deu certo nesses oito anos de governo, um pronunciamento cheio de frases de efeito (como aquela que alavancou sua primeira eleição: yes, we can) e uso apelativo à emoção do expectador.

Quando foi assunto à Casa Branca, pensávamos que ele seria um presidente capaz de alterar, mesmo que minimamente, a relação imperialista dos EUA com o mundo.

Com simpatia e muita mídia, sorriso farto no rosto, sempre posando de bom mocinho, ele cumpriu à risca o ritual de um presidente americano: promoveu guerras, apoiou golpes na América Latina (inclusive no Brasil), esteve do lado de Wall Street todo o tempo.

Durante seu governo, ficamos sabendo que a espionagem americana usurpa a independência e autonomia dos países, bisbilhota vidas de autoridades mundo afora e trama guerras, golpes e intervenções: especialidades de um país que se acha “dono do mundo”.

Como donzela traída depois que o episódio foi vazado, via Edward Snowden, Obama disse que reverteria essa política invasiva. Conversa para boi dormir!

No caso brasileiro, a reversão se deu no apoio escancarado ao golpe. E são vários os que confirmam essa empreitada norte-americana, depois que o governo Obama fez esses experimentos golpistas também em Honduras e Paraguai. Basta lermos os recentes depoimentos de Snowden ou nos vários textos e documentos publicados por Glenn Greenwald, que revelou os documentos secretos obtidos por WikiLeaks e disse: “Não tenho dúvida de que o Brasil é o grande alvo dos Estados Unidos". Também o famoso cineasta Oliver Stone, quando esteve aqui, ao passado, declarou: "[o impeachment] é, verdadeiramente, a definição de um golpe de Estado. E os Estados Unidos apoiaram. Eles reconheceram o novo governo imediatamente".

Mas, se quisermos, podemos recorrer ao especialista mais conceituado em política exterior do Brasil e suas relações internacionais, o historiador Moniz Bandeira, para entender a intervenção golpista dos Estados Unidos em nosso país: “Esse golpe, entretanto, deve ser compreendido dentro do contexto internacional, em que os Estados Unidos tratam de recompor sua hegemonia sobre a América do Sul, ao ponto de negociar e estabelecer acordos com o presidente Maurício Macri para a instalação de duas bases militares em regiões estratégicas da Argentina. O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff não se tratou, portanto, de um ato isolado, por motivos domésticos, internos do Brasil”.

Obama continuou sendo o “senhor da guerra” para a alegria da poderosíssima indústria bélica: somente em 2016, os Estados Unidos lançaram 26.171 bombas em sete países, disse o especialista norte-americano em política externa e segurança nacional, Micah Zenko, no site oficial do Conselho de Relações Exteriores. Deveria devolver o prêmio Nobel da Paz que ganhou quando o mundo achava que ele seria diferente e melhor.

Cumpriu seu papel de "imperador" da matilha rentista que domina o mundo. Sequer fechou Guantánamo (ícone das bárbaras violações aos direitos humanos, patrocinadas pelos guerreiros do norte).

É verdade a hostilidade de uma parte dos brancos racistas norte-americanos contra Obama; é verdade que ele criou o ObamaCare - uma conquista os segmentos mais pobres daquele país. É verdade que ele agiu com energia para evitar a intervenção contra o Irã. É verdade que seu segundo mandato foi inviabilizado por um Congresso conservador, que vetou praticamente todas as suas propostas. Isso não diminui suas responsabilidades e não atenua seus fracassos.

Internamente - numa democracia que é ótima para o americano de classe média, empregado e preferencialmente dono de uma arma -, Obama foi um bom presidente. (E também essa será, provavelmente, a avaliação dos estudiosos que adoram falar de democracia procedimental, diga-se de passagem).

Para os demais americanos, inclusive os pobres, os negros - que continuaram sendo mortos pela polícia americana - e os imigrantes que vivem em seu país, seu governo mantém a marca dos governos americanos do pós-guerra: controle e repressão. Aliás, os vários homicídios de negros pela polícia, durante seu governo, mostram que sequer no âmbito doméstico Obama quis (ou teve condições, sendo um pouco generoso) de escrever uma história diferente.

Em seu discurso, Obama falou muito de democracia. Acertou em algumas dessas frases de efeito, quando disse, por exemplo, que “a democracia pode cambalear quando entregue ao medo”.  Mas, sem ter muito a apresentar aos conterrâneos e ao mundo, apostou em ratificar o lugar de “lobo mau” para Trump (como se o mundo desconhecesse o pedigree do novo presidente americano). Para todos os efeitos, somos maduros o suficiente para entendermos que nem sempre a versão de Chapeuzinho Vermelho espelha a verdadeira história.

E por falar em democracia -  a menina-dos-olhos dos norte-americanos -, trata-se de um belo “conto da carochinha” que teimamos em acreditar. Cumprindo os ritos formais (eleições regulares, liberdade de expressão e opinião, mídia livre, poderes pretensamente autônomos), os regimes democráticos simplesmente institucionalizaram, nos últimos 30 anos, governos eleitos para servirem de prepostos daqueles que dominam o mundo: os rentistas que concentram riqueza e renda. Todos a serviço do grande capital.

Portanto, Obama será lembrado como o 44º presidente dos Estados Unidos. E, para nós, como o presidente cujo governo apoiou mais um golpe no Brasil. Sendo assim, bye, bye, Mr. Barack Obama!


Entrevista "Brasil de Fato MG" sobre sistema prisional brasileiro

Penitenciária de Manaus, onde foram executados 56 presos no início deste ano.

“POBRES E NEGROS SÃO AS PRINCIPAIS VÍTIMAS DO SISTEMA PRISIONAL”, AFIRMA ESTUDIOSO

VIOLÊNCIA: Percentual de aprisionados no país cresce 15 vezes mais que a população

Wallace Oliveira - BdeF Minas

A população carcerária no Brasil já ultrapassou mais de 600 mil pessoas. A cada dia um preso é assassinado. Só em 2016, foram mais de 370 mortes violentas nesses estabelecimentos, segundo dados públicos. Nos últimos dias, no Amazonas e em Roraima, o país presenciou o maior massacre em unidades prisionais desde a chacina de Carandiru. Entretanto, governos, meios de comunicação e a maioria da população insistem em apontar como solução medidas que, aplicadas ao longo de décadas, já se mostraram fracassadas: aumento das prisões, punição e violência promovida pelo Estado, em um modelo que atinge seletivamente os mais pobres, negros e jovens da periferia. Para discutir esse assunto, o Brasil de Fato MG conversou com o cientista social Robson Sávio, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas, o NESP, e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Sávio também é membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Minas Gerais e coordenador-adjunto da Comissão da Verdade em Minas.


Brasil de Fato MG: O que se pode dizer sobre os presídios em funcionamento em Minas Gerais atualmente? Qual a condição das pessoas que estão nesses presídios? Eles são adequados à recuperação?
Robson Sávio: A população carcerária cresce absurdamente no Brasil. Entre 2005 e 2012, portanto em sete anos, esse aumento foi 74%, enquanto a população brasileira cresceu apenas 5,3% no mesmo período, segundo o IBGE. Em Minas Gerais, o número de presos foi multiplicado por sete: cresceu 624% nesse período. Hoje, o estado tem quase 70 mil presos, sendo que mais de 40% sequer tem uma sentença definitiva (os chamados presos provisórios). A superlotação do sistema prisional de Minas é da ordem de 111%. Ademais, temos problemas estruturais, como a questão da qualificação dos agentes prisionais. Com exceção dos presos que estão abrigados nas Associações de Proteção e Assistência ao Condenado, as Apacs, a situação do sistema tradicional reproduz o caos do sistema prisional brasileiro. Nessas condições precárias, com vínculos familiares e sociais rompidos, entregues às facções que comandam as prisões, não há que se falar em “recuperação”. As taxas de reincidência criminal no país chegam a 80% e Minas não foge à regra.

Brasil de Fato MG: O primeiro presídio privado do país, gerido por PPP, está em Ribeirão das Neves (MG). O modelo foi anunciado como forma de se promover a segurança, eficiência e uma condição digna para os detentos. Justificativas semelhantes aparecem no PLS 513/2011, sobre a contratação de parceria público-privada para construir e gerir estabelecimentos penais. Como você vê esse modelo?
Robson Sávio: O presídio administrado por PPP de Neves tem a função de ser uma espécie de fotografia bonita para justificar a sanha privatista que ronda o sistema prisional mineiro e brasileiro. Nele, não há superlotação; os presos são seletivamente escolhidos, porque têm que trabalhar. Há condições para o exercício laboral, assistência médica, jurídica e social. Ora, se essas mesmas condições, determinadas pela Lei de Execução Penal (e não cumpridas pelo Estado), fossem implementadas nas prisões do sistema tradicional, não teríamos esses locais transformados em quartéis-generais do crime organizado. Ademais, os presos do presídio privado de Neves são monitorados por sistemas eletrônicos dos mais modernos; tudo para controlar a unidade prisional e evitar fugas e rebeliões. E o custo, muito mais alto que o sistema tradicional. Ou seja, o estado investe muito no seu cartão-de-visita a justificar a privatização dos presídios e deixa à míngua uma imensa quantidade de presos.  Como temos uma expansão da indústria do preso com o adensamento da massa carcerária - e muitos homens de bens e empresas ganham com isso (inclusive com o caos e o descontrole estatal do sistema) -, os presídios privados estão se transformando num novo filão para o ganho de capitalistas que só pensam em dinheiro; nunca nas pessoas. A carnificina de Manaus prova que prisões terceirizadas tendem a complicar ainda mais a questão prisional.

Brasil de Fato MG: Na última semana, Temer e o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, anunciaram medidas para amenizar a crise no sistema prisional. A principal ação seria um gasto de mais de R$ 400 milhões para construir novos presídios e aumentar a segurança dos que já existem. Qual a sua avaliação sobre essas medidas?
Robson Sávio: Há uma máquina de aprisionamento no país. A sociedade, vingativa e mal informada, acha que a prisão é o lenitivo para todos os crimes; o poder judiciário (cujos juízes, promotores e advogados sequer conhecem a realidade prisional) age seletivamente, entupindo as cadeias de usuários e microtraficantes de drogas e ladrões de galinhas - que serão as presas fáceis das organizações criminosas que comandam o sistema. Aliás, dos quatro países com as maiores populações carcerárias do mundo, o Brasil é o único que desde 2008 aumentou seu número de presos. Este dado revela que existe uma clara preferência do Judiciário brasileiro pelo encarceramento em massa e que os juízes que prendem não se sentem responsáveis pela tragédia que é o nosso sistema penitenciário. Por fim, o poder executivo colabora com essa máquina do aprisionamento, seja através da ação seletiva das polícias (que prendem muito e prendem mal) ou não tomando as medidas necessárias para uma gestão e controle eficientes do sistema. Ora, construir mais prisões nessas condições é colaborar com o adensamento das facções criminosas, com a indústria do preso e da insegurança (que enriquece muitas pessoas e instituições) e não resolve absolutamente em nada a situação atual nem futura.

Brasil de Fato MG: Quando se discute o combate à criminalidade no Brasil, por que tantas pessoas preferem vingança e punição à reeducação?
Robson Sávio: Temos uma cultura punitiva, que começa dentro de casa, espraia-se nas relações interpessoais e sociais, passa pela educação formal e ratifica a crença segundo a qual a punição é melhor que a prevenção, a negociação, a mediação de conflitos, etc. Ademais, nosso modelo educacional não educa para a solidariedade, responsabilidade, cidadania. É cada um por si e Deus por todos. Nessas condições, com um sistema de justiça altamente seletivo, polícias violentas e poderes públicos sem credibilidade, parece que a única solução é tentar de todas as maneiras se dar bem e torcer para que a lei valha somente para o outro que, quando erra, deve ser severamente punido. De uma maneira geral, todos achamos que o outro é perigoso e que nós e os nossos somos os bons. Acontece, que o outro também pensa assim sobre nós. Quem entra, então, para o sistema de justiça criminal? Primeiro critério de entrada, a renda; segundo, a etnia e terceiro o acesso à justiça. Assim, pobres, negros e jovens da periferia sem advogados são as principais vítimas desse sistema. Quem tem bons advogados, é branco, classe média serve-se dessa legislação propositalmente confusa e com inúmeros recursos e conseguirá, na maioria das vezes, se livrar das armadilhas do sistema de punição e vingança social, concretizado no sistema prisional.

Brasil de Fato MG: Que alternativas podemos pensar ao atual sistema prisional?
Robson Sávio: São medidas de médio e longo prazo: separar os membros de facções criminosas para evitar novos massacres; reformar nossas polícias e a justiça; controlar as prisões; tirar os presos condenados das delegacias; separar presos perigosos dos demais; ampliar as vagas no sistema prisional (não com a criação de mais prisões, mas com a liberação de vagas ocupadas por presos provisórios); estimular a participação da comunidade nos processos de ressocialização; ampliar programas de prevenção ao uso de drogas, oferecendo oportunidades a jovens em situação de vulnerabilidade fora das prisões e de tratamento de dependentes dentro das prisões; criar programas de acompanhamento e orientação para egressos; intensificar a aplicação das penas e medidas alternativas, com fiscalização eficiente do poder público; oferecer acompanhamento jurídico dos processos dos condenados;  manter os condenados no seu local de origem, visando o não rompimento de vínculos familiares e sociais; proporcionar a todos os presos com sentença definitiva a oferta de trabalho e educação. A empreitada é grande. Mas, precisa ser enfrentada. O resto é conversa pra boi dormir.


Fonte: Brasil de Fato MG, edição 168, de 13/01/2017, página 11.