terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Pequeno inventário de grandes conquistas




Às vezes ficamos lamentando a situação vexatória de um país que está sendo lançado ladeira abaixo, depois do golpe de 2016. Mas, esquecemos que muitas vitórias foram alcançadas nos últimos dois anos.

E é preciso registrar essas conquistas que, desde então, foram - lenta e gradualmente - consolidando a resistência democrática.

A luta dos setores populares e democráticos é contra uma poderosa coalização que tomou de assalto o poder e, amalgamada nos três poderes da república, tem o apoio do dinheiro do capitalismo rentista nacional e internacional e as mãos sempre invisíveis da patota do Tio Sam. Por isso, é preciso valorizar cada conquista...

Vamos iniciar aqui um inventário de avanços políticos da resistência ao golpe. Cada um(a) que ler este artigo poderá acrescentar outros pontos que fazem da luta pela democracia de fato um processo político digno de nota e que, mais cedo ou mais tarde, redundará na retomada do controle do poder central e, em consonância com o preceito constitucional, fará valer o princípio segundo o qual “todo poder emana do povo”.

Ganhamos a narrativa acerca do golpe. Graças a uma poderosa rede comunicacional envolvendo diferentes atores que, desde a primeira hora, denunciaram a ruptura democrática no fajuto impeachment sem crime, foi-se consolidando um consenso segundo o qual tal processo era um golpe travestido de legalidade. Hoje, o mundo inteiro percebe que o Brasil é uma nulidade em termos de democracia. Qualquer mortal sabe que os golpistas são tratados com desdém pela comunidade internacional.  Até mesmo a mídia empresarial nativa, serviçal de primeira hora dos golpistas, foi obrigada a usar o termo “golpe”, dado que já não se pode esconder o óbvio ululante.

Há um ressurgimento potente de vários movimentos sociais, principalmente ligados às questões de gênero (feministas e LGBT+), étnicos (movimentos negros) e geracionais (juventudes). Esses movimentos lideram importante resistência ao golpe e denunciam suas feições machista, racista, homofóbica e velhaca.

Criou-se uma imensa polifonia jornalística e comunicacional (que cresceu nos dois últimos anos), contrapondo com qualidade e profundidade a mídia empresarial-golpista; articulando parte da opinião pública progressista e, também, divulgando e produzindo informação voltada aos segmentos sociais de base a consolidar uma resistente narrativa contra os golpistas. Sites, blogs e redes sociais se tornaram importantes mecanismos de mobilização e resistência política.

Por isso, setores historicamente poupados das narrativas golpistas e que sempre se aliaram à Casa Grande foram solenemente desnudados nos últimos anos: as castas jurídicas incrustradas no estado e capitaneadas por segmentos elitistas e antidemocráticos do Ministério Público, do Judiciário e das polícias, principalmente a federal, entraram solenemente no rol dos assaltantes da democracia e de lá não sairão imaculados, como aconteceu anteriormente no golpe de 1964, cujas narrativas poupam esses históricos colaboracionistas das elites nacionais. Hoje, qualquer brasileiro sabe que o golpe, também, veste toga, “com o Supremo; com tudo”.

As esquerdas, tendencialmente ensimesmadas em seus microuniversos políticos, foram provocadas ao diálogo e têm buscado construir consensos importantes em torno de projetos comuns para o país. Dos setores de esquerda nasceram e consolidaram as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo que se constituem em mecanismos potentes de formação política, construção coletiva de plataformas programáticas para um futuro governo popular, além de atuarem na organização e formação das bases sociais.

A classe média que, como um pêndulo sempre está do lado que mais lhe convém, à medida que foi percebendo (pela narrativa contra-hegemônica da mídia alternativa e democrática) que o golpe não era somente contra os pobres, mas também contra si, começou a se reposicionar politicamente. Isso explica, em parte, nesse momento, a adesão de setores importantes dessa classe às candidaturas de esquerda.

Os falaciosos discursos anticorrupção, que reduziram setores da classe média a midiotas e manifestoches, foram desmascarados e desnudaram o caráter moralista e classista de segmentos que não têm nenhum compromisso com a ética pública e só se preocupam com a defesa de privilégios.

O golpe também lançou luz sobre os verdadeiros interesses de movimentos religiosos ultraconservadores que se espraiam pelo país, em parte bancados como o financiamento estadunidense. Está cada vez mais cristalina a participação de líderes religiosos que usam da boa-fé do povo para manipular, espoliar e enganar a população. Nunca se percebeu com tanta clarividência que há um bando de falsários, sepulcros caiados e enganadores que se escondem sob o manto da religião para manter o povo alienado e na condição de miséria e pobreza e, nessa condição, fazem proselitismo e faturam alto.

O povo, de maneira geral, já percebe que os partidos que perderam as eleições de 2014 (encabeçados pelo PSDB e que não aceitaram democraticamente os resultados das urnas) foram reduzidos a pó. Para disputar o próximo pleito, a direita desavergonhada tenta ressuscitar a velha política do “panis et circenses”. Não tendo nenhum candidato competitivo às eleições deste ano, corre atrás, desesperadamente, de um salvador da pátria ou de um palhaço de auditório, sob o comando do sociólogo-rei, que se encontra nu e sem súditos.

As “reformas” encabeçadas pelos golpistas mostraram à opinião pública que os verdadeiros ganhadores do golpe são os banqueiros, os latifundiários, os especuladores e rentistas e que o governo de plantão, gerente de tais grupos, só serve para contrair interesses do povo, da nação e da democracia, a favor do sistema financeiro global. As pesquisas de opinião indicam a desaprovação quase unânime do receituário ultraliberal comandado por Meireles et caterva, o preposto dos banqueiros e especuladores, e tocado por um congresso que mais se assemelha a uma turba de larápios.

Está claro, também, que as elites agrárias e empresariais que ainda dominam o Brasil e comandam o atual governo (herdeiras da cultura colonial e submissas historicamente à burguesia mundial, sem projeto nacional e alheias aos interesses do país) carregam a tradição elitista, racista, etnocêntrica, patriarcal e violadora dos direitos humanos. São os filhotes da Casa Grande.

Por tudo isso e outras conquistas não narradas neste pequeno texto temos muito que comemorar.  

Sabemos que o caminho para a reconquista da democracia real é longo. Por isso, continuemos a evitar ilusões messiânicas; atuemos em diversas frentes, na consolidação de um projeto nacional (que inclua um referendo revogatório das reformas de Temer e se comprometa com profundas reformas estruturais: política, tributária, da mídia, da justiça, entre outras). Retomemos as ações estratégicas de organizações de base, trabalhando a formação política; unifiquemos as lutas sociais e continuemos a criar novos mecanismos de informação e formação alternativos aos oligopólios da mídia.

A luta continua...


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Sobre intervenção militar no Rio...



Tenho pouco a dizer: antes de tudo, há que se produzir uma análise política e rechaçar toda tentativa interesseira de transformar esse evento num discurso técnico. Nas circunstâncias que ocorre, trata-se, claramente, de opção política; no caso, politiqueira.

(1) Pode vir algo de bom de um governo ilegítimo, aliado aos setores mais retrógrados do país e refém de segmentos autoritários incrustados na justiça, no MP, nas polícias e nas Forças Armadas e que tem dado reiteradas provas de desrespeito ao povo, à Constituição, aos direitos humanos e até mesmo à soberania nacional?

(2) Medidas paliativas de força bruta só tamponam as causas reais da violência e criminalidade. O presidente-vampiro aposta no sucesso de tais medidas para tentar faturar politicamente no caos da segurança pública carioca. A histórica comprova: não logrará êxito político.

(3) Enquanto isso, o uso desmedido das Forças Armadas, militarizando ainda mais um sistema de segurança filhote da ditadura, tende a tratar o fenômeno da criminalidade da pior forma: caçando inimigos internos seletivamente escolhidos e protegendo as engrenagens que movimentam o mercado da insegurança e gera muito lucro para alguns. Até quando as Forças Armadas se prestarão a esse papel antidemocrático articulado por elites civis?


(4) Até o mais coxinha dos mortais sabe que a violência no Rio é uma política de estado, sendo os três poderes locais ora reféns e ora parceiros da indústria que articula crimes e negócios dos mais variados. E todos sabem que intervenções militares caçam lambaris e protegem os tubarões. Quem estudou a ditadura conhece bem essa e outras histórias.

(4.1) O negócio das drogas é a ponta do iceberg da criminalidade no Rio. Não sejamos manifestoches, nem midiotas, mais uma vez, acreditando na narrativa da mídia, principalmente da Globo, e em certos especialistas que focam seus discursos somente na malfadada "guerra às drogas" (que mata e prende aviõezinhos e protege donos de helicópteros). Tais narrativas desdenham as causas estruturais da violência e, às vezes, lucram com o caos da insegurança...

(5) Intervenções militares também servem para reforçar políticas higienistas, de controle social, criminalização da pobreza, busca de bodes expiatórios e tudo que contenta a mídia inquisitorial e, no caso do Rio, os moradores de Ipanema e Copacabana.

(6) Desde a Constituição Federal de 1988 é a primeira intervenção militar no país. Esse tipo de medida é tão grave que, quando tomada, até suspende mudanças na constituição durante sua vigência. Nesse período, houve tentativas, no Espírito Santo e em Alagoas, p. ex. Mas tínhamos governos e uma PGR – instada a se manifestar - democráticos que não cederam às pressões dos autoritários, sempre prontos e de plantão.

(6.1) A criação do ministério da segurança pública será a próxima medida a reforçar as castas autoritárias do sistema de justiça criminal, ávidas por ocupar ainda mais espaço político nessa democracia de mentirinha.

(7) Por fim, os governos democráticos pós-ditadura foram incapazes de enfrentar as mazelas históricas dos sistemas de justiça criminal e segurança pública que não foram reformados pela CF de 1988. Ao contrário, as agências públicas desses setores foram empoderadas. (Às vezes, vítimas contemplam seus algozes). Por isso, são reféns desses sistemas. Ou seja, desde o golpe, cada vez está mais claro que políticos eleitos e também os golpistas estão nas mãos, nas togas e nos fuzis de juízes, promotores, policiais e, também (e muito) das Forças Armadas.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Campanha da Fraternidade: Superação da Violência


Campanha da Fraternidade de 2018, organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem como tema “Fraternidade e Superação da Violência”.

Do Carnaval até a Semana Santa os cristãos são convidados a refletirem sobre formas de superação da violência no âmbito individual, comunitário, social e institucional.

Reproduzo, abaixo, uma entrevista que concedi à Revista “Bote Fé”, de Edições CNBB, sobre o tema. As respostas estão baseadas no texto produzido pelo Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas que colaborou com a CNBB na produção do diagnóstico da violência, para o texto-base.

SUPERAÇÃO DA VIOLÊNCIA
“Não há solução para a violência fora das discussões que ocorrem no âmbito da política”, esta é a opinião de Robson Sávio Reis Souza, doutor em Ciências Sociais, integrante da Rede de Assessores do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep/CNBB) e que trabalhou como colaborador do Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2018. Ele também é professor da PUC Minas, onde coordena o Núcleo de Estudos Sociopolíticos, especialista em Segurança Pública e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O professor – que também é autor do livro “Quem comanda a segurança pública no Brasil: atores, crenças e coalizões que dominam a política nacional de segurança pública” (Editora Letramento, 2015, 336 p.) – ajuda a compreender a natureza da violência no Brasil e os possíveis caminhos para a sua superação.

A ideia de que o povo brasileiro é ordeiro e de que há uma sociabilidade pacífica é um mito nacional? 
A experiência do viver em paz fundamenta a autoimagem de um povo que se concebe como pacífico, ordeiro e inimigo da violência. Contudo, essa ideia não apaga as contradições. Ao mesmo tempo em que se ostenta a vida pacífica, produz-se e promove-se a violência, tanto no espaço público como no ambiente privado de casas e empresas; nas interações pessoais diretas ou mediadas pela tecnologia. Constata-se que, até mesmo nas relações sociais cotidianas, o equilíbrio necessário à existência pacífica tem aparecido frágil e suscetível a abalos, inflamados frequentemente por razões banais. Nesse movimento de transformação social, tem emergido uma sociabilidade que vai se concretizando em ações cotidianas violentas. A cordialidade parece ceder lugar à intolerância. O compartilhamento negociado de espaços e recursos parece, então, correr o risco de ser substituído pela imposição autoritária de pontos de vista e a subjugação do outro pelo uso da força, seja ela simbólica ou, em certos casos, até mesmo física. Em razão de fenômenos como esses, é possível suspeitar que a sociedade brasileira possa estar consolidando modos de vida referenciados no uso da força e da violência.
A violência se torna o fio condutor da forma como se realiza a sociabilidade, isto é, a forma como uma pessoa interage com as demais em um certo grupo social.
Por vezes, para combater a violência, escolhem-se condutas violentas. A concepção punitiva da justiça feita pelas próprias mãos, o incremento dos equipamentos de segurança pela população em busca de autoproteção, a exigência do maior rigor nas leis e do aumento dos presídios são exemplos de como o discurso contra a violência às vezes se converte em práticas que podem vir a aumentar ainda mais a sociabilidade violenta. Isso ocorre quando se pretender fazer o combate da violência pelo recurso a instrumentos potencialmente geradores de mais violência.


No texto base da CF 2018 vocês falam de uma violência multifacetada e epidêmica que faz parte da história do país. Multifacetada e epidêmica? O que estas expressões dizem sobre a natureza da violência em nosso país?
O Brasil é uma sociedade injusta, excludente e extremamente desigual que exibe uma democracia sem cidadania. Injustiça, exclusão e desigualdade são fatores que geram múltiplas formas de violência. A fome, o desemprego, a falta de moradia, de políticas públicas de proteção e promoção de direitos são tipos de violência que afetam a dignidade humana.
Apesar de ser a oitava maior economia mundial, é o décimo país mais desigual do mundo, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano, de 2016, elaborado pela Organização das Nações Unidas. 
Em relação à violência letal, por exemplo, os números apontados pelo Mapa da Violência 2016, mostram que, no Brasil, cinco pessoas são mortas por arma de fogo a cada hora. A cada único dia são 123 pessoas assassinadas dessa forma.
Por ano, quase 60 mil brasileiros são assassinados. A maioria pobres, negros, jovens e moradores da periferia. É uma violência seletiva. Não atinge a todos. No Brasil, há locais mais seguros que a Europa e mais violentos que a Síria.  Talvez, por isso, a violência letal não apareça como um escândalo que clama aos céus, para muitos segmentos da sociedade e dos governos.
Essas cifras revelam que, no Brasil, ocorrem mais mortes por arma de fogo do que nas chacinas e atentados que acontecem em todo o mundo. Contam-se mais homicídios aqui do que em diversas das guerras recentes.

Os episódios de violência intensificaram-se e, ao que parece, tornaram-se comuns também em médios e pequenos centros urbanos, deixando de ser um fenômeno típico das grandes metrópoles. O que explica esta realidade?
Se antes a violência era um problema relativo às grandes cidades, em tempos recentes, numerosos fatores fizeram com que a violência chegasse também aos médios e pequenos municípios. Além disso, ela se disseminou por todo o território nacional, de modo que – apesar das variações regional ou local em sua intensidade – a violência é hoje um problema em todo o país.
O incremento da violência pelo interior do país é determinado por múltiplos fatores, dificilmente redutíveis a uma causalidade única. Entretanto, não há como ignorar a influência do contexto socioeconômico na geração da violência.
Os dados disponíveis permitem afirmar que o sistema de segurança pública e de justiça criminal é ineficaz. Com o aumento da criminalidade a partir da década de 1980 foi-se consolidando um contexto em que a impunidade, a maior procura por drogas ilícitas e a maior disponibilidade de armas de fogo formaram o ambiente no qual se deu o crescimento dos homicídios e de outros crimes contra a pessoa e contra o patrimônio. Ao invés de se rediscutirem o funcionamento e os objetivos do aparato estatal de segurança e justiça criminal para lidarem com a prevenção e o combate à violência urbana, assistiu-se ao incremento da indústria de armas de fogo, a medidas paliativas oi pontuais na gestão da segurança pública e à ascensão da indústria da segurança privada. É nesse contexto que se espraiou para todo o país a criminalidade violenta.

Numa mesma cidade, encontramos oásis de paz e tranquilidade e territórios marcados por extrema violência. Que fatores definem estes espaços de paz e de guerra?
Pelo menos três fatores são fundamentais para definir esses espaços de paz e de guerra. O primeiro deles é a ação (ou omissão) do poder público. Nos locais onde o Estado deveria estar mais presente, como nas periferias das grandes cidades, observa-se uma quase ausência das políticas de proteção, promoção e defesa de direitos deixando tais territórios e seus moradores, muitas vezes, entregues a grupos armados e a toda a sorte de violência e desordem social. Por outro lado, em áreas nobres, a presença do poder público se faz de múltiplas formas, garantindo direitos dos cidadãos e protegendo o patrimônio das elites. O segundo ponto que demarca a ocorrência da paz ou da guerra está relacionado ao poder do dinheiro. Quem pode pagar por segurança privada tem uma série de privilégios dentro do espaço urbano negados à maioria dos cidadãos que não possuem recursos financeiros. É dessa forma que a segurança deixa de ser direito e torna-se privilégio. Um terceiro ponto diz respeito ao tratamento seletivo dado pelos órgãos públicos, dos três poderes, em relação à garantia de direitos, como o acesso à Justiça. Quem tem condições de pagar “bons” advogados, por exemplo, tem tratamento diferenciado. Nesse sentido, o viés étnico-racial e socioeconômico é fator preponderante para proteção ou exposição à violência.
Também as interações sociais que acontecem no espaço público da política e do aparato de Estado, por vezes, tornam-se violentas. Isso ocorre quando, ao invés de se pautarem pela equidade e a observância universal das leis consensualmente estabelecidas, as relações se pautam pela dissimetria de poder. Determinadas pessoas tiram benefício privado a partir de recursos que deveriam ser, por definição, públicos. Esse modo de funcionamento privatista das instituições da sociedade torna-se um forte gerador de diversas formas de violência.

Como se manifesta a violência institucional no Brasil?
Diferentemente das formas de violência direta, existem outras que não se configuram como um fato ou evento remissíveis a um ou mais agressores que causem um dano claramente definido a outra pessoa ou a outras pessoas. Nesse caso, embora não se possa isolar e identificar claramente o agressor, persiste a agressão ainda que perceptível somente de forma indireta. Não se trata de um evento isolado, mas de um processo que acaba gerando dano a um segmento social, mesmo que, eventualmente, não se possa discernir explicitamente a intenção de produzir tal dano.
Apesar de ser mais difícil caracterizá-la, a violência no Brasil está relacionada a modelos de organização e a práticas sociais que alcançam um nível institucional e sistemático de produção e perpetuação de modos de vida violentos. Não é, portanto, apenas nas interações cotidianas que a violência transparece. Ela permeia também as instituições sociais. De fato, historicamente, o próprio Estado brasileiro age, através dos séculos, de modo a reiterar situações geradoras de violência, sobretudo no que tange à desigualdade e à exclusão.
Exemplificando a correlação entre violência e contexto social, econômico e político, vários estudos associam o aumento da violência letal – ou seja, a violência que gera morte – ocorrido na década de 1980, com a crise socioeconômica vivida naquele período. O processo inflacionário e a consequente corrosão dos salários implicaram perda de rendimentos principalmente para os mais pobres. Como resultado, aumentou expressivamente a desigualdade social.
Não se trata de uma relação linear de causa e efeito. O incremento da violência é determinado por múltiplos fatores, dificilmente redutíveis a uma causalidade única. Entretanto, não há como ignorar a influência do contexto socioeconômico na geração da violência.

Como a questão da violência vem sendo enfrentada no âmbito das políticas públicas e práticas governamentais e da legislação brasileiras? Há alguma luz no fim do túnel?
A sociabilidade violenta é uma construção. Faz-se de escolhas políticas que a cada dia se renovam. Cada escolha ou decisão política em favor da manutenção da atual (des)ordem das relações contribui para a perpetuação do modelo. Em razão disso, parece coerente afirmar que o possível enfrentamento da violência depende intrinsecamente das relações políticas.
Entendem-se, com o termo “política”, as negociações que se estabelecem para que pessoas – com interesses tão numerosos e, por vezes, antagônicos – possam dividir pacificamente um mesmo espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que não há solução para a violência fora das discussões que ocorrem no âmbito da política. Por outro lado, esse raciocínio conduz a reconhecer que cabe às decisões políticas uma parcela na responsabilidade pela perpetuação de estruturas geradoras de violência no Brasil.
Existem hoje, no Congresso Nacional, parlamentares identificados com segmentos econômicos e sociais fortemente interessados em propostas potencialmente geradoras de violência. Defendem o uso de armas de fogo pela população civil, sustentando tratar-se de um direito natural o da autopreservação. Tramitam propostas de alteração do “Estatuto do desarmamento”, não obstante o fato de este haver representado um importante passo na redução do número de mortes por arma de fogo. Há várias propostas de recrudescimento da legislação penal e de ampliação da ação discricionária das polícias, do Ministério Público e do Judiciário.
No entanto, para além deste aspecto mais visivelmente ligado à questão da segurança pública, existem inúmeras outras questões, estreitamente ligadas a interesses econômicos, que são hoje debatidas no Legislativo, não obstante o potencial motivador de mais violência de tais medidas. Destacam-se as propostas que dificultam ou impedem a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e outros povos tradicionais; as que restringem a legislação ambiental; e as que facilitam a liberação do uso de agrotóxicos. Nessas e em diversas outras medidas prevalece o interesse do ganho econômico para pequenos grupos, em detrimento do benefício de toda a população.
Quando praticada de modo a transformar o acúmulo de riquezas num fim em si mesmo ao invés de assegurar a dignidade das vidas humanas, a política gera violência. Produzindo exclusão e desigualdade social, tal forma de se fazer política faz da lei do mais forte a regra e pessoas tornam-se descartáveis.
O Papa Francisco tem se colocado firmemente contra essa cultura do descartável, “criada pelas potências que controlam as políticas econômicas e financeiras do mundo globalizado”. Em um discurso para a Associação de Movimentos Cooperativos Italianos, em fevereiro de 2015, ele ressaltou o “crescimento vertiginoso do desemprego” e os problemas que os sistemas de assistência social existentes tiveram para atender às necessidades da saúde pública. Para aqueles que vivem “nas margens existenciais” o sistema atual político e social “parece estar fatalmente destinado a sufocar a esperança e aumentar os riscos e ameaças”, afirmou o Pontífice.
O Papa tem frequentemente criticado a economia de mercado ortodoxa por estimular a injustiça e a desigualdade. Tem denunciado o fato de as pessoas serem forçadas a trabalhar longas horas, às vezes na economia paralela, em troca de um salário mensal ínfimo, porque elas são vistas como facilmente substituíveis. Segundo Francisco, quando o dinheiro se torna um ídolo, ele comanda as escolhas

Há experiências de práticas sociais que apontam para o caminho da superação da violência?
Na busca pela paz, muito frequentemente, há uma ênfase ao combate à violência direta que, se eliminada, promoveria a paz. Disso resulta uma concepção entendida por alguns estudiosos como uma paz negativa (que, per si, pode inclusive ocultar injustiças que, muitas vezes, geram novos conflitos). Destaca-se aqui, portanto, a importância do enfrentamento não somente da violência direta, mas das violências estruturais e culturais, em busca de uma paz positiva e sustentável.
Por certo, a paz não será alcançada pela mera obediência e submissão a normas, pelo medo das sanções a determinados comportamentos coletivamente rechaçados, ou pela segregação de pessoas e grupos.  Há que construir uma sociedade que, pautada na justiça, deseje a paz.
Assim, reconhecendo que a paz não se caracteriza apenas pela ausência de conflito — condição inerente à vida humana em sociedade — a concepção de “cultura de paz” está aqui entendida no sentido do “cultivo da paz”, portanto, não como algo dado, mas resultado de ações e processos multidimensionais, individuais e coletivos, claramente intencionados a produzir modos de ser e de viver que tenham a paz como valor coletivo e horizonte a ser alcançado. Em outras palavras, trata-se de construir estilos de vida voltados para a promoção da paz.
O enfrentamento de diferentes formas de violência requer o agenciamento de estratégias distintas, porém concertadas. E o entendimento de que a paz é possível e desejada deve andar pari passu com a disseminação e concretização de ações que resultem na abolição de todas as situações que a impedem.
Assim sendo, a construção da paz submete-se a diversos condicionantes, somente se podendo realizar na ação de muitos atores sociais — individuais e coletivos—, via micro e macro práticas democráticas que promovam o fortalecimento do Estado de Direito, a promoção dos direitos humanos, a participação e o controle sociais.
Portanto, o desenvolvimento de uma cultura de paz implica a ampla ação institucional, sobretudo no que tange ao Estado — e tem-se aí o papel importantíssimo dos governos e o envolvimento das instituições jurídicas — e, paralela e igualmente importante, a ação da sociedade civil, dos grupos e dos indivíduos, de modo a que instaure uma radical mudança nas relações sociais e políticas.
Em outras palavras, a construção de uma Cultura de Paz está intimamente relacionada à promoção da democracia e ao fortalecimento das instituições democráticas; ao desenvolvimento econômico e social sustentável, com garantia da participação de todos; à erradicação da pobreza e das desigualdades; à eliminação de toda forma de discriminação; ao respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; à promoção da tolerância, da diversidade e da solidariedade.



Fonte: Revista Bote Fé, ano 6, n. 21, out - dez.2017.