sábado, 16 de dezembro de 2017

Memória, verdade, justiça: passado, presente e futuro

Entrega do relatório da Comissão da Verdade em Minas - Foto: Celso Travassos/COVEMG

Para nós que compomos a Comissão da Verdade em Minas, esta cerimônia de entrega oficial do relatório final para os chefes dos três poderes do Estado, depois da realização de uma audiência pública na Assembleia Legislativa, quando entregamos o relatório à sociedade mineira, é revestida de grande significado.

Apesar de não ter caráter laudatório, é preciso registrar, rapidamente, um pouco da história da Comissão e alguns agradecimentos.

Cumprindo a determinação legal e o compromisso assumido com as mineiras e os mineiros, depois de mais de quatro anos de trabalho ininterrupto, a Comissão da Verdade em Minas Gerais presta contas dos resultados de suas pesquisas, neste documento final.

Desde sua instalação, a Covemg não mediu esforços para, cumprindo seus objetivos políticos, legais e institucionais, restaurar a verdade dos fatos relativos aos tempos tenebrosos do período ditatorial em Minas Gerais. Para tanto, trabalhou arduamente ouvindo, pesquisando, reunindo provas e documentos e interagindo com cidadãos e grupos sociais que foram silenciados, alguns exterminados, na época do arbítrio. Fez audiências públicas, ouviu centenas de pessoas, visitou locais de tortura, promoveu centenas de reuniões e produziu outras centenas de documentos e registros sobre o período do arbítrio.

É preciso registrar que nosso trabalho não é conclusivo. E que eventuais ajustes podem e devem advir, tendo em vista a amplitude e complexidade do desafio que nos foi proposto. Porém, tudo o que foi feito baseou-se na máxima responsabilidade, seriedade e no compromisso com a democracia, a verdade e a justiça de toda a nossa equipe.

Além desse relatório, um amplo banco de dados está em fase final de organização e será disponibilizado num portal na Internet para o público e pesquisadores. Essa base de dados possibilitará a continuidade de pesquisas e investigações e a produção de novas informações sobre as graves violações aos direitos humanos em Minas e no país no período compreendido entre 1946 e 1988.

Outro resultado dos esforços da Covemg é realização de uma série de vídeos institucionais e educativos, a serem disponibilizados à sociedade em breve.

Gostaria neste momento, em primeiro lugar registrar um agradecimento todo especial aos membros da Comissão que não mediram esforços, sacrifícios e todo o empenho na coordenação de todo o trabalho da Covemg.

Trabalhar na liderança desse grupo, nesse último ano, foi um enorme aprendizado e a sensação de que estamos do lado certo da história.

Meu abraço terno, reconhecido e agradecido ao médico CARLOS MELGAÇO VALADARES, preso e torturado no período entre 1969 a 1971; à psicóloga EMELY VIEIRA SALAZAR, presa e torturada no período entre 1970 e 1971; ao meu adjunto, o jornalista JURANDIR PERSICHINI CUNHA, às professoras MARIA CELINA PINTO ALBANO e MARIA CERES PIMENTA SPÍNOLA CASTRO, ambas ex-coordenadoras da Comissão, e ao advogado PAULO AFONSO MOREIRA.


Membros da Comissão da Verdade em Minas Gerais - Foto: Celso Travassos/COVEMG


Em nome desses membros da Comissão devo fazer outro agradecimento público e especial: a todas as pessoas e instituições que colaboraram conosco nessa empreitada. Não ousarei citar nomes, porque são tantas e tão preciosas as contribuições que certamente poderei ser traído pelo esquecimento e deixar de citar alguém.

Mas, é preciso registrar, muito especialmente, nosso agradecimento a uma maravilhosa equipe composta por mais de 100 pessoas, em sua maioria por voluntários, que não mediu esforços para produzir a mais ampla pesquisa documental, histórica e política sobre as graves violações aos direitos humanos em nosso Estado, principalmente durante a ditadura militar. Uma equipe que se envolveu e ainda se envolve plena e responsavelmente neste trabalho. A vocês, queridas e queridos colegas, nosso agradecimento emocionado.

Como se sabe, apesar de vozes antidemocráticas ainda hoje negarem, com o golpe militar de 1964 instalou-se um regime de exceção, violência e arbítrio em nosso país: um governo de decretos e atos institucionais autoritários; políticos eleitos democraticamente foram cassados; as eleições eram controladas e figuras esdrúxulas, como governadores e senadores biônicos, foram criadas.

Lançamento do relatório na ALMG. Foto: ALMG


Para se manter no poder, os generais calaram os meios de comunicação impondo censura e ameaças; houve forte repressão aos movimentos sociais e populares, no campo e na cidade; a utilização da tortura transformou-se em política de estado; ocorreram diversos desaparecimentos forçados, exílios e incontáveis violações dos direitos humanos.

É nesse cenário que a Covemg procurou atuar, com vistas a esclarecer a verdade, reescrevendo a história a partir da versão dos perseguidos, dos silenciados e dos excluídos daquele período.

O regime de exceção, além de ter massacrado centenas de militantes de movimentos sociais e estudantis, partidos políticos e sindicatos de trabalhadores nas cidades, também atingiu, em Minas, grupos sociais mais amplos, como trabalhadores rurais, urbanos e indígenas, que padeceram todo o tipo de perseguição e sevícias. Esse relatório traz pesquisas inéditas nessas e noutras temáticas.

Para além dos atores conhecidos que promoveram a repressão durante a ditadura, notadamente as Forças Armadas e as polícias estaduais, a Covemg demonstra em seu relatório que outros personagens foram ativos na repressão durante o período de arbítrio.

Pela ação, conivência, parceria e omissão às graves violações de direitos identificamos - além dos agentes e órgãos públicos de diversos setores dos três poderes do Estado - outras associações, empresas e instituições privadas (do agronegócio, da mineração, dos setores da metalurgia, siderurgia, construção e automobilístico, dentre outros) que atuaram em parceria com o regime ditatorial.

Conhecer essa complexa rede de agentes e instituições públicos e agentes e instituições privados que foram partícipes do regime ditatorial é um elemento importante para o desvelamento das armadilhas do passado de tão triste memória. E é luz para entendermos as imensas violências, injustiças e desigualdades que ainda vicejam em nosso país nos dias atuais.

Por isso, nosso trabalho não é somente a mirar o passado...

A falta de punição aos perpetradores da tortura, das graves violações aos direitos humanos e do arbítrio fez com que essas práticas se institucionalizassem em muitos setores, transformando-se em políticas de Estado que ainda persistem no presente.

Desgraçadamente, em muitas delegacias, batalhões, centros de internação de adolescentes, em abordagens policiais, na ação seletiva da justiça e, principalmente, nas prisões a prática da violência institucional do Estado, atentando contra princípios elementares dos direitos humanos, ainda prossegue.

Mudaram as vítimas: antes, militantes políticos que lutavam pela democracia; hoje, pobres, negros, moradores de rua e das periferias; a comunidade LGBT; um sem-número de jovens, homens e mulheres que, sem acesso à Justiça e limitados em seus direitos de cidadania por terríveis mecanismos de exclusão social, ainda são vítimas de todo o tipo de arbitrariedade cometida por agentes públicos e privados.

Seria hipocrisia da nossa parte não tratar, neste contexto e nesta solenidade, dos tempos sombrios que vivemos, quando vozes agourentas clamam pelo passado de arbítrio e exceção; quando um governo ilegítimo, contra o povo, a Nação e a democracia e a favor do sistema financeiro global assumiu o poder.

Num momento em que os três poderes da República se fundiram em um conglomerado a serviço do capital financeiro e outros grupos econômicos, sem consideração com Constituição, a lei, a soberania popular ou qualquer coisa que sustente o caráter republicano do nosso país. Esse conglomerado age de maneira unitária, embora com dissidências internas e contradições, e se constitui em um amálgama entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Trata-se de um tempo de exceção.

Presenciamos, inertes, o Estado brasileiro transformado num único corpo, que age sob o comando direto e exclusivo de banqueiros, especuladores e empresas nacionais e transnacionais, sem prestar contas a qualquer princípio republicano ou democrático. O controle do poder, nem de longe, é do povo e sequer desses que se auto-intitulam políticos.

O cinismo e a falta de escrúpulos desse conglomerado que governa atualmente convivem, lamentavelmente, com a passividade e a idiotia coletiva de uma sociedade anestesiada por uma mídia empresarial venal e antidemocrática não comprometida nem com a nossa história, muito menos com a verdade.

Tudo muito parecido com o período de exceção do regime militar. Os tanques de outrora foram substituídos por outras armas, aparentemente menos letais. Os mecanismos de controle, opressão e exclusão também são mais sofisticados. Tudo a dar uma falsa aparência de normalidade e legalidade.

Não é por acaso que, nesse cenário, como nos tempos medonhos da ditadura, os discursos da violência e do ódio prevalecem em amplos segmentos sociais, principalmente em setores conservadores da classe média e na mídia.

O ataque ocorrido à UFMG, na semana passada, os ataques às artes e às expressões da cultura são outras formas a evidenciarem que o autoritarismo se arvora contra as regras mais basilares da democracia. A Covemg foi a primeira instituição a manifestar publicamente seu repúdio à violência da operação policial na UFMG, respaldada numa determinação judicial fragrantemente desproporcional e autoritária. Não podemos nos calar!

Por isso, é tão importante todos os esforços para se rememorar as lutas e os ideais democráticos daqueles que tombaram e dos que foram violentados lutando pelas liberdades democráticas em passado tão próximo. E não podemos nos silenciar e nos acomodar no presente!

Enquanto o Estado brasileiro não dizimar, de vez, qualquer tipo de afronta à dignidade humana praticada por agente público; enquanto os poderes públicos não implantarem mecanismos institucionais de prevenção e combate às violações de direitos praticadas por agentes públicos e também pelo setor privado não podemos dizer que somos um país democrático.

Com os resultados dos trabalhos da Covemg espera-se, firmemente, que o poder público em Minas Gerais tome as providências legais e cabíveis para que as arbitrariedades do passado sejam extirpadas das práticas dos agentes públicos no presente; que os devidos reconhecimentos às vítimas sejam processados com a finalidade da prática da justiça e que políticas públicas de prevenção à violência institucional sejam implementadas nas agências governamentais, em vários níveis.

Nas várias recomendações que o relatório final da Covemg apresenta estão o cerne do nosso trabalho. São recomendações dirigidas principalmente aos três poderes do Estado de Minas. Sua recepção e implementação pelos três poderes não é deferência ao trabalho dessa Comissão. A implementação das recomendações será sinal de respeito e compromisso dos poderes públicos do nosso Estado com todos os mineiros e as mineiras. Demonstrará em que medida os poderes do Estado estão comprometidos, para além dos discursos, com os princípios democráticos e os fundamentos da Constituição da República, entre eles a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político.

É a partir de hoje que veremos se nosso trabalho, árduo, sério, responsável, apesar de incompleto, será de fato absorvido pelo Estado.

Não obstante, a reconstrução da memória e a busca da verdade com vistas à efetividade da justiça, escopos deste nosso trabalho, estão entregues aos mineiros e às mineiras.

Muito obrigado!



(DISCURSO DE ENTREGA RELATÓRIO FINAL DA COVEMG, no Palácio da Liberdade, em 13/12/2017).

A comissão, formada para apurar denúncias de violação dos direitos humanos em Minas Gerais, entre 1946 a 1988, especialmente durante a ditadura militar, identificou 1.531 presos políticos e 125 torturadores, cujos nomes foram apontados no relatório, que tem 1.781 páginas e é considerado o maior estudo já feito no Estado sobre o assunto. O relatório completo pode ser acessado em:  www.comissaodaverdade.mg.gov.br

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Direitos Humanos e discursos de ódio

Os direitos humanos são todos os direitos e direitos de todos. Já numa sociedade de consumo, o individualismo exacerbado inclui poucos.
A unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores.


A unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores. (Reprodução/ Pixabay)
Por Robson Sávio Reis Souza*
Em 10 de dezembro recordamos a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se há algo que comemorar – a humanidade incorporou em boa medida os pressupostos defendidos no documento da ONU de 1948 –, ainda resta um longo caminho a ser percorrido pela efetividade da cidadania em nosso país. Afinal, os direitos humanos são todos os direitos (civis, políticos, culturais, econômicos, sociais...) e são direitos de todos (independentemente da origem étnica, da condição econômica, da orientação sexual e das preferências políticas, religiosas e ideológicas...
    No plano internacional observamos que o capital cada vez mais impera absoluto; a economia se sobrepõe à política e os direitos sociais são drasticamente reduzidos. Numa sociedade de consumo, o individualismo exacerbado inclui poucos. A imensa maioria, os pobres e despossuídos de direitos – também chamados de consumidores falhos – encontra-se em variadas situações de exclusão. E nesse contexto podemos afirmar: para a realização plena dos direitos humanos a intervenção do Estado – para diminuir as perversidades do capitalismo – é crucial.
    No Brasil – um país historicamente marcado pela violência estrutural e pela justiça seletiva, cuja cultura dominante e elitista naturaliza as desigualdades étnico-raciais e socioeconômicas (produtoras de múltiplas exclusões e de várias formas de preconceito e discriminações) – o debate acerca da efetividade dos direitos humanos deixou de ser uma agenda civilizatória e transformou-se numa plataforma criminalizada vigorosamente por segmentos conservadoras, elitistas e antidemocráticos.
    Ademais, a mídia empresarial, que vocaliza as demandas das elites nacionais, é pródiga na exaltação e propagação das múltiplas formas de violências, a amplificar discursos de ódio e a desdenhar os princípios basilares do estado democrático de direito, assentados no documento da ONU de 1948.
    Nos últimos tempos, tempos tenebrosos advindos com um golpe arquitetado pelos segmentos mais conservadores, retrógrados e violentos da sociedade, observamos uma crescente criminalização dos discursos em defesa dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que discursos de ódio povoam o debate político, social, religioso e nas redes sociais.
    Tais discursos sombrios tentam consolidar uma narrativa única e catastrófica, criminalizando todas as diferenças sociais, políticas, étnicas, de gênero; semeando desesperança e povoando o imaginário social de medo, aversão e apreensão em relação aos outros, ao diferente, ao presente e futuro.
    O filósofo e cientista político esloveno Slavoj Žižek nos ajuda a entender essa narrativa autoritária: a unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores. Essa estratégia justificou o nazismo (os nazistas tinham horror dos judeus, dos homossexuais...) e o golpe civil-militar de 1964 (medo do comunismo), por exemplo. Em certa medida, esses mesmos discursos estão muito salientes no momento sinistro que vivemos, quando a Nação é comandada por um grupo de desqualificados (nos três poderes) que não respeitam o povo, nem os seus direitos duramente conquistados nos últimos tempos.
    A soma dos muitos medos (os verdadeiros ou aqueles construídos no imaginário social) é o ambiente propício para se criar um clima de pânico, instalar a desconfiança generalizada, propagandear uma insatisfação irracional, criminalizar os direitos humanos. A partir daí, pode-se construir os pseudo-heróis "salvadores da Pátria"; justifica-se o injustificável; elegem-se bodes expiatórios lançando-os à fogueira da condenação midiática. E os direitos humanos deixam de ser a bússola que norteia os ideais políticos e sociais.
    A estratégia discursiva para unificar todos os "nossos medos" produz uma aceitação aos discursos de ódio, de violência, da eliminação de tudo o que é diferente de um padrão imposto pelos poderosos.
    E a religião não está fora desse contexto. Não há nada mais perverso, doentio e perigoso que a mistura entre o radicalismo político e o fundamentalismo religioso. O fanático político-religioso não tem limites; não tem ética; não age com a razão. Age por convicção, ou seja, pela crença pervertida que é um porta-voz do bem ou um discípulo de uma causa transcendental. Está convicto que tem uma missão a ser cumprida e sendo superior, porque é um enviado de Deus para extirpar o mal da terra, deve salvar o mundo daqueles "eleitos" como sendo os ímpios.
    Os fanáticos político-religiosos se congregam em castas herméticas cujo objetivo é criar mecanismos de autoproteção. Só assim se sentem seguros e empoderados para cumprir sua missão redentora. Estão convictos: somos do bem; podemos tudo!
    É por isso que o fanático político-religioso tem na pregação e na oratória suas principais armas para arrebanhar adeptos. Utiliza-se da propagação do medo para justificar a consolidação de uma seita baseada em discursos de ódio e de vingança. Por mais paradoxal que possa parecer, há muito discurso religioso criminalizando os direitos humanos.
    Outra forma para desconstruir e deslegitimar o discurso dos direitos humanos está consolidada no adensamento do estado penal em nosso país. O direito penal seletivamente aplicado para resolver todos os problemas e mazelas sociais e políticos é uma forma de consolidação das desigualdades e das múltiplas injustiças.
    Lamentavelmente, o reducionismo judicial, transformado em ativismo persecutório, tem produzido uma justiça ainda mais seletiva e corroborado um pensamento torto, simplista, odioso e infantil Brasil afora. Esse pensamento espraia-se nas redes sociais, contaminando-as de ódio e caça às bruxas.
    Quando a acusação em doses cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de culpa, convicção, chantagem e difusão do medo e do ódio, mesmo não havendo investigações suficientes, provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e reputações e promover caça às bruxas flerta-se com um estado totalitário que despreza a doutrina dos direitos humanos.
     Como diz o poeta, “se muito já foi feito, há muito que se fazer”. Que nesse 10 de dezembro cada cidadão – que tem na democracia, na justiça, na liberdade e na igualdade os referenciais éticos para sua vida – sinta-se responsável na luta pela efetividade dos direitos humanos em nosso país, principalmente nesses tempos sombrios e temerosos.
    Robson Sávio Reis Souza é coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) e da Comissão da Verdade em Minas Gerais; membro do Fórum Mineiro de Direitos Humanos.
    Artigo publicado originalmente no Portal Dom Total, em 08/12/2017.

    sábado, 2 de dezembro de 2017

    O que esconde o discurso sobre corrupção?


    Foto: Internet

    Nas rodas de conversa, na mídia empresarial e nas redes sociais há um retumbante discurso sobre a corrupção no Brasil. Até parece que aqui só há corruptos. E que os corruptos daqui estão somente na política.

    Num artigo anterior (aqui) demonstrávamos que o capitalismo no seu formato de rentismo, na atualidade, funciona graças à corrupção generalizada: nada menos de 25% do PIB mundial são remetidos a paraísos fiscais por grandes empresas e instituições financeiras.  Estima-se que a cada ano 18 trilhões de dólares seguem o caminho da sonegação de impostos. No Brasil, a estimativa de evasão fiscal entre 2003 e 2012 foi de 220 bilhões de dólares. Os conglomerados financeiros, via corrupção, controlam os governos, a economia, as políticas e as agências multilaterais. 

    Os midiotas, aqueles que odeiam a política e se deixam envenenar pela mídia e pelos setores mais retrógrados – umbilicalmente parceiros da corrupção estrutural que viceja em nosso país -, são os maiores falastrões sobre corrupção. O grupo político que mais bradou contra a corrupção no Brasil, ao som de panelas, hino nacional e camisetas da CBF (uma entidade virginal, como se sabe) assumiu o poder através de um golpe e, desde então, dia após dia, é desmascarado com práticas vergonhosas de corrupção.

    Poucas são as propostas objetivas para se combater a corrupção nos poderes públicos e nas empresas, bancos e sistema financeiro global. E muita hipocrisia e cinismo retumba nesse falatório sem sentido sobre corrupção.

    Será que a corrupção está somente na política institucional?

    Vejamos: o cidadão que sonega imposto, fura fila e não respeita o direito alheio é corrupto.
    O empresário da indústria e do comércio que vive criticando a carga tributária e é responsável por uma sonegação fiscal anual na casa de 100 bilhões de reais, é corrupto.

    Os líderes religiosos que fazem pregações inflamadas contra a corrupção e não prestam contas do dízimo que arrecadam não seriam também corruptos?

    A classe média que vive reclamando do estado e é composta majoritariamente por profissionais liberais também está cheia de corruptos. Certamente, você conhece advogados, médicos, odontólogos, veterinários, engenheiros, professores e outros profissionais que prestam serviços e não emitem notas fiscais e adoram burlar o fisco. São corruptos.

    Há uma corrupção violenta fruto de um sistema econômico perverso: bancos que cobram taxas de juros como no Brasil estão no topo de uma corrupção legalizada. E empresários que exploram o trabalhador também são corruptos.

    Quando o sistema econômico se sobrepõe aos poderes públicos é sinal de corrupção institucional e generalizada. Esse é o caso do Brasil, onde uma horda de corruptos, à serviço do capital, está no poder.

    Um sistema de justiça seletivo e não isonômico é azeite à máquina da corrupção.

    Para se combater a corrupção os discursos de nada valem. Mecanismos institucionais de controle público e privado, uma cultura cidadã e democrática, justiça isonômica e igualdade de direitos são os melhores remédios.

    A Dinamarca, por exemplo, é um dos países menos corruptos do mundo. Sabe porquê? Porque lá os cidadãos, os políticos e os empresários são honestos. No supermercado o controle é eletrônico e as pessoas pagam os produtos sem precisar de policiamento. Os empresários não sonegam impostos, nem têm lucros exorbitantes, pois quem paga por produtos e serviços é responsável pela fiscalização. Os bancos são, razoavelmente, controlados e não praticam taxas de juros que são verdadeiros assaltos à mão desarmada.

    E os políticos? Um deputado federal de lá, por exemplo, ganha o equivalente a 23 mil reais e um pedreiro 18 mil reais. Ambos, deputados e pedreiros têm os filhos na mesma escola pública, são internados no mesmo hospital público e recebem a aposentadoria pública.

    Com pouca desigualdade e bons salários para todos, o pedreiro, o parlamentar e o empresário vivem "num mesmo mundo": usam transporte público e são tratados com os mesmos direitos e deveres por uma justiça cujos juízes e promotores têm o mesmo padrão de vida dos demais cidadãos.