sábado, 31 de dezembro de 2016

Feliz ano velho: 2017 tem tudo para ser pior.


Não pretendo ser mais realista que o rei. Mas, não adianta entrarmos nesse clima infantilizado de final de ano. Achar que num passe de mágica as pessoas, o mundo, os golpistas mudarão. Acreditar que com crendices, rezas e rituais teremos a intervenção cósmica, ou divina, a resolver milagrosamente os nossos problemas sociais, políticos, econômicos...

Entendo que um pouco de ilusão, fantasia e fuga da realidade tornam-se ingredientes importantes para suportar a dureza da vida e dos fatos. 

Nessa época, o final de ano, há uma “tentação” de acharmos que os milagres existem (a começar pelo fantasioso papai Noel). Ou que vale apostar todas as fichas numa esperança de esperar (que tudo mude para melhor, sem esforço pessoal e comunitário) ao invés de esperançar-se (ou seja, juntar-se com os outros para fazer algo diferente). Esse clima produz sujeitos passivos, poliqueixosos e irresponsáveis, à medida que a solução para os problemas do cotidiano são transferidos para o outro; ou são direcionados para o além.

Porém, tudo indica que a curto prazo, no campo da política, não há razões para sermos otimistas. E só não vê quem não quer:

1.    Temer e sua camarilha implementaram um golpe imprevisível e, desde então, iniciaram um programa de desmonte do estado sem precedentes.

2. Para atenderem as expectativas dos rentistas e do Tio Sam, os verdadeiros ganhadores do golpe, estão a implementar uma agenda que inclui violentos cortes nas áreas sociais (a garantir o superávit, visando o pagamento da dívida aos especuladores); de entrega do patrimônio público a alienígenas (privatizando a preço de banana os bens públicos, como fizera anteriormente FHC); de desmonte da indústria e da pesquisa nacionais (para manter o país na condição de colônia eternamente explorada); e, ainda, a imposição de regras trabalhistas e previdenciárias similares ao capitalismo do século XIX (cuja mentalidade dos burgueses à época era a exploração máxima da classe trabalhadora, de maneira que pudessem garantir o lucro absurdo e manter a massa operária dependente). Realmente, a começar pelo lema do governo golpista, “ordem e progresso”, parece que retornamos ao século XIX, quando a classe dominante, na Europa, se manteve insensível às condições de precarização e deterioração da vida do trabalhador, preferindo ignorar a imensa dívida social, pois não se sentia atingida pelas desventuras dos pobres. Era mais cômodo e fácil fingir que nada acontecia e tratar os trabalhadores e os pobres como se não fossem seres humanos. Esse é o retrato do Brasil sob Temer.

3.  Para navegar em céu de brigadeiro, Temer, o decorativo, estará alinhado aos tucanos – que formam o núcleo duro de seu governo -, e aos setores do banditismo político incrustados no Congresso Nacional: o centrão, aquela facção forjada por Cunha para chamar de sua; a bancada BBB e a turma do PMDB, os coronéis da velhaca política nacional.

4.  O golpista continuará tendo o apoio amistoso da juristrocracia nacional. Para tanto, contará com um Ministério Público Federal que, nos dizeres de Eugênio Aragão, “se ideologizou, se apaixonou pelo fetiche criminalista, e relegou muitas de suas funções mais preciosas em nome de um fortalecimento da perseguição penal. Com isso, ele deu uma guinada para a direita e hoje é profundamente conservador”.  Sob o atual ministro da justiça, terá uma Polícia Federal transformada numa polícia política, sem controle e de ação enviesada e não-republicana. A partir do STF terá um judiciário que confirma a sina da justiça desse país: sempre serviçal da casa grande.

5.  Com a patrocinadora do golpe, a mídia antidemocrática, manipuladora, sem controle social e alçada à condição de produtora da agenda política brasileira, Temer será generoso, despejando dinheiro público, com faz em doses cavalares neste final de ano. Até capa de princesa já ganhou para a sua “bela, recatada e do lar”.

6.  No próximo ano, pelo andar da carruagem, mais uma vez em parceria com a juristocracia, há condições ideais para que a mídia continue a exercer seu papel de chantagista e definidora da produção da tal agenda política nacional.

7.  Por outro lado, Moro e Gilmar Mendes, os parceiros queridinhos da mídia tupiniquim e dos verdadeiros ganhadores do golpe, continuarão no centro das disputas políticas. Essa é a república brasileira atual: o centro das decisões políticas foi deslocado dos poderes que têm no voto a referência e se instalou num poder autocrático, hermético e distante daqueles que são a origem e a razão do poder: o povo. A instabilidade provocada por esses atores do judiciário e policiais é proposital para manter o sistema político frágil e poroso, permeável ao controle e às chantagens dos interesseiros, numa democracia de baixíssima intensidade.

8.  As imensas perdas de patrimônio e da renda do empresariado nacional serão compensadas com o arrocho salarial e a precarização das condições de vida dos trabalhadores. Como nossos empresários e comerciantes sempre pensam no imediato, nas férias em Miami e no próprio umbigo, continuarão incapazes de prever o tamanho do fosso no qual estão sendo lançados. Os capitalistas exógenos terão condições ideais, em pouco tempo, de comprar a preço de banana os restos, ou seja, os despojos da indústria e do patrimônio nacional dilapidados pela sanha dos golpistas.

É pouco previsível, a curto prazo, que esse cenário dantesco sofra alterações substantivas, ainda mais se considerarmos que no plano internacional grassa o recrudescimento da direita conservadora, cuja “onda azul”, aqui bem caracterizada pela cor do tucanato, espraia-se mundo afora.

Não se sabe se esse alargamento do conservadorismo é refluxo de um capitalismo que urra para sobreviver. Afinal, o capitalismo rentista produziu um esgotamento que pode ser percebido em várias dimensões: do ecossistema, da política, da economia baseada na especulação e no rentismo, das instituições tradicionais - incapazes de dar respostas a uma sociedade cada vez mais complexa. Além disso, em seu formato especulativo e rentista da atualidade, o capitalismo destrói as comunidades e as minorias étnicas e sociais.

Portanto, é preciso inscrever o golpe ocorrido no Brasil dentro dessa dimensão político-econômica mais ampla para que possamos perceber suas dimensões e consequências e escaparmos das análises minimalistas ou panfletárias, que não dimensionam perspectivas mais amplas e complexas para o seu enfrentamento.

Ademais, haja vista nosso tipo de sociedade (proposital e culturalmente despolitizada, com uma cidadania pouco ativa, acostumada com um estado assistencialista e “naturalmente” patrimonialista e elitista) é pouco provável que uma reação surja através de grandes mobilizações sociais.

Como o imprevisível é componente real das disputas em curso pelo controle do golpe (envolvendo os três poderes e outros atores interessados nos desmonte do estado), restará alguma perspectiva de mudança do cenário, a médio prazo, se houver a (pouco provável) união dos campos progressistas.

Mas, não nos enganemos. Não é pulando ondas, orando tresloucadamente ou queimando fogos de artifício que teremos um 2017 melhor...

Então, pelo menos por enquanto, feliz ano velho!


domingo, 18 de dezembro de 2016

A atual fase do golpe e suas faces


Charge: Laerte Coutinho
Um golpe sempre produz gravíssimas rupturas de ordens institucional, jurídica, econômica e social. E esse golpe tem um agravante: diferentemente da ditadura civil-militar, quando os militares assumiram o controle, enquadrando as demais instituições (para gerar alguma estabilidade, pela força), o que vemos agora é uma luta fratricida entre os três poderes pelo controle do golpe.

As consequências das rupturas democráticas aparecem de variadas formas (disputa entre poderes, instabilidade das instituições, experimentos de golpes dentro do golpe...). Nas tentativas de contorna-las, os golpistas sempre abrem novas frestas a indicarem que “remendos novos em panos velhos” só servem para tamponar momentaneamente o caos.

Todos sabemos que o golpe no Brasil é patrocinado pelos Estados Unidos, especificamente pela Wall Street (o rentismo financeiro internacional). Apesar de as eleições americanas terem consagrado justamente a Main Street (o setor produtivo), na figura de Donald Trump, o capital especulativo internacional, concentrador de renda e riqueza, precisa manter nosso país como uma colônia extrativista (haja vista nossos abundantes recursos naturais) e de mão-de-obra precarizada. Ademais, para a geopolítica estadunidense, o Brasil não tem o direito de dar voo solo em nenhuma hipótese.

Para conseguir golpear nossa democracia de baixa intensidade, os rentistas internacionais optaram por patrocinarem um tipo de ruptura diferente. Ao invés de invasão externa (impossível num país da nossa dimensão) ou na aliança com os setores militares (metodologia utilizada na América Latina na segunda metade do século passado), resolveram apostar em figuras autóctones para tocar a empreitada.

Há características psicopatológicas comuns, perceptíveis nos principais líderes golpistas brasileiros: desejo incontido de poder, prestígio e bajulação e uma imensa fraqueza moral e ética, própria de personalidades pueris.

Investir nesse tipo de personalidade - de pessoas que não têm limites; vivem num mundo paralelo; postam-se como cidadãos acima do bem e do mal e são obcecados pelo poder a qualquer custo -, foi o tiro certeiro e bem orquestrado para a implementação do golpe. No momento adequado, serão descartados do jogo.

Fundamentalmente, duas estratégias foram utilizadas para criar as condições para o golpe: a primeira, treinar pessoas cuidadosamente escolhidas para executarem milimetricamente o enredo golpista. E, depois, utilizar da grande mídia para endeusar esses “salvadores da pátria”, distorcer fatos, eleger bodes expiatórios, criar um clima de instabilidade, ódio e manipulação da realidade.

As principais faces autóctones do golpe são: no campo político, Aécio Neves e Cunha (já descartado) e no campo jurídico, Gilmar Mendes, Janot, Moro e os procuradores da Lava-jato. Vejam que essas personagens têm em comum as mesmas características mencionadas acima: desejo incontido de poder, prestígio e bajulação e uma imensa fraqueza moral e ética, própria de sujeitos pueris. As cenas amistosas entre Aécio e Moro, recentemente, foram mais uma evidência da trama golpista, entre tantas outras.

Temer, como já discutimos em outro post, é uma espécie de mamulengo. Está, literalmente, nas mãos dos nominados acima e de outros de igual extirpe aninhados no seu partido, o PMDB. Muito provavelmente continuará dançando conforme a música tocada pelos verdadeiros líderes golpistas ou será solenemente descartado quando sua “missão” tiver sido devidamente cumprida.

Na atual fase do golpe importa consolidar as condições para devolver o Brasil à sua condição de colônia do capitalismo rentista. Portanto, aniquilar os direitos sociais conquistados na Constituição Federal de 1988 (antiga PEC 55 e as “reformas” da previdência e trabalhista). Para tanto, há uma orquestração das ações nos campos político (poderes executivo e legislativo) e jurídico-constitucional (STF).

Porém, devido a onda crescente de insatisfação popular (capturada nas pesquisas de avaliação do governo) e a disputa figadal entre os três poderes (cujo objetivo comum é a autopreservação de seus quadros, dado a evidente corrupção sistêmica e estrutural que os dominam), resta agora apelar para estratégias de comunicação de massa com o objetivo de dissuadir uma revolta popular. Registre-se que somente uma revolta poderá deter o golpe; afinal, o enfraquecimento e as disputas entre os campos progressistas e de esquerda não impõem qualquer perigo.

Para tentar contornar um possível caos social, uma avalanche de anúncios e programas midiáticos otimistas estão em curso. O objetivo é contrapor o clima policialesco que domina os noticiários – sempre à caça de culpados seletivamente escolhidos - e tamponar o saque ao erário e a guerra entre os golpistas. O encontro ocorrido entre o presidente e o dono da emissora oficial do golpe, a Rede Globo, nesses dias, evidencia parte dessa estratégia.

Por outro lado, para aplacar a ira dos setores econômicos, que perceberam que o golpe está aprofundando seus prejuízos, o governo anunciou um pacote de bondades para as áreas financeira e empresarial e de maldades para os trabalhadores.

Imaginem os lucros estratosféricos que serão auferidos pelos setores farmacêutico, hospitalar, de seguros e de planos de saúde com o desmonte da previdência e da saúde pública, por exemplo. Esses são alguns dos ganhadores do golpe. Nem os militares tiveram tanta ousadia. O custo dessa aventura será alto...

Acontece que, nas economias capitalistas, a somatória de golpe com recessão econômica gera, inevitavelmente, além da incerteza, uma avalanche de temor, medo difuso e “salve-se quem puder”. Preocupados com a sobrevivência, os trabalhadores (parte mais fraca) se recolhem num primeiro momento. Por isso, o esvaziamento das ruas. Mas a recessão impõe condições de vida tão precarizadas que os grupos rancorosos, racistas, fascistas e movidos por medo e ódio, de todos os segmentos sociais, aparecem, derivando numa situação sem controle, mais cedo ou mais tarde. Já começamos a viver essa situação.

Enganam-se aqueles que pensam em futuro promissor nessas condições, ainda mais num país onde a justiça sempre foi seletiva e desacreditada e as instituições referenciais, como as igrejas, também são objeto de desconfiança pública.

Ou o país retoma os rumos de uma democracia (o arranjo menos ruim), pelo voto popular, ou cairemos numa situação de barbárie.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Direitos Humanos: ainda resta longo caminho...

Dignidade está relativizada pela classe social e não pela condição humana.

Dignidade está relativizada pela classe social e não pela condição humana. (Divulgação)

Direitos humanos ainda são violados e as políticas públicas voltadas para a ampliação da cidadania ainda são insuficientes.
Foi após a Constituição Federal de 1988 que observamos a inclusão dos direitos humanos nas leis gerais, nos planos de governo e na implementação de políticas públicas em nosso país. Direitos Humanos se referem a todos os direitos: civis, políticos, sociais, culturais. E de todas as pessoas, classes, etnias, orientações sexuais...
No campo da educação, por exemplo, contemplando a temática relativa aos direitos humanos, podemos citar como avanços importantes, o Plano Nacional de Educação, os Parâmetros Nacionais Curriculares, a Matriz Curricular da Educação Básica e a Lei 10.639/2003, que alterou as diretrizes e bases da educação nacional e incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira. 
Graças à Constituição, a consolidação das ações de direitos humanos ampliou-se sobremaneira ao longo da década de 1990, em parte pela série de conferências internacionais e pelos acordos e tratados delas derivados, dos quais o Brasil se tornou signatário. No plano interno, nosso país viu-se obrigado a adequar-se às novas exigências internacionais, e, aprovando um elenco de leis e medidas jurídicas com o espírito da “constituição cidadã”, o governo brasileiro comprometeu-se, inclusive em fóruns supranacionais, com a defesa, proteção, reparação e a promoção desses direitos.
Não obstante os avanços – reconhecidamente conquistados nos últimos anos, principalmente a partir de 2003 com a ampliação do estado de bem-estar social –, temos um longo caminho a percorrer na efetivação dos direitos humanos, pois ainda nos defrontamos com um abismo que separa os direitos formalmente garantidos e seu exercício, haja vista as imensas desigualdades sociais que ainda assolam o Brasil.
Não podemos ficar alheios à trivialização de um quadro no qual temos, de um lado, os incluídos, portadores de direitos e de cidadania, e, do outro, os excluídos, vivendo à margem da cidadania. Uma das formas mais contundentes de verificarmos esses dois brasis, o dos incluídos e o dos excluídos, são os indicadores de crimes violentos. Se analisarmos os homicídios, por exemplo, verificamos que são quase 60 mil assassinatos por ano. Essa carnificina, quase naturalizada, tem como vítimas, majoritariamente, negros, pobres e jovens. Esse perfil talvez mostre que o valor da vida humana em nosso país é diferente: a dignidade está relativizada pela classe social e não pela condição humana.
A despeito da implantação de um estado formalmente democrático, os direitos humanos ainda são violados e as políticas públicas voltadas para a ampliação da cidadania ainda são insuficientes. Se, formalmente, na Constituição de 1988, a cidadania está assegurada a todos os brasileiros, na prática ela só funciona para alguns. Sem dúvida existe um déficit de cidadania, isto é, uma situação de desequilíbrio entre os princípios de justiça, equidade e solidariedade. É ético que um cristão se acomode na inércia caracterizada pela passividade frente aos dilemas sociais?
A grande pergunta que se coloca diante do drama da desigualdade no Brasil (principalmente nesses tempos de governo que não tem compromissos com o povo, senão com um grupo elitizado e de privilegiados), refere-se à possibilidade de construir saídas que consigam reverter uma situação de letargia social e política frente às injustiças, de forma a viabilizar a edificação de um país com requisitos mínimos de civilidade em seus padrões societários: uma nação capaz de manter e ampliar políticas que promovam a diminuição da desigualdade social; um governo que leve em consideração os valores éticos de solidariedade, democracia, liberdade e justiça; enfim, um país com mecanismos reais e concretos de reelaboração da cidadania plena e capaz de potencializar a capacidade participativa da sociedade.
Os cristãos têm um papel fundamental a cumprir nesse contexto, exigindo, ao lado dos organismos da sociedade civil, que o Estado reassuma o papel central de agente de promoção, defesa, proteção e reparação dos direitos humanos. Ademais, em consequência dessa ação, os cristãos podem somar-se aos esforços dos grupos organizados da sociedade no sentido de auxiliar os gestores públicos na consecução das condições legais, políticas e orçamentárias para implementar as políticas públicas baseadas na ampliação dos direitos de cidadania.
Não basta, pois, que, como cidadãos, manifestemos boas intenções. Como diz o adágio popular, “de boas intenções o inferno está cheio”. Por outro lado, no plano do Estado, é necessário que se estruture para além de um marco legal, um pacto social que nos possibilite, como Nação, avançar na construção de uma cultura de direitos humanos, ou seja, de uma sociedade onde a cidadania não seja um mero adjetivo, mas uma realidade. 
Os cristãos não deveriam ficar alheios, ou coniventes, nesse momento político atual, no qual há evidentes processos de desconstrução da cidadania em nosso país, patrocinados justamente pelos poderes que deveriam promover a equidade social. 
Tratar de direitos humanos como se fossem um apêndice da vida e da estrutura social e política é cinismo sob o ponto de vista ético; é desumano, sob o ponto de vista cristão.
Publicado originalmente no Portal Dom Total, em 09.12.16.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Juristocracia que respaldou o golpe quer dar um novo golpe



Nas democracias, a mudança do poder político só é legítima pela via eleitoral. Golpe é a mudança do poder político, de forma repentina, sem a deliberação ou o respaldo popular.

Em 1964, o movimento golpista se deu, com violência; e o protagonismo foi dos militares. Em 2016 (com violência simbólica), o aparente protagonismo do parlamento no golpe só foi possível pelo evidente respaldo do judiciário. Em ambos os casos, mídia e setor financeiro foram os avalistas das rupturas democráticas.

Vamos agora a outro ponto e sem rodeios. Os poderes executivo e legislativo, por mais complexos e corruptos que sejam, estão referenciados e respaldados no voto popular. Políticos estão no poder hoje; podem não estar amanhã. Dependem e se submetem à vontade do cidadão/eleitor.

Por outro lado, juízes, promotores, policiais não têm mandato. Chegam  ao poder sem respaldo popular. Talvez, por isso, sintam-se distantes do povo (seus valores, necessidades e desejos).

Individualmente, existem excelentes juízes, promotores e policiais. Mas, aqui, a questão não se trata de uma análise individual. É uma análise institucional.

Juízes, promotores e policiais construíram ao longo do tempo uma "linhagem de cidadãos excepcionais". Vivem num "universo paralelo", onde não se submetem a nenhuma forma de controle social e político; nem prestação de contas à sociedade. Edificaram tal "império" às custas da chantagem política e da conivência, omissão e parceria com os grupos que têm interesses numa justiça enviesada.

Se formalmente "todos são iguais perante a lei" (CF/88, art. 5º), na "vida como ela é" (Nelson Rodrigues), esse grupo se considera acima da lei.

Seus prepostos e defensores nos outros poderes, na mídia e os donos do capital (que são os beneficiários diretos da SELETIVIDADE do sistema de justiça), mantém esse edifício aparentemente impoluto. Fazem-nos crer que o judiciário é isento, justo e composto por homens e mulheres acima do bem e do mal, essencialmente republicanos e democratas. Assim, todos esses segmentos ganham com uma justiça que age para garantir os direitos constitucionais para os ricos e os poderosos e os direitos penais para os pobres ou aqueles que eventualmente são eleitos como bodes expiatórios pelo sistema (não somente de justiça, mas também o sistema econômico).

A chamada "carreira jurídica do estado" chega ao poder por meio de concurso, de caráter meramente técnico, sem nenhuma outra exigência ou compromisso democrático ou republicano. Essa classe de privilegiados opera tão marginalmente à lei - que é fruto dos interesses dos segmentos no poder - que um magistrado quando comete crimes geralmente é punido com aposentadoria compulsória. Um escárnio!

Em relação à média salarial do funcionalismo público, juízes, promotores e as elites policiais recebem proventos acima do teto constitucional. Ou seja, aqueles que deveriam ser um exemplo no cumprimento rigoroso e exemplar da lei são os primeiros a violá-la.

No Brasil, desde sempre, o segmento judiciário é um estado paralelo. O professor e catedrático Fábio K. Comparato, de ilibada índole, escreveu célebre texto sobre o poder judiciário no Brasil, disponível no site do IHU-on line. Nessa obra fica patente que o judiciário "sempre foi e é submisso às elites, corrupto em sua essência e comprometido secularmente com a injustiça". Veja aqui.

Mas, principalmente após a Constituição Federal de 1988 (por mais paradoxal que possa parecer - porque a CF/88 não mexeu nos privilégios desse grupo) foi-se consolidando no país uma casta jurídica. Postando-se acima do bem e do mal, a juristocracia tupiniquim, formada pelos "filhos das elites" (sociais e econômicas), não têm nenhum compromisso com princípios como igualdade, justiça e equidade. No exercício de suas funções (gostam de chamar de "ministério") podem decidir discricionariamente acerca do que é bom, belo e justo e, impávidos, acabam por determinar os rumos da política e da sociedade. 

Nos momentos de crise, atuam para consolidar seu poderio. Uma das últimas grandes investidas nesse sentido se deu nas manifestações de 2013. Promotores, aproveitando da crítica ácida ao sistema político à época, conseguiram "vender" a ideia que estavam sendo perseguidos e enterraram a PEC 37, ampliando ainda mais seus poderes discricionários. Todos devem lembrar dessa história... Veja aqui.

Na sequência, o STF com a aplicação do "domínio do fato" institucionalizou um contorno à Constituição. A partir de então, nova cruzada foi implementada para a desmoralização e criminalização da política e o assoberbamento da juristocracia, com ações coordenadas, envolvendo juízes, promotores e policiais.

A situação de deslocamento do judiciário, desequilibrando a desejável relação harmônica com os outros poderes, deteriorou muito nos últimos anos. Passamos de uma situação de "judicialização da política" para um estado de "politização do judiciário".

Agora, novamente, embalados na onda da rejeição ao sistema político, segmentos judiciários patrocinaram essas dez medidas contra a corrupção, tendo grande respaldo social por se tratar de um projeto de iniciativa popular. Em tempos de conservadorismo galopante, conseguir dois milhões de assinaturas é fichinha. Mas, não sejamos hipócritas: essa pseudo iniciativa popular é, na verdade, de um ente estatal, o Ministério Público. Durante meses, essa instituição usou toda a sua estrutura e poder para buscar assinaturas de cidadãos induzidos a erro pelo título do projeto. 

Todos somos contra o corrupção. E deveríamos também desconfiar dos arautos do bem (defensores da lei e da ordem, da moral, dos bons costumes e da ética) que desejam regular a sociedade, a política e os poderes públicos e não aceitam ser regulados por nenhum mecanismo. Somente um inocente útil ou um mal-intencionado pode acreditar nessa virginal historinha.

A Câmara dos Deputados, aquele covil de corruptos, salvo exceções, tentou dar um golpe no projeto original do Ministério Público. Como vivemos numa república de golpes e de golpistas despudorados, promotores e magistrados deixaram transparecer, com veemência, que de democratas só têm discurso. Partiram para as ameaças e conseguiram, como em 2013, despertar também aqueles "nacionalistas de camisas da CBF" que são os protegidos desse sistema injusto... Todos se armam e estão prontos para um contra-golpe.

Não nos enganemos: os arroubos autoritários desse grupo, a juristocracia, além de uma afronta ao estado de direito (pois produz um evidente desequilíbrio entre os poderes), são um "brado retumbante" a sinalizar a tentativa de consolidação de um poder paralelo que deseja assumir o protagonismo das decisões políticas à fórceps, sem respaldo, respeito e deliberação popular. Trata-se do prenúncio de um golpe dentro do golpe.

Não canso de repetir Rui Barbosa: "A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer."


Atualizado em 02/12/2016, às 10h35min e 
03/12, às 10h30min.


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Professores da PUC Minas reiteram apoio à ocupação na Universidade


À Comunidade Acadêmica da 
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 

Nós, professores da PUC Minas abaixo assinados, vimos reiterar nosso concreto apoio aos estudantes desta universidade que, de forma madura e responsável, se engajam na pauta de reivindicações do Movimento de Ocupação de Escolas e Universidades, no atual momento político do Brasil. 

Declaramos que os estudantes da PUC Minas que assumem a ocupação do prédio 47 do campus Coração Eucarístico têm demonstrado, desde o início, profunda responsabilidade e respeito para com todos que ali trabalham e transitam, além de forte zelo no que concerne ao espaço físico do prédio ocupado. 

Como pode ser constatado in loco, o referido prédio encontra-se limpo, não apresenta obstáculos intransponíveis para o trânsito daqueles que por ali circulam nem perturbações que signifiquem o impedimento da realização das aulas e de outras atividades acadêmicas e administrativas que, no local, sejam desenvolvidas. 

Além de apoiarmos a causa política dos estudantes da PUC Minas, declaramos, ainda, a nossa admiração e profundo respeito pelo comportamento assumido por esses estudantes, frente à gravidade da conjuntura política brasileira, neste momento. 

Assinam a nota:

1. Adalberto Antônio Batista Arcelo 
2. Adriana Diniz de Deus 
3. Adriana Penzim 
4. Adriane Maria Arantes de Carvalho 
5. Adriano Ventura 
6. Alessandra Chacham 
7. Alexandre Eustáquio Teixeira 
8. Álvaro Paiva 
9. Amarildo Fernando de Almeida 
10. Ana Maria Coutinho 
11. Ana Maria Rodrigues de Oliveira 
12. Antonio Grillo 
13. Arabie Bezri Hermont
14. Armindo Teodosio 
15. Bruno Vasconcelos de Almeida 
16. Carlos Frederico Barboza de Souza 
17. Carmem Regina dos Santos Pereira 
18. Claudemir Alves 
19. Cláudio Henriques 
20. Cristiano Anderson Bahia 
21. Daniella Lopes Dias Ignácio Rodrigues 
22. Danny Zahredinne 
23. Débora Maria David da Luz 
24. Dener Chaves 
25. Denise Pereira 
26. Denise Pirani 
27. Dimas Antônio de Souza 
28. Dineia Domingues 
29. Douglas Cabral Dantas 
30. Edmundo Novaes 
31. Eduardo Alberti Carnevali 
32. Eduardo Moutinho Ramalho Bittencourt 
33. Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães 
34. Ércio Sena 
35. Erica Adriana Costa Zanardi 
36. Eurides Rodrigues 
37. Fabiana Campos 
38. Gabriela Araújo Medeiros 
39. Geisa Moreira 
40. Geraldine Duarte 
41. Gilberto Antônio Reis 
42. Glória Gomide 
43. Helaine Francisco Sampaio 
44. Hugo Mari 
45. Ignácio Rodrigues 
46. Ivete Camargos Walty 
47. Jane Quintiliano Guimarães Silva 
48. José Luiz Quadros de Magalhães 
49. Josiane Andrade Militão 
50. Julia Calvo 
51. Juliana Alves Assis 
52. Juliana Gonzaga Jayme 
53. Júlio César Buere 
54. Karina Junqueira 
55. Leonardo César Souza 
56. Lídia Maria L. P. Ribeiro de Oliveira 
57. Liliane de Oliveira Guimarães 
58. Lorene dos Santos 
59. Luciana Andrade 
60. Luiz Carlos Castello Branco Rena 
61. Luiz Roberto Rezende Martins 
62. Manoel de Almeida Neto 
63. Manoel Teixeira Azevedo Junior 
64. Marcia Mansur Saadallah 
65. Marcia Marques de Morais 
66. Marcio de Vasconcellos Serelle 
67. Marco Antônio Couto Marinho 
68. Marcos Roberto do Nascimento 
69. Maria Alice Moreira Lima 
70. Maria Angela Paulino Teixeira Lopes 
71. Maria Auxiliadora Monteiro de Oliveira 
72. Maria Elisa Baptista 
73. Maria Ester Saturnino Reis 
74. Maria Eugênia Alvarez Leite 
75. Maria Ignez Costa Moreira 
76. Maria Luiza Marques 
77. Maria Nazareth Soares Fonseca 
78. Mariana Balau Silveira 
79. Mariana Veríssimo 
80. Marisa Myrrha 
81. Marlene Buzinari 
82. Marta Neves 
83. Maura Eustáquia de Oliveira 
84. Meire Silva Pena 
85. Milton do Nascimento 
86. Monica Abranches 
87. Mônica de Oliveira Santiago 
88. Onofre dos Santos Filho 
89. Pablo Moreno Fernandes Viana 
90. Patrícia Pinto de Paula 
91. Paula de Paula 
92. Paula de Souza Birchal 
93. Paulo Agostinho N. Baptista 
94. Pedro Paulo Pettersen 
95. Pedro Vaz Peres 
96. Raquel Beatriz Junqueira Guimarães 
97. Regina Coeli de Oliveira 
98. Regina de Paula Medeiros 
99. Regina Marcia R. Corradi 
100. Rita de Cássia Liberato 
101. Roberto Márcio Starling 
102. Robson Savio 
103. Rodrigo Corrêa Teixeira 
104. Rogério Joanes 
105. Ronaldo Peixoto 
106. Rosa Maria Corrêa 
107. Rosana Carvalho Oliveira 
108. Rosane Souza Guglielmoni 
109. Roselia Junqueira Carvalho Rodrigues 
110. Rubem Gomes Pereira 
111. Rubens de Souza Menezes 
112. Sandra de Fatima Pereira Tosta 
113. Sandra Freitas 
114. Sandra Maria Silva Cavalcante 
115. Sheila Alessandro Brasileiro de Menezes 
116. Silvio Romero Fonseca Motta 
117. Stephen Silva Simim 
118. Tania Cristina Teixeira 
119. Teodoro Adriano Costa Zanardi 
120. Terezinha Taborda 
121. Thelma Virgínia Rodrigues 
122. Tiago Castelo Branco Lourenço 
123. Valéria de Marco Fonseca 
124. Vania de Fátima Noronha Alves 
125. Vicente Amâncio de Oliveira 
126. Vinicius Tavares de Oliveira 
127. Viviane Zerlotini da Silva 
128. Wellignton Teodoro da Silva

Belo Horizonte, aos 18 de novembro e 2016.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

MANIFESTO DA PASTORAL DA JUVENTUDE DA ARQUIDIOCESE DE BELO HORIZONTE SOBRE O MOMENTO POLÍTICO ATUAL


logo-pj
NENHUM DIREITO A MENOS
Belo Horizonte, 21 de novembro de 2016.
“Caminhar pelas estradas seguindo a ‘loucura’ do nosso Deus, que nos ensina a encontrá-Lo no faminto, no sedento, no maltrapilho, no doente, no amigo em maus lençóis, no encarcerado, no refugiado e migrante, no vizinho que vive só. Caminhar pelas estradas do nosso Deus, que nos convida a ser atores políticos, pessoas que pensam, animadores sociais; que nos encoraja a pensar uma economia mais solidária. Em todos os campos onde vos encontrais o amor de Deus convida-nos a levar a Boa Nova, fazendo da própria vida um dom para Ele e para os outros.”
(Papa Francisco, Cracóvia, Campus Misericordiae, 30/07/2016)

A Pastoral da Juventude da Arquidiocese de Belo Horizonte manifesta sua posição a respeito do momento político pelo qual atravessa o Brasil. Percebemos que muitos avanços e conquistas das lutas do povo brasileiro, no sentido de reduzir a desigualdade social e a pobreza, foram abandonados a partir do golpe legislativo apoiado pela justiça e manipulado pelos meios de comunicação de massa.
O acontecimento mais recente que tem ocupado nossas manifestações é o Projeto de Emenda Constitucional que agora tramita no Senado com o número 55/2016. Nesse sentido concordamos imensamente com a nota publicada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil de que “A PEC 241 (agora 55) é injusta e seletiva. Ela elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam garantidos. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública.”
E ainda “É possível reverter o caminho de aprovação dessa PEC, que precisa ser debatida de forma ampla e democrática. A mobilização popular e a sociedade civil organizada são fundamentais para superação da crise econômica e política. Pesa, neste momento, sobre o Senado Federal, a responsabilidade de dialogar amplamente com a sociedade a respeito das consequências da PEC 241 (agora 55).” (CNBB, nota do dia 27 de outubro de 2016).
Sob esse olhar reiteramos nosso apoio e participação ativa nas manifestações populares que estão se posicionando ao lado dos direitos conquistados pelo povo brasileiro. Sobretudo, apoiamos as ocupações e a corajosa iniciativa dos estudantes de todo o Brasil, nessa primavera estudantil, que se manifestam a favor de uma educação inclusiva e se posicionam de forma contrária à medida provisória nº 746/2016, que promove profundas alterações no Ensino Médio sem qualquer escuta aos envolvidos (educadores, alunos e pais), e à proposta do nefasto Programa Escola Sem Partido.
Olhando para a realidade e para a pluralidade das nossas juventudes desejamos ser anunciadores de boas notícias e portadores da esperança de que a vida digna será compartilhada com todas as pessoas que compõem a nossa sociedade. Como Ester, pedimos a Deus que Ele nos conceda a vida, e conceda uma vida digna ao nosso povo, eis nosso desejo e nossa luta. Portanto, não temos medo de denunciar as propostas autoritárias que estão a serviço de segmentos economicamente hegemônicos, e que não representam os interesses que vem das periferias desse nosso Brasil.
A Pastoral da Juventude da Arquidiocese de Belo Horizonte continuará ao lado das juventudes e de todos os movimentos da sociedade que se colocam de forma crítica na confiança de continuarmos reduzindo a desigualdade social que vivemos.
Que Nossa Senhora Aparecida nos sustente no acompanhamento e na participação nesse processo que ora vivemos e que constantemente nos desafia.

domingo, 20 de novembro de 2016

Os micropoderes feministas de uma revolução silenciosa



Há algo fantástico acontecendo nesse país, mais uma vez dominado por uma camarilha patriarcal e patrimonialista, sem ética e pudor. Vejo uma enorme resistência que se alastra através da força, da coragem e da garra feminina.

Nos últimos dias, acompanhei algumas ocupações estudantis. Participei de seminários com membros do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), do Movimento de Mulheres Olga Benário, da União da Juventude Socialista e do Levante Popular da Juventude. O que se destaca nesses movimentos? A presença e a liderança das mulheres.

É incrível ouvir, ver e sentir a ação política de mulheres, majoritariamente jovens, de todos os credos, etnias e orientações sexuais na articulação de movimentos que transcendem as organizações tradicionais da sociedade (partidos, corporações, sindicatos, igrejas, escolas).

Nesses movimentos, percebe-se com clareza como as mulheres têm uma extraordinária capacidade de agregar e unir forças, uma enorme resiliência para enfrentar com fé, afeto e coragem todo o tipo de adversidade, superando barreiras e contrapondo a tradicional competitividade masculina que obstaculiza, por exemplo, uma união das forças progressistas num momento tão dramático da vida nacional.

Numa sociedade que voltou a ser dominada hipocritamente pelo machismo (patriarcal e patrimonialista), que violenta sem piedade e ética o direito das minorias e dos mais vulneráveis, a pujança das mulheres, em movimentos e organizações das mais diversas, sua participação na esfera pública, inclusive nas redes sociais, é a grande novidade no cenário sociopolítico atual.

Recorro a Michel Foucault para tentar compreender a potência desse multifacetado movimento feminista. 

Antes do filósofo francês, a teoria política defendia que o poder era algo inerente a determinadas pessoas ou instituições; algo que uns tem; outros não. O poder, comumente, era associado ao Estado e à Igreja. Maquiavel, os contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau) e mesmo Marx discutiam sobre a legitimação (e a manutenção) do poder de uns sobre os outros.

Foucault apresenta uma outra perspectiva sobre o poder. Para ele, poder não é um objeto, ou uma coisa (que se possui), mas são práticas; ou seja, um conjunto de relações. Nesse sentido, o poder não é o pai, o rei ou o governante, mas é a relação que se exerce entre pai e filho; rei e súditos; governantes e governados.

Ademais, o poder não se restringe ao governo. Ele espraia-se num conjunto de práticas que são responsáveis pela manutenção do Estado. Poderes são mecanismos, ou dispositivos, das práticas (relações) cotidianas dos quais ninguém pode escapar. Tais práticas moldam os comportamentos, as atitudes, os discursos.

E o poder se pulveriza em micropoderes. Esses micropoderes podem funcionar como elementos docilizadores ou disciplinadores das mentes e dos corpos, a manterem o sistema de dominação (capitalista).  Porém, os micropoderes podem se constituir, também, numa oposição ao sistema; podem achar brechas para atuar de forma revolucionária, construindo uma nova gramática social.

Foucault não pensava, necessariamente, nos micropoderes como uma via revolucionária, mas como uma forma de se obter conquistas dentro do sistema.   

Não obstante, se tradicionalmente os micropoderes sustentam a ação das práticas que atuam como forças localizadas que reforçam e dão sustentação ao capitalismo, por outro lado, os micropoderes podem atuar como instrumentos de luta e resistência de minorias ou grupos vulneráveis.

Nesse sentido, a contraposição às práticas de um governo ilegítim0 -  ratificadas por micropoderes disciplinadores (de base machista, misógina, patrimonialista e patriarcal) que se impuseram à vida social brasileira através do golpe (sintomaticamente orquestrado contra o governo de uma mulher por um bando de violadores da Constituição) -, encontra, agora, nos micropodores dos movimentos e organizações feministas núcleos potentes de contrapoder e resistência.

As práticas advindas dos micropoderes desses movimentos feministas podem produzir novos saberes, discursos, narrativas e, potencialmente, serão fundamentais na organização do povo na resistência democrática. 

O que percebo é que os movimentos feministas que fundam variadas e potentes formas de oposição democrática estão produzindo cidadãs e cidadãos cujas práticas políticas, sociais, culturais e até mesmo religiosas são mais comprometidos com o presente e o futuro do conjunto dos habitantes deste país. 

É paradoxal numa sociedade onde a violência contra a mulher parece naturalizada, observamos as mulheres se rebelarem contra essa ordem violenta e opressora. Seja no espaço privado ou no espaço público, vemos as mulheres que não se submetem, docilizadas (belas, recatadas e do lar), aos ditames de um grupo que se impôs à força e quer violentar nossa cidadania. 

Por isso, os micropoderes que se organizam e se espraiam através dos movimentos feministas atuais são tão potentes: não somente colocam em xeque o macropoder da coalizão golpista, mas também mexe nas estruturas de nosso modelo sociopolítico e religioso baseado nos violentos poderes masculinos que têm produzido tantos males, guerras, destruições e sociedades excludentes, baseadas nas múltiplas formas de violência, como a nossa.



quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Professores da PUC Minas manifestam-se a favor das ocupações, contra PEC 55, reforma do ensino médio e escola sem partido

Assembleia Professores PUC Minas
Em Assembleia ocorrida na noite desta terça-feira, 08.11, professores da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) aprovaram por unanimidade um manifesto a favor das ocupações estudantis, e contra a PEC 55, a reforma do ensino médio e o projeto escola sem partido.

No documento, os docentes informam que  "decidimos trazer a público este manifesto, em que apresentamos a posição unânime dos professores presentes, relativamente à ocupação estudantil nesta Universidade, bem como acerca das razões que embasam movimentos semelhantes em todo o País: não podemos nos omitir em face dos graves riscos e consequências que se delineiam com a tentativa, por parte do Governo Federal, de que seja aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016, que se encontra no Senado, tendo recebido o parecer de inconstitucional pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa da casa, após aprovada na Câmara dos Deputados, como PEC 241."

Numa defesa à educação, os professores dizem que  "a escola, pública ou privada, é do povo. A universidade, pública ou privada, é do povo. A educação é um direito universal e constitucional. Repudiamos, nesse sentido, as ações de censura e violência – física e verbal – que, infelizmente, insistem em ser a marca de setores que ora se encontram no poder – midiático, jurídico, governamental."

Sobre o projeto de reforma do ensino médio e o projeto escola sem partido, o manifesto exige que os professores sejam ouvidos: "nossa luta, insistimos, é pelo direito de sermos ouvidos, de participarmos dos fóruns de discussão dos destinos da educação brasileira, razão pela qual também nos posicionamos frontalmente contrários à Medida Provisória nº 746/2016, que promove alterações no Ensino Médio, e à proposta do Programa Escola Sem partido. Tais 2 propostas configuram-se como pontos de vista unilaterais e, nessa medida, são antidemocráticas, radicalmente contrárias à lógica da nossa própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LEI Nº 9.394), que se baseia no princípio do direito universal à educação; na liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar e de divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas".

CONFIRA, NA ÍNTEGRA, O DOCUMENTO:


MANIFESTO DE APOIO À OCUPAÇÃO DOS ESTUDANTES DA PUC MINAS 

Nós, professores da PUC Minas, reunidos em assembleia extraordinária da Associação dos Docentes da PUC Minas (ADPUC), no dia 8/11/16, decidimos trazer a público este manifesto, em que apresentamos a posição unânime dos professores presentes, relativamente à ocupação estudantil nesta Universidade, bem como acerca das razões que embasam movimentos semelhantes em todo o País. 

Como educadores, pesquisadores e cidadãos, entendemos que não podemos nos omitir em face dos graves riscos e consequências que se delineiam com a tentativa, por parte do Governo Federal, de que seja aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016, que se encontra no Senado, tendo recebido o parecer de inconstitucional pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa da casa, após aprovada na Câmara dos Deputados, como PEC 241. 

Primeiramente, manifestamos nosso irrestrito apoio à corajosa iniciativa dos estudantes da PUC Minas, que, sintonizados com as ações de milhares de outros estudantes da educação básica e do ensino superior do Brasil, revelam seu forte compromisso com os rumos da educação brasileira. Do nosso ponto de vista, a legitimidade desse movimento é assegurada por duas razões centrais. 

Em primeiro lugar, porque a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55 não foi discutida pelos diferentes setores da sociedade brasileira mais diretamente atingidos pelo que ali se propõe. Trata-se, nessa medida, de uma proposta autoritária e a serviço de segmentos economicamente hegemônicos, que não representam os interesses da sociedade brasileira. 

Em segundo lugar, em razão de que a lógica que orienta a PEC 55, ao propor o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, não leva em conta os previsíveis crescimentos da população e do PIB ao longo desse longo período. Isso, irrefutavelmente, acarretará danos irreversíveis à educação e à saúde de nosso povo. A escola, pública ou privada, é do povo. 

A universidade, pública ou privada, é do povo. A educação é um direito universal e constitucional. Repudiamos, nesse sentido, as ações de censura e violência – física e verbal – que, infelizmente, insistem em ser a marca de setores que ora se encontram no poder – midiático, jurídico, governamental. 

A luta dos estudantes é também a nossa luta. Exatamente por isso, manifestamos nosso estranhamento ao pedido de reintegração de posse por parte da Reitoria da PUC Minas. A nossa luta é a luta da sociedade brasileira, heterogênea, múltipla, plural, desejosa de mais igualdade de direitos e oportunidades, e não de congelamentos que beneficiarão apenas os grandes e que calarão, ainda mais, aqueles que, historicamente, não são escutados: o povo brasileiro, sobretudo os pobres. 

Nossa luta, insistimos, é pelo direito de sermos ouvidos, de participarmos dos fóruns de discussão dos destinos da educação brasileira, razão pela qual também nos posicionamos frontalmente contrários à Medida Provisória nº 746/2016, que promove alterações no Ensino Médio, e à proposta do Programa Escola Sem partido. Tais propostas configuram-se como pontos de vista unilaterais e, nessa medida, são antidemocráticas, radicalmente contrárias à lógica da nossa própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LEI Nº 9.394), que se baseia no princípio do direito universal à educação; na liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar e de divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. 

Aos que nos perguntam sobre a legitimidade de movimentos de ocupação das escolas ou universidade privadas, respondemos: a educação é um bem universal. Seja promovida por escolas públicas, por instituições de ensino superior comunitárias, como é o caso da PUC Minas, ou por IES privadas, a educação é um bem social, cultural, que deve ser garantido a todos, universalmente. 

Em um contexto em que princípios constitucionais basilares, previstos pela LDB, são fortemente golpeados por uma agenda culturalmente conservadora e economicamente liberal, não cabe investir na separação de interesses entre instituições públicas e privadas de ensino, mas sim na defesa inegociável dos princípios que professamos: igualdade de direitos, inclusão de todos, compromisso com o bem comum. A escola, a universidade, a ciência, a educação e o Brasil são de todos. 

Não podemos nos omitir diante de forças que se organizam no sentido de preservar esses bens comuns na lógica do patrimonialismo, do privatismo. Mais dos que isso, neste momento de profunda crise econômica, social e política, não podemos permitir que o direito à educação seja negociado entre alguns grupos sociais, em detrimento da sua longa história de restrições orçamentárias, de lutas e de conquistas sociais. Especialmente neste momento de crise, a educação deve ser considerada uma prioridade no processo de formação humanística, científica, cultural, profissional, integral do nosso povo. 

A proposta de emenda à Constituição (PEC 55/2016), que quer instituir um novo Regime Fiscal, no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, para os próximos 20 anos, a Reforma do Ensino Médio, com base em uma medida provisória (MP 746/2016), e o projeto de lei Escola Sem Partido (PLS 193/2016) são iniciativas políticas dos poderes executivo e legislativo que, certamente, merecem do cidadão brasileiro, dos professores de todos os níveis de ensino e dos estudantes, secundaristas e universitários, uma franca e concreta oposição. 

Em função disso, reiteramos o nosso concreto apoio às ocupações estudantis, que, neste momento, de maneira corajosa, criativa e socialmente responsável, ocorrem em todo o Brasil e, particularmente, à que ocorre em nossa PUC Minas.