domingo, 20 de novembro de 2016

Os micropoderes feministas de uma revolução silenciosa



Há algo fantástico acontecendo nesse país, mais uma vez dominado por uma camarilha patriarcal e patrimonialista, sem ética e pudor. Vejo uma enorme resistência que se alastra através da força, da coragem e da garra feminina.

Nos últimos dias, acompanhei algumas ocupações estudantis. Participei de seminários com membros do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), do Movimento de Mulheres Olga Benário, da União da Juventude Socialista e do Levante Popular da Juventude. O que se destaca nesses movimentos? A presença e a liderança das mulheres.

É incrível ouvir, ver e sentir a ação política de mulheres, majoritariamente jovens, de todos os credos, etnias e orientações sexuais na articulação de movimentos que transcendem as organizações tradicionais da sociedade (partidos, corporações, sindicatos, igrejas, escolas).

Nesses movimentos, percebe-se com clareza como as mulheres têm uma extraordinária capacidade de agregar e unir forças, uma enorme resiliência para enfrentar com fé, afeto e coragem todo o tipo de adversidade, superando barreiras e contrapondo a tradicional competitividade masculina que obstaculiza, por exemplo, uma união das forças progressistas num momento tão dramático da vida nacional.

Numa sociedade que voltou a ser dominada hipocritamente pelo machismo (patriarcal e patrimonialista), que violenta sem piedade e ética o direito das minorias e dos mais vulneráveis, a pujança das mulheres, em movimentos e organizações das mais diversas, sua participação na esfera pública, inclusive nas redes sociais, é a grande novidade no cenário sociopolítico atual.

Recorro a Michel Foucault para tentar compreender a potência desse multifacetado movimento feminista. 

Antes do filósofo francês, a teoria política defendia que o poder era algo inerente a determinadas pessoas ou instituições; algo que uns tem; outros não. O poder, comumente, era associado ao Estado e à Igreja. Maquiavel, os contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau) e mesmo Marx discutiam sobre a legitimação (e a manutenção) do poder de uns sobre os outros.

Foucault apresenta uma outra perspectiva sobre o poder. Para ele, poder não é um objeto, ou uma coisa (que se possui), mas são práticas; ou seja, um conjunto de relações. Nesse sentido, o poder não é o pai, o rei ou o governante, mas é a relação que se exerce entre pai e filho; rei e súditos; governantes e governados.

Ademais, o poder não se restringe ao governo. Ele espraia-se num conjunto de práticas que são responsáveis pela manutenção do Estado. Poderes são mecanismos, ou dispositivos, das práticas (relações) cotidianas dos quais ninguém pode escapar. Tais práticas moldam os comportamentos, as atitudes, os discursos.

E o poder se pulveriza em micropoderes. Esses micropoderes podem funcionar como elementos docilizadores ou disciplinadores das mentes e dos corpos, a manterem o sistema de dominação (capitalista).  Porém, os micropoderes podem se constituir, também, numa oposição ao sistema; podem achar brechas para atuar de forma revolucionária, construindo uma nova gramática social.

Foucault não pensava, necessariamente, nos micropoderes como uma via revolucionária, mas como uma forma de se obter conquistas dentro do sistema.   

Não obstante, se tradicionalmente os micropoderes sustentam a ação das práticas que atuam como forças localizadas que reforçam e dão sustentação ao capitalismo, por outro lado, os micropoderes podem atuar como instrumentos de luta e resistência de minorias ou grupos vulneráveis.

Nesse sentido, a contraposição às práticas de um governo ilegítim0 -  ratificadas por micropoderes disciplinadores (de base machista, misógina, patrimonialista e patriarcal) que se impuseram à vida social brasileira através do golpe (sintomaticamente orquestrado contra o governo de uma mulher por um bando de violadores da Constituição) -, encontra, agora, nos micropodores dos movimentos e organizações feministas núcleos potentes de contrapoder e resistência.

As práticas advindas dos micropoderes desses movimentos feministas podem produzir novos saberes, discursos, narrativas e, potencialmente, serão fundamentais na organização do povo na resistência democrática. 

O que percebo é que os movimentos feministas que fundam variadas e potentes formas de oposição democrática estão produzindo cidadãs e cidadãos cujas práticas políticas, sociais, culturais e até mesmo religiosas são mais comprometidos com o presente e o futuro do conjunto dos habitantes deste país. 

É paradoxal numa sociedade onde a violência contra a mulher parece naturalizada, observamos as mulheres se rebelarem contra essa ordem violenta e opressora. Seja no espaço privado ou no espaço público, vemos as mulheres que não se submetem, docilizadas (belas, recatadas e do lar), aos ditames de um grupo que se impôs à força e quer violentar nossa cidadania. 

Por isso, os micropoderes que se organizam e se espraiam através dos movimentos feministas atuais são tão potentes: não somente colocam em xeque o macropoder da coalizão golpista, mas também mexe nas estruturas de nosso modelo sociopolítico e religioso baseado nos violentos poderes masculinos que têm produzido tantos males, guerras, destruições e sociedades excludentes, baseadas nas múltiplas formas de violência, como a nossa.



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