Há algo
fantástico acontecendo nesse país, mais uma vez dominado por uma camarilha
patriarcal e patrimonialista, sem ética e pudor. Vejo uma enorme resistência
que se alastra através da força, da coragem e da garra feminina.
Nos últimos dias, acompanhei algumas ocupações estudantis.
Participei de seminários com membros do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e
Favelas (MLB), do Movimento de Mulheres Olga
Benário, da União da Juventude Socialista e do Levante Popular da Juventude. O que se
destaca nesses movimentos? A presença e a liderança das mulheres.
É incrível ouvir, ver e sentir a ação política de mulheres,
majoritariamente jovens, de todos os credos, etnias e orientações sexuais na
articulação de movimentos que transcendem as organizações tradicionais da
sociedade (partidos, corporações, sindicatos, igrejas, escolas).
Nesses movimentos, percebe-se com clareza como as mulheres têm uma
extraordinária capacidade de agregar e unir forças, uma enorme resiliência para
enfrentar com fé, afeto e coragem todo o tipo de adversidade, superando
barreiras e contrapondo a tradicional competitividade masculina que
obstaculiza, por exemplo, uma união das forças progressistas num momento tão
dramático da vida nacional.
Numa sociedade que voltou a ser dominada hipocritamente pelo
machismo (patriarcal e patrimonialista), que violenta sem piedade e ética o
direito das minorias e dos mais vulneráveis, a pujança das mulheres, em
movimentos e organizações das mais diversas, sua participação na esfera
pública, inclusive nas redes sociais, é a grande novidade no cenário
sociopolítico atual.
Recorro a Michel Foucault para tentar compreender a potência desse
multifacetado movimento feminista.
Antes do filósofo francês, a teoria política defendia que o poder
era algo inerente a determinadas pessoas ou instituições; algo que uns tem;
outros não. O poder, comumente, era associado ao Estado e à Igreja. Maquiavel,
os contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau) e mesmo Marx discutiam sobre a
legitimação (e a manutenção) do poder de uns sobre os outros.
Foucault apresenta uma outra perspectiva sobre o poder. Para ele,
poder não é um objeto, ou uma coisa (que se possui), mas são práticas; ou seja,
um conjunto de relações. Nesse sentido, o poder não é o pai, o rei ou o
governante, mas é a relação que se exerce entre pai e filho; rei e súditos;
governantes e governados.
Ademais, o poder não se restringe ao governo. Ele espraia-se num
conjunto de práticas que são responsáveis pela manutenção do Estado. Poderes
são mecanismos, ou dispositivos, das práticas (relações) cotidianas dos quais
ninguém pode escapar. Tais práticas moldam os comportamentos, as atitudes, os
discursos.
E o poder se pulveriza em micropoderes. Esses micropoderes podem
funcionar como elementos docilizadores ou disciplinadores das mentes e dos
corpos, a manterem o sistema de dominação (capitalista). Porém, os micropoderes podem se
constituir, também, numa oposição ao sistema; podem achar brechas para atuar de
forma revolucionária, construindo uma nova gramática social.
Foucault não pensava, necessariamente, nos micropoderes como uma
via revolucionária, mas como uma forma de se obter conquistas dentro do
sistema.
Não obstante, se tradicionalmente os micropoderes sustentam
a ação das práticas que atuam como forças localizadas que reforçam e dão
sustentação ao capitalismo, por outro lado, os micropoderes podem atuar como
instrumentos de luta e resistência de minorias ou grupos vulneráveis.
Nesse sentido, a contraposição às práticas de um governo ilegítim0
- ratificadas por
micropoderes disciplinadores (de base machista, misógina, patrimonialista e
patriarcal) que se impuseram à vida social brasileira através do golpe
(sintomaticamente orquestrado contra o governo de uma mulher por um bando de
violadores da Constituição) -, encontra, agora, nos micropodores dos movimentos
e organizações feministas núcleos
potentes de contrapoder e resistência.
As práticas advindas dos micropoderes desses movimentos feministas
podem produzir novos saberes, discursos, narrativas e, potencialmente, serão
fundamentais na organização do povo na resistência democrática.
O que percebo é que os movimentos feministas que fundam variadas e
potentes formas de oposição democrática estão produzindo cidadãs e cidadãos
cujas práticas políticas, sociais, culturais e até mesmo religiosas são mais
comprometidos com o presente e o futuro do conjunto dos habitantes deste país.
É paradoxal numa sociedade onde a violência contra a mulher parece
naturalizada, observamos as mulheres se rebelarem contra essa ordem violenta e
opressora. Seja no espaço privado ou no espaço público, vemos as mulheres que
não se submetem, docilizadas (belas, recatadas e do lar), aos ditames de um
grupo que se impôs à força e quer violentar nossa cidadania.
Por isso, os micropoderes que se organizam e se espraiam através
dos movimentos feministas atuais são tão potentes: não somente colocam em xeque
o macropoder da coalizão golpista, mas também mexe nas estruturas de nosso
modelo sociopolítico e religioso baseado nos violentos poderes masculinos que
têm produzido tantos males, guerras, destruições e sociedades excludentes,
baseadas nas múltiplas formas de violência, como a nossa.
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