domingo, 24 de junho de 2018

Uma república duplamente tutelada



Em recente artigo, o filósofo Vladimir Safatle alertou que o país caminha para uma espécie de ditadura camuflada, ou seja, a tutela total e irrestrita das Forças Armadas: o jogo consiste a terminar o período de pactos e de democracia aparente da Nova República por meio da transferência do poder político real para as Forças Armadas.

Segundo Safatle, mais importante do que as eleições presidenciais, o verdadeiro deslocamento do poder já terá ocorrido e ele não passa pelos clássicos atores políticos. Hoje, inexiste agenda importante de governo que não passe pelas Forças Armadas: paralisação de caminhoneiros, decomposição do governo carioca e degeneração do governo federal. Em todos esses casos, as Forças Armadas são convocadas e cada vez mais se tornam protagonistas.

Como se não bastasse, nos últimos dias o comandante do Exército resolveu sabatinar os candidatos à presidência. E mais: outro militar é protagonista político na condição de chefe do Gabinete de Segurança Institucional e um general assumiu o Ministério da Defesa. Isso sem contar a ameaça tuiteira vinda da caserna quando o Supremo julgou, há dois meses, um habeas corpus de Lula. Às favas as aparências...

Tenho insistido, por outro lado, desde o golpe de 2016, que setores do sistema de justiça também resolveram tutelar os demais poderes. Chamo de juristocracia um regime político onde qualquer juiz ou promotor de qualquer instância (com ou sem participação das polícias), pode determinar o que bem entender, se utilizando de mecanismos judiciais casuísticos para impor à sociedade, à um indivíduo ou instituição a sua percepção pessoal, servindo a uma ideologia, uma classe ou grupo político em prejuízo da ética, da legalidade ou dos anseios populares. Num post publicado aqui faço uma síntese de como o sistema de justiça está a atuar como protagonista político, ao arrepio da Constituição.

Mas, o protagonismo do Poder Judiciário pode ser observado com mais clarividência nas ações/omissões do juiz Sérgio Moro, do TRF4 e do STF, muitas vezes ardilosamente articuladas, em momentos estratégicos, em toda a trama golpista. O partidarismo e a seletividade na atuação de magistrados e dessas instâncias, em certas ocasiões, chegam a se constituir como escárnio nacional.

Porém, se notarmos com mais atenção, numa perspectiva histórica, as ações arbitrárias que unem bacharéis, outros operadores do sistema de justiça e os militares remontam da proclamação da república: um golpe que teve como principais atores bacharéis, militares, latifundiários e maçons. Desde então, esses segmentos, em diversos momentos da vida republicana, de forma mais ou menos coesa, patrocinaram todo o tipo de tutela à democracia no país.

Não por acaso, durante a ditadura militar, assistimos a convivência amistosa entre os generais, as grandes bancas de advogados, juízes, procuradores e policiais. Obviamente, esses segmentos sempre estiveram a serviço de interesses das elites econômicas, sociais e políticas.

Em vários momentos da vida nacional, essa associação - que envolve os setores jurídico, policial e militar - protagonizou rupturas democráticas.

Os pactos feitos “por cima”, como a famigerada lei da anistia, sempre foram abençoados por esses atores. E os grandes beneficiários dos golpes (no momento, os empresários do yellow duck, os banqueiros, rentistas e latifundiários) são os fiadores dessa união.

Infelizmente, boa parte da classe média, inclusive os setores progressistas, dormiram em “berço esplêndido” depois da Constituição Federal de 1988. Primeiro, porque não houve nenhuma reforma substantiva no sistema de justiça e no modelo militar e policial-militar herdados da ditatura. Ademais, sob a égide do chamado “estado democrático de direito” consolidou-se um pensamento hegemônico segundo o qual a democracia de direito se transbordaria na democracia de fato... e todos poderiam sentir “o sol da liberdade em raios fulgidos [que] brilhou no céu da pátria nesse instante”.

Desgraçadamente, a abissal desigualdade social, o recrudescimento do estado policial-penal e a brutal violência seletiva, transformada em política estatal, continuaram a conviver com uma nação cuja cidadania era de e para poucos.

Não obstante a melhoria dos indicadores sociais desde 1988, principalmente nos governos petistas, o abismo que separa ricos e classe média dos pobres - somado à violência extremada contra estes últimos - denunciava a ouvidos moucos que a democracia no Brasil era uma farsa.

Porém, todos, inclusive os acadêmicos, sempre donos da verdade, afirmavam com retumbante convicção que a democracia brasileira estava consolidada. Dormíamos felizes com lemas do tipo “Brasil: um país de todos”.

Até que veio o golpe e a farsa democrática tupiniquim foi vergonhosamente desmontada.

Mesmo no período do golpe (e posteriormente), assistimos árduos defensores do sistema de justiça (da Casa Grande) em nosso país. Devotados juristas e membros das elites sociais, políticas, partidárias sempre a defender que os tribunais superiores e o STF se submetem à Constituição.

A última encenação nesse sentido se deu no caso da absolvição da senadora Gleise Hoffmann e seu marido. Lembrei-me do ex-ministro José Eduardo Cardozo, em tempos pretéritos, sempre dizendo, com toda a certeza de um bacharel respeitado pelos consortes, como se fosse um ato de fé, que o Supremo reverteria o golpe.

O julgamento do habeas corpus do ex-presidente e as decisões dele advindas com a decretação da imediata prisão de Lula pelo todo-poderoso juiz curitibano, confirmaram que o poder judiciário decidiu, há muito, se consolidar como um dos principais agentes políticos, seja interferindo no processo eleitoral ou atuando na chantagem a todos os demais agentes políticos e poderes, como vem ocorrendo nos últimos anos. Provavelmente, a cartilha de Carmen Lúcia, prefaciada por Luís Roberto Barroso está em vigor no STF: “somos do bem; podemos tudo”. E assim nascem as ditaduras.

Agora, a decisão do ministro Fachin, numa noite de sexta-feira de Copa do Mundo, é mais uma das dezenas de ações e omissões que conformam esse protagonismo inconstitucional e antidemocrático do Judiciário, notadamente do STF.  Como asseverou o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, “o timing do despacho que extingue o pedido cautelar sugere que o jogo foi combinado”. Mais uma vez combinado, diga-se de passagem.

Nossa tese e conclusão: o Brasil está duplamente tutelado. De um lado, a juristocracia que consolida um estado penal-policial-judicial seletivo; doutro, as Forças Armadas cada vez mais salientes.

A rigor, são clubes de amigos desde o início da república que, como castas, querem continuar amigos íntimos para dominarem eternamente essa republiqueta das bananas.