domingo, 24 de fevereiro de 2019

Aos militares e a todos os brasileiros

1. Há 150 anos que o Brasil não entra numa guerra (já basta a carnificina que subtrai a vida de mais de 60 mil brasileiros, a maioria pobres e negros, todos os anos em nosso país).

2. Para um país continental e com grandes riquezas naturais (petróleo, minério, água doce...), a ausência em guerras é um feito e uma honra à diplomacia e às Forças Armadas.

3. A Venezuela nunca fez mal ao Brasil.  Ao contrário, tem boas relações comerciais e diplomáticas com nosso país. Ademais, somos vizinhos, latinoamericanos, coirmãos e o Brasil nunca teve pretensões imperialistas.

4. Ter na fronteira do Brasil um país com imensas reservas petrolíferas é uma imensa oportunidade de parcerias comerciais futuras, dado que nosso país possui (ainda) uma das maiores e mais bem sucedidas empresas com a capacidade de exploração e refino de petróleo.

5. Só um governo antinacional desperdiçaria as chances de relações de amizade e reciprocidade que podem gerar oportunidades para ambos os países no presente e no futuro.

6. A Venezuela tem uma série  de problemas sociais e de governança, como todos os demais países, incluso o Brasil.

6.1. Uma profunda crise democrática também assola países capitalistas que se curvaram à ditadura do mercado.

6.2. Haja vista tudo o que ocorreu em nosso país nos últimos três anos, não temos moral frente à comunidade internacional para nos postarmos como mais democráticos que a Venezuela.

7. Como um dos fundadores da ONU, o Brasil sempre se destacou no concerto das Nações como país cumpridor das resoluções dessa organização supranacional. A ONU, como se sabe, estabelece a não interferência de terceiros em assuntos domésticos (princípio da não-intervenção e soberania nacional). Para que manchar esse legado?

8. Governos passam e, mais cedo ou mais tarde, são substituídos. Porém, uma ação bélica  em um país  vizinho deixará marcas e instabilidades profundas por décadas.

8.1. Ainda mais quando a agressão se dá num momento de penúria e divisão do povo venezuelano. Como se sabe, a história nunca inocenta os agressores.

8.2. A ONU é a melhor instância para dirimir os conflitos na Venezuela e, se for o caso, dirigir ações humanitárias e o Brasil deveria atuar diplomaticamente nessa direção.

9. O povo brasileiro, salvo pequena parcela de apolíticos que se movem pelo ódio e pela violência, não aceita a agressão a um país vizinho.

9.1. Principalmente, se esse ato serve apenas para atender às exigências dos EUA, que sempre fazem da guerra e da truculência um instrumento para ampliar seus domínios e sua sanha imperialista e incrementar a indústria armamentista - uma das bases de sua economia.

9.2. Todas as guerras patrocinadas pelos EUA foram prejudiciais aos povos atacados, à ordem e à segurança mundiais.

10. Numa guerra sem justificativa como essa, se ocorrer, o Brasil não tem nada a ganhar. Mas terá muito a perder.

11. Mas, se o Brasil entrar nessa aventura, faço duas sugestões às Forças Armadas:

11.1. Convoquem para as batalhas todos os incentivadores dessa guerra, a começar pelos jovens truculentos da classe média, a turma da mídia empresarial, os bon vivant que ficam incentivando a barbárie. Certamente, eles servirão de bucha de canhão para Trump com satisfação. E, caso o Brasil vença, poderão ganhar de recompensa uma ida, com estadia paga, na disneylândia, para se divertirem por uns dias com o pateta.

11.2. Por fim, dêem a honra do comandante em chefe das FFAA, o capitão Bolsonaro e seus filhos, assumirem o ponteiro na empreitada. Parece que eles estão muito motivados. Certamente, como têm demonstrado no governo do país, serão excelentes comandantes nessa aventura. E não vale comando por tuites.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

O que motivaria a espionagem à Igreja Católica?



Um dos assuntos mais comentados nesse segundo final de semana de fevereiro é a reportagem do Estadão sobre as ações do Planalto para “combater o clero de esquerda”.

Segundo apurou o jornal paulista, o governo Bolsonaro pretende conter o que considera “um avanço da Igreja Católica na liderança da oposição, no vácuo da derrota e perda de protagonismo dos partidos de esquerda”.

Um alerta da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e dos comandos militares relatam recentes encontros de cardeais brasileiros com o Papa Francisco, no Vaticano, para discutir a realização do Sínodo sobre Amazônia, que reunirá em Roma, em outubro, bispos de todos os continentes. O debate irá abordar a situação de povos indígenas, mudanças climáticas provocadas por desmatamento e a questões ligadas aos quilombolas e às comunidades tradicionais amazônicas.

Ainda segundo a reportagem, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), comandado pelo General Heleno, também monitora o clero e lideranças católicas através de informações do Comando Militar da Amazônia e do Comando Militar do Norte.

Será mesmo que o Sínodo da Amazônia é a razão da arapongagem oficial à Igreja Católica? Vejamos:

1. A Igreja Católica e a Ditadura Militar:

Como é sabido, apesar de ter apoiado o golpe militar de 1964, a igreja católica foi a instituição que veio a ocupar o lugar de protagonismo nas denúncias contra as barbaridades praticadas durante da ditadura.

Foram vários os bispos e lideranças católicos que tomaram dianteira na luta contra a regime militar. Uma das figuras mais emblemáticas para a repercussão internacional das graves violações aos direitos humanos praticadas no período foi o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara, que viajou o mundo inteiro à época denunciando os horrores da ditadura.

A partir de 1968, auge da tortura com o AI 5, as peregrinações do arcebispo renderam-lhe quase duas dezenas de títulos de doutor honoris causa em universidades nos Estados Unidos e na Europa. As viagens ao exterior daquele que era chamado de “arcebispo vermelho” pelos militares eram cobertas com atenção pela imprensa internacional. Na França, por exemplo, Dom Helder participava de debates transmitidos ao vivo pela TV. O arcebispo escancarou para o mundo o que ocorria nos porões da ditadura.

Dom Helder foi perseguido de várias formas. O Padre Antônio Henrique, amigo pessoal e assessor da Pastoral da Juventude, foi sequestrado em maio de 1969, torturado e morto na madrugada do dia 27 por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas e por agentes da polícia civil de Pernambuco. O crime do Padre Antônio Henrique Pereira Neto foi oficialmente esclarecido pela Comissão da Verdade de Pernambuco. Como conclusão da investigação, a morte do padre foi considerada um crime político, contrariando as várias versões oficiais defendidas na época, de que teria sido um homicídio comum, até relacionado a drogas ou passional. Os detalhes foram apresentados no relatório do Volume 2, do Caderno da Memória e Verdade da Comissão, em 2017.

Segundo a Comissão da Verdade de Pernambuco, a morte foi uma forma utilizada por membros da ditadura militar para coibir as atitudes libertadoras de Dom Hélder Câmara.

Os militares sabem muito bem que, apesar da Igreja Católica ter perdido influência política nos últimos tempos, a instituição ainda goza de muita credibilidade e, além de grande capilaridade no país, poderá reeditar, no plano internacional, denúncias de violações de direitos que venham a ser institucionalizadas pelo governo atual. Portanto, o enquadramento do episcopado nesse início de governo pode ser uma forma de dar um recado à CNBB, haja vista a experiência pretérita.

Porém, como ocorrera durante a ditadura, para além dos bispos, milhares de sacerdotes, religiosas, religiosos e leigos católicos atuam nas bases da sociedade e agem diferente dos neopentecostais católicos da atualidade.  Esses líderes não estão dispostos a ficarem somente louvando a Jesus enquanto a violência e as violações aos direitos humanos país assombram o país afora.

2. O “perigoso comunista” Papa Francisco:

É de conhecimento geral que o Papa Francisco é um oponente ferrenho de pelo menos dois dos principais motes do governo Bolsonaro: o ultraliberalismo e o menosprezo aos segmentos mais vulneráveis da sociedade, aqui inclusos indígenas e comunidades tradicionais.

Francisco, honrando aquele que lhe empresta o nome, é um defensor radical da natureza. Na encíclica “Laudato si', sobre o cuidado da Casa Comum”, de 2015, o Papa Francisco critica o consumismo e o desenvolvimento irresponsável e faz um apelo à mudança e à unificação global das ações para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas. Sobre o aquecimento global, por exemplo, escreveu o Papa: “A humanidade é chamada a reconhecer a necessidade de mudanças de estilo de vida, produção e consumo, a fim de combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou agravam”.

No ano passado, o Papa aprovou e mandou divulgar um documento sobre questões financeiras sob o título de “Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”. Trata-se de um estudo recheado de análises técnicas, que é um verdadeiro petardo sobre a forma como o sistema financeiro neoliberal está escravizando o mundo e promovendo uma das maiores concentrações de renda da história do capitalismo.

Por diversas vezes Francisco tem demonstrado e denunciado o domínio de uma “economia que mata” e exclui. Denuncia governos submissos à ditadura do capital e que colocam os seres humanos, principalmente os que chama de “descartáveis” em segundo plano.

Em relação ao Brasil, o Pontífice deu vários sinais de discordância de políticas neoliberais tomadas durante o governo Temer, sem contar sua posição contrária aos “golpes brandos” que aconteceram na América Latina, incluso o impeachment de Dilma Rousseff.

É óbvio que os generais sabem que o Papa Francisco acompanha a muito tempo a situação política e social brasileira e, apesar de não interferir diretamente nos assuntos domésticos, tem sinalizado ao episcopado nacional que a igreja tem lado: dos pobres e dos excluídos; na defesa dos direitos humanos e da dignidade humana; na defesa da natureza.

Ademais, grupos bolsonaristas em redes sociais e na mídia empresarial não cansam de acusar Francisco de comunista. E, como o fantasma do comunismo à brasileira virou um grande problema para setores do atual governo, nada melhor que criar condições para se tentar atacar e deslegitimar o pontífice (alvo de ataques, inclusive, de setores ultraconservadores da Igreja Católica).

Certamente, sob Francisco, o apoio da Igreja aos indígenas, às comunidades tradicionais e à preservação do meio ambiente serão reafirmados no Sínodo. Gostem ou não os generais brasileiros.

3. A velha política do inimigo interno:

Mas, talvez, a principal questão que está por detrás da arapongagem da Igreja Católica seja a reedição da velha política de perseguição aos “inimigos internos”, tão cara a segmentos das Forças Armadas desde a década de 1960. Trata-se da “doutrina da segurança nacional”.

Por incrível que possa parecer, essa política urdida durante a ditadura militar fez com que os órgãos de inteligência brasileiros, sempre ligados às Forças Armadas, desenvolvessem uma metodologia de monitoramento, vigilância e repressão a movimentos sociais, eclesiais, partidos de esquerda e organizações não-governamentais em detrimento de cuidar da espionagem internacional que atenta contra a soberania do país. Ou seja, ao invés de utilizar recursos de espionagem e contraespionagem para proteger o país da cobiça internacional, ainda mais em tempos de neocolonialismo norteamericano e do incremento das máfias internacionais corporativas mundo afora, os órgãos de inteligência, inclusive depois da redemocratização, continuaram com a velha política de caça aos inimigos internos, base inclusive da política de segurança pública brasileira até os nossos dias...

Essa situação ficou evidente no debate havido entre o general Heleno e a ex-presidenta Dilma Rousseff no início de janeiro passado.

Como se sabe, ao assumir o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o mesmo general Augusto Heleno disse que a ex-presidente Dilma Rousseff destruiu o sistema de inteligência no país e que o governo de Jair Bolsonaro terá um "trabalho penoso" pela frente: "Esse sistema foi recuperado pelo general Etchegoyen e foi derretido pela senhora Rousseff, que não acreditava em inteligência", declarou Heleno, na solenidade de transmissão de cargo.

Na sequência a ex-presidenta explicitou a velha política que sempre direcionou os serviços de inteligência brasileiros.

Em suas contas nas redes sociais Dilma escreveu: “De fato, durante meu mandato, tive várias situações de manifesta ineficácia do GSI e do sistema de inteligência a ele articulado. Houve falha, por exemplo, ao não detectar e impedir o grampo feito ilegalmente no meu gabinete, em março de 2016 – sem autorização do Supremo Tribunal Federal –, quando foi captado e divulgado meu diálogo com Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas dele ser nomeado para a Casa Civil. O caso mais grave, entretanto, ocorreu em 2013, por ocasião da espionagem feita em meu gabinete, no avião presidencial e na Petrobras pela National Security Agency (NSA), a agência de inteligência dos EUA. Os setores da inteligência brasileira não só desconheciam que a interferência vinha ocorrendo há tempo – só souberam após o caso Snowden – como sequer sabiam os meios necessários para bloqueá-la. Nem mesmo sabiam o que havia sido captado pela NSA nos referidos grampos. Uma “inteligência” ligada à Presidência da República que não tem conhecimento, capacidade e tecnologia para enfrentar a moderna espionagem cibernética não é crível. Na verdade, a própria defesa da soberania do país exige que nela não se acredite para que se possa tomar todas as medidas necessárias para torná-la efetiva e contemporânea.”

Portanto, a “inteligência” da Abin e do GSI ao que tudo indica continuou preocupada com os “inimigos internos”. E, atualmente, enquanto o país se transforma numa republiqueta vassala dos Estados Unidos; nossas reservas petrolíferas e minerais são abocanhadas por multinacionais; nossas empresas de tecnologia, com a Embraer, “voam” para o Norte e a Amazônia vai sendo preparada para a invasão externa de ianques à caça de metais preciosos e de uma incalculável biodiversidade, sem contar a fúria predatória do agronegócio nacional que não tem ética, nem pudor, a “inteligência” continua à caça dos “perigosíssimos” inimigos internos.

Como se pode perceber, o sínodo da Amazônia pode se constituir como mais uma justificativa para a espionagem da sociedade civil, sob o pretexto de vigilância do clero “esquerdopata”. Afinal, até medida provisória, a de número 870/2019, já foi enviada ao Congresso para vigiar organizações não-governamentais. Há “inimigos” pra todo lado...

Ao que tudo indica, esse conjunto de ações são uma reedição da velha política da caça ao inimigo interno. Com o Supremo, com tudo, diga-se de passagem...


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Novo cenário político brasileiro: para onde o país pode ir?


O grande embate político contemporâneo se resume na seguinte questão: se ainda há democracia no Brasil, ela pode conviver com um ultraliberalismo populista, moralista e autoritário a partir da eleição e da posse de Bolsonaro, Witzel, Doria, Zema, entre outros e de um Congresso majoritariamente moralista e conservador?
Dois projetos de sociedade estão no centro da disputa política e econômica. De um lado, articularam-se partidos políticos identificados com grupos, movimentos e as lutas políticas emancipatórias, cujos programas focam na continuidade do processo de construção de uma sociedade mais democrática, inclusiva e igualitária, cujo marco histórico foi a Constituição Federal de 1988.
Doutro, partidos e políticos (vitaminados pela mídia empresarial) que participam de um amplo espectro ideológico conservador, a representarem os interesses do poder econômico, em sua fase rentista e especulativa, e que defendem um estado mínimo, garantidor de privilégios para as elites (e parcelas da classe média conservadora), a contenção e o controle penal para a classe trabalhadora e os pobres e a volta uma moralidade de base religiosa que implica da negação das diversidades.
Uma rápida visão histórica torna-se imprescindível nessa análise. Em sociedades verdadeiramente democráticas, os governos estão a serviço dos interesses públicos e coletivos, atuando para o provimento e a consolidação de políticas públicas capazes de mitigar os efeitos avassaladores de uma economia que, cada vez mais, precede e domina a política.
Historicamente, o Brasil nunca foi um país inteiramente democrático. A violência multifacetada - gerada pela exclusão social, pela justiça seletiva, por uma elite de mentalidade escravocrata e pelo patriarcalismo indutor de múltiplas formas de opressão - sempre impediu a efetivação de direitos para todos, por um lado e, por outro, desequilibra as disputas sociopolíticas à medida que a maioria do povo é sistematicamente esmagada por essa ordem social elitista.
As relações de mando e obediência, características da hierarquização da sociedade brasileira, estão presentes no cotidiano das famílias, das igrejas, das relações de trabalho, nas escolas e em quase todos os espaços da vida, a definir uma cidadania marcada por privilégios de uns pouco e uma subcidadania - caracterizada pela não efetivação dos direitos - à maioria da população.
A criação e efetivação de direitos é recente, no Brasil. A Constituição Federal de 1988 e os governos seguintes deram alguns passos importantes para a construção de uma sociedade minimamente igualitária e justa. Mas, quando estávamos no caminho civilizatório, a sair de uma democracia meramente formal e de baixíssima intensidade para uma democracia de fato veio, mais uma vez, de forma violenta e avassaladora, uma ruptura institucional, em 2016, com o processo de impeachment de Dilma Rousseff que consolidou um período de assunção de demandas conservadoras e elitistas iniciadas mais explicitamente com as chamadas jornadas de junho de 2013.
Os históricos segmentos refratários e violentos da sociedade brasileira (as elites econômicas do empresariado, dos bancos e do agronegócio; os setores retrógrados da classe média, representados no Congresso pela bancada da Bala, da Bíblia e do Boi no Congresso; a mídia empresarial antidemocrática e segmentos privilegiados do sistema de justiça) se uniram para golpear a trajetória de construção gradual de uma sociedade verdadeiramente democrática. Isso no contexto de uma gravíssima crise econômica que se abateu sobre o país, fragilizando ainda mais o governo central - já desgastado pelo processo eleitoral belicoso de 2014, as jornadas de junho de 2013 e as várias operações policiais-judiciais seletivas que traziam à baila processos endêmicos de corrupção política no Brasil.
O importante é perceber que por trás do conjunto de atores sociais e políticos conservadores que comandaram o processo de impeachment estão os interesses do poder econômico. Para aniquilar a democracia de fato, o poder econômico atua com esses segmentos, na sociedade e na política, a criarem condições para um modelo de governança que retira do povo a soberania e a transfere para o deus-mercado.
O quadro mundial também deve ser considerado. A subalternidade da política à economia, característica do neoliberalismo, ajuda a explicar a crise de legitimidade das instituições públicas, a centralidade do deus-mercado e a guerra midiático-judicial contra os governos populares.
Assim, podemos falar de um estado de exceção - uma exigência do neoliberalismo -, que reconfigura as estruturas do poder e do Estado a partir de uma lógica de exceção, corroendo até mesmo os pressupostos da democracia liberal.
Trata-se de um estado de exceção porque convivemos com uma democracia sem povo, a serviço do mercado, e sustentada por medidas autoritárias dos três poderes amalgamados num só sistema contra o povo e a Nação.
Portanto, a ruptura havida em 2016 se baseou numa ideologia segundo a qual o poder público, portanto o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos. O político, nesses termos, deixa de ser um representante eleito a mediar os vários e legítimos interesses e conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos da maioria dos cidadãos.
No estado neoliberal, o espaço privado dos interesses dos poderosos é alargado e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido. Nos termos do neoliberalismo é impossível uma democracia de fato. Só serve uma democracia tutelada pelos donos do capital ou por seus prepostos nos poderes do Estado.
Com as eleições de 2018 encerrou-se m ciclo de ampliação de direitos e tentativa de consolidação de um estado de bem-estar social no Brasil, inaugurado com a Constituição Federal de 1988 e abriu-se um novo ciclo, que será marcado pela voracidade no desmonte do estado social, restrição de direitos, controle e perseguição a movimentos e lideranças sociais, eclesiais e culturais e implementação de políticas que visarão o incremento da “economia que mata”, nos dizeres do Papa Francisco.
Três grupos do governo Bolsonaro se encarregarão dessas pautas: no plano econômico, o grupo ultraliberal, liderado por Paulo Guedes, que conta com a empatia do vice-presidente Mourão; no plano legal, o grupo punitivista, liderado por Sérgio Moro, que, paradoxalmente, é a “cereja do bolo” do presidente e seu clã; e no plano dos costumes, o grupo moralista e conservador de base religiosa, liderado por Damares Alves, Ricardo Velez e pelo chanceler Ernesto Araújo, inspirados no ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o guru do governo de plantão.
É preciso registrar que o governo Bolsonaro surge, também, como uma ameaça totalitária. Além de Bolsonaro personificar, em certa medida, os estereótipos que lembram um ditador (que se comunica diretamente com o povo, desprezando a institucionalidade e se impondo como dono da verdade), o mais assustador é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições sociais e políticas quando (elas) se tornam homogêneas. E o alinhamento dos demais poderes da República a ideais autoritários do novo presidente, como se percebe no atual Congresso e em parte do Judiciário, podem indicar a tenebrosa perspectiva totalitária.
Registre-se, também, que as políticas anunciadas pelo governo Bolsonaro no âmbito da economia são ultraliberais e o ultraliberalismo é uma forma contemporânea do totalitarismo: tudo é pensado como se fosse uma empresa privada, inclusive o Estado. Elegem-se gestores como governantes e prima-se pela meritocracia. Ora, se o Estado e as instituições públicas são empresas, como será possível lidar com os conflitos, a diversidade e a exclusão social, por exemplo?  
Interessante observar o “novo” governo e suas disputas no campo religioso. De maneira bastante breve, é preciso anotar que os segmentos neopentecostais dentro do protestantismo e do catolicismo continuam ativos e usam sem constrangimento a estratégia de guerrilha para a defesa de uma cosmovisão fundamentada em valores conservadores e reacionários. Continuarão atacando os segmentos identificados com ações sociopolíticas transformadoras e disputarão, cada vez mais, as narrativas sobre o significado do cristianismo em tempo de adensamento da exclusão, das fakes News, dos discursos de ódio e da violência - em nome da moral e dos bons costumes da família tradicional cristã. São visões de mundo e valores que não podem ser desprezados, porque significam, para esses segmentos, o fundamento de sua fé.
Por fim, no espectro político-institucional há imensos desafios para o campo democrático e popular pela frente. Entre os principais, a formação de uma ampla aliança de centro-esquerda democrática; a reaproximação dos partidos de inspiração socialdemocrata e socialista com as bases da sociedade e a refundação das esquerdas para enfrentarem, com uma oposição consistente, um governo de viés nitidamente autoritário.
A curto prazo, o Brasil caminha a passos largos para a desconstrução das políticas de bem-estar social advindas com a Constituição Federal de 1988, a começar pela chamada “reforma da previdência”. Medidas punitivistas e de recrudescimento de um estado penal seletivo foram escancaradas no “pacote anticrime” de Moro. No plano moral e de costumes, as investidas do ministro Velez e da ministra Damares não deixam dúvidas da pauta moralista e conservadora que se espraiará sobre múltiplos setores da sociedade. E no plano das relações internacionais o chanceler Araújo, apesar de tutelado por militares das Forças Armadas, continua acreditando que Trump é o salvador da civilização ocidental, a sinalizar que conflitos de múltiplas ordens poderão isolar o país da concertação internacional.
Isso sem contabilizar as disputas viscerais intragoverno:  do presidente e seu clã com o vice; dos grupos  que querem se sobressair, liderados por Paulo Guedes, Moro, Onix, entre outros; da política rasteira que se inaugura nas duas casas do Congresso e na ação ou inação do sistema de justiça diante de acusações gravíssimas que pesam sobre o clã presidencial, ministros de seu governo e aloprados com se comportam como donos do poder. Noves fora a participação (ação, conivência e/ou omissão) das Forças Armadas nessa verdadeira maionese.
Aguardemos...