segunda-feira, 6 de julho de 2015

O conservadorismo do Parlamento e as bancadas religiosas


Na semana que passou, a dupla votação da PEC 171 (que tenta diminuir a maioridade penal)[1] e sua estranha aprovação em primeiro turno, depois de “pedalada regimental” arquitetada pelo deputado Eduardo Cunha, explicita a complexidade do momento político atual: em primeiro lugar, tal artimanha só foi possível porque Cunha e seu partido, o PMDB (que teoricamente é base de apoio do governo), se articulou com os oposicionistas PSDB e DEM. A ideia, mais uma vez era clara: derrotar o Governo Dilma Rousseff, que se movimentou fortemente para impedir a redução da maioridade.
A democracia no Brasil tem demonstrado que, historicamente, as elites político-econômicas podem até ceder em alguns momentos. Mas, sempre, se rearticulam e voltam a dominar a pauta do Congresso. Depois da Ditatura tivemos uma primavera cívica que redundou na Constituição de 1988 mas, logo na sequência amargamos governos que determinaram uma agenda neoliberal, votada para o atendimento da economia dos rentistas. Chega a ser hilário os discursos inflamados de expoentes desse período, a sustentar, atualmente,  uma pauta golpista, lastreada numa pseudoteoria nacionalista e de amor a Pátria,  como se no passado não fossem os responsáveis pela entrega sistemática e criminosa do patrimônio brasileiro aos interesses inconfessáveis de grupos privados que desde sempre expoliam a riqueza nacional.
  Com a eleição de Lula, em 2002, abriu-se nova janela de oportunidades, possibilitando alguns avanços no campo social. Porém, o governo do PT, em alianças com setores retrógrados da sociedade, não avançou em reformas estruturais e, contente com arranjos incrementais, acabou por alimentar uma ampla coalizão que hoje domina, em diversos setores e segmentos, uma agenda das mais conservadoras, golpista e perigosa. Um rigoroso inverso se aproxima...
Mas, nosso tema hoje é sobre uma parcela dessa coalização conservadora, formada por parlamentares cujo discurso moralista  e conservador é identificado como um discurso religioso.
Fala-se muito da atuação conservadora da bancada evangélica. Mas, o tradicionalismo moral que tem marcado a atuação da Frente Parlamentar Evangélica só avança graças ao apoio daqueles que se autodeclaram católicos. Segundo pesquisa feita pelo Portal G1, no início dessa legislatura, o catolicismo é a religião predominante entre os 513 deputados federais. De 421 deputados que responderam ao questionário proposto numa enquete pelo Portal, 300 (ou seja, 71,2%) se declararam católicos. Outros 68 (16%) afirmaram ser evangélicos, oito (1,9%) disseram ser adeptos do espiritismo e apenas um deputado (0,23%) afirmou ser judeu.
Segundo o Portal UOL, nas últimas eleições a Assembleia de Deus elegeu dezenove deputados; a Igreja Batista elegeu dez; a IURD e a Presbiteriana, sete deputados cada e as igrejas Renascer e do Evangelho Quadrangular, quatro deputados cada uma.
Porém, uma pesquisa mais aprofundada do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), aponta que a bancada evangélica tem 75 deputados federais e três senadores. Portanto, cerca de 15% dos deputados são da bancada evangélica. Significa que os outros 85% não são evangélicos.


Fonte: Arte Zero Hora

É óbvio que as estratégias e os compromissos do principal líder da bancada evangélica, o atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (e parte do seu séquito), dão um plus, em certa medida, à sanha moralista, conservadora e retrógrada dessa legislatura (ressalvando que existem parlamentares evangélicos identificados com pautas progressistas). Mas, como diz o velho ditado, "uma andorinha só não faz verão".

A PEC 171 e o financiamento empresarial de campanhas
Analisemos a votação de primeiro turno da PEC que diminui a maioridade penal. Apesar de instituições de referência social e eclesial, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), terem emitido várias notas públicas se posicionando contra (a redução), pode-se perceber que os deputados que se dizem católicos não aderiram ao chamamento da entidade. É verdade que, formalmente, não há uma bancada católica. Mesmo assim, aqui, cabe uma reflexão mais profunda: ao contrário da cobertura midiática que alardeia a incapacidade de produção de pauta política exclusiva do governo federal, o que se pode perceber é que as instituições, de maneira geral, estão nessa mesma vala comum. Afinal, além da CNBB, outras entidades que deveriam gozar de credibilidade na formação de consensos no Congresso, como o UNICEF, a Anistia Internacional e a OAB (que também se posicionaram contrariamente a PEC 171) não conseguiram pautar os parlamentares de todas as crenças, incluindo os católicos.  Podemos concluir que, se tais entidades ainda gozam de poder é também bastante provável que tenham perdido autoridade nos últimos anos. Aqui, valeria uma análise, à la Max Weber, de poder e autoridade. Mas, isso ficará para outro momento.
Mas, por falar em autoridade, quem acompanhou pela TV os discursos dos deputados na Câmara Federal nas duas votações da PEC 171 envergonha-se da péssima qualidade de boa parte desses parlamentares: discursos odiosos, fundamentalistas, com argumentos dos mais falaciosos; estatísticas criminais apresentadas com vieses e mentiras. Duas sessões parlamentares que afrontaram mentes minimamente inteligentes.





Farsa ou tragédia
          É famosa a frase de Marx: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
Porém, a novela se repetiu: no final de maio, Eduardo Cunha fora derrotado ao tentar aprovar o financiamento empresarial de campanha. Menos de 24 horas depois da primeira votação, o presidente da Câmara realizou manobra, conseguiu colocar a pauta novamente em votação e se saiu vitorioso. Dezenas de deputados mudaram seus votos da noite para o dia.  Em países com democracia consolidada, uma mudança na Constituição leva décadas sendo debatida. No Brasil, parece que a maioria dos parlamentares não tem receio do julgamento da história.
A comparação da votação da PEC 171 com a votação do financiamento privado de campanha e com o discurso moralista e de viés religioso que domina o Congresso faz sentido. Afinal, sabemos: o grande deus ao qual muitos parlamentares prestam seus serviços políticos e religiosos se chama DINHEIRO e, sendo um deus todo-poderoso num mundo dominado pela economia, é capaz de comprar tudo e não somente as consciências. Será que a palavra de Cristo surtiria algum efeito para aqueles(as) que se dizem cristãos? "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro" (Mateus 6,24). 




Uma pesquisa reveladora
A jornalista e professora Magali do Nascimento Cunha, docente da Universidade Metodista de São Paulo - que estuda e pesquisa a bancada evangélica - afirmou numa entrevista concedida à Rede Brasil Atual que o discurso dos parlamentares evangélicos se solidificou na política porque encontra simpatizantes em outros setores da sociedade.

“A bancada evangélica, desde a sua formação em 1986, nunca teve uma pauta progressista, ou de esquerda. Os parlamentares evangélicos, até os anos 2010, não eram identificados como conservadores do ponto de vista sociopolítico e econômico, como o é a Maioria Moral nos Estados Unidos, por exemplo. Seus projetos raramente interferiam na ordem social: revertiam-se em ‘praças da Bíblia’, criação de feriados para concorrer com os católicos, benefícios para templos. O perfil dos partidos aos quais a maioria dos políticos evangélicos estava afiliada refletia isso bem com recorrentes casos de fisiologismo”.

Porém, segundo Cilas Ferraz de Oliveira, doutor em Educação e membro da Igreja Metodista,

"o primeiro deputado evangélico no Brasil, Guaracy Silveira, pastor metodista que participou das constituintes de 1932 e 1946 tinha um programa socialista, baseado no Credo Social da Igreja Metodista, era crítico ao comunismo que denunciava como totalitário, e apoiou o respeito a diversas religiões, a educação para jovens trabalhadores, o divorcio e o fim do ensino religioso nas escolas públicas. Antes de 1964 deputados evangélicos defenderam também a reforma agraria. A partir de 1964 o meio politico evangélico deu uma guinada à direita, como as igrejas em geral."


Assim, podemos observar que o perfil e a forma de atuação dos evangélicos no Congresso mudaram muito, principalmente a partir das últimas eleições duas eleições da Câmara Federal.
De acordo com Magali Cunha, o movimento de protagonismo da bancada evangélica em direção ao conservadorismo é um capítulo recente da história do parlamento brasileiro:

“É o forte tradicionalismo moral que tem marcado a atuação da Frente Parlamentar Evangélica, que trouxe para si o mandato da defesa da família e da moral cristã contra a plataforma dos movimentos feministas e de homossexuais e dos grupos de Direitos Humanos, valendo-se de alianças até mesmo com parlamentares católicos, diálogo historicamente impensável no campo eclesiástico”.

Padres na política
Há uma longa discussão sobre a ação de lideranças religiosas no estado laico. Não entraremos, aqui, nesse tópico.
Registramos, porém, que a participação de lideranças religiosas no Congresso e na vida política nacional não é novidade que surgiu com a bancada evangélica. Todos conhecem a ação de religiosos em outros momentos da vida nacional.
Em relação à ação da Igreja Católica, atualmente os clérigos são proibidos de exercerem mandatos políticos. Se o fizerem, devem pedir temporariamente licença do exercício da ordem sacerdotal. Por isso, temos parlamentares no Congresso e noutros parlamentos que são sacerdotes, porém não representam formalmente a Igreja Católica e não exercem o ministério.
Mas, numa rápida viagem pela histórica política brasileira, verificamos que durante todo o período colonial a participação ativa de clérigos nos movimentos revolucionários do século 19 permitiu aos sacerdotes católicos assumirem destacadas funções no Congresso e no governo.
Mesmo antes da Independência, padres tiveram destacados papéis. Antônio Feijó, conhecido como padre Feijó, foi deputado geral eleito na primeira legislatura da Câmara dos Deputados (1826-1829) e na segunda legislatura (1830-1833). Depois, foi nomeado senador pela província do Rio de janeiro, Ministro da Justiça (1831-1832) e regente do Império, durante a minoridade de D. Pedro II, entre 1835 e 1837.

No Brasil, o clero representou, desde o período colonial, parte significativa da elite intelectual e política. A proibição de instituições de ensino superior, de jornais e da circulação de livros na colônia contribuiu para reforçar a influência do clero na vida pública brasileira. O altar foi espaço para grandes pregações dos jesuítas. Outros aspectos reforçaram a presença dos padres no Parlamento na época. Religião e política andavam juntas, com a subordinação da Igreja ao Estado e o reconhecimento, a partir da Constituição de 1824, do catolicismo como religião oficial do Império. A maior participação dos padres na política ocorreu no Primeiro Reinado (1822-1831) e durante a Regência (1831-1840), com a eleição do padre Feijó para o cargo de regente único, em 1834. Sua renúncia, três anos depois, e o processo de laicização do Estado - separação do Estado, da política e da religião -, crescente no decorrer do Império, fez diminuir essa influência. (Rosane Soares Santana).

Uma pergunta interessante
É conhecida também a ação de lideranças católicas em outros momentos fundamentais da vida social e política brasileira: o apoio ao golpe civil-militar de 1964 e as famosas “Marcha com Deus e a Família”; a luta contra a ditatura, pela redemocratização e pelos direitos humanos (através de expoentes como Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, dentre outros)...
Mesmo não tendo oficialmente o clero para representar o catolicismo no Congresso, há duas questões interesses: em primeiro lugar, muitos parlamentares católicos são eleitos com votos arregimentados em espaços eclesiais; segundo, muitos desses parlamentares têm se aliado à bancada evangélica.
Sendo assim, cabe uma pergunta: em se tratando de pautas conservadoras e moralistas, a atuação dos parlamentares que se declaram católicos militantes se aproxima dos evangélicos com esse mesmo perfil?



[1] Isto porque uma alteração na Constituição depende de duas votações na Câmara e duas no Senado, com quórum qualificado.