domingo, 25 de julho de 2010

A violência que nos iguala

O Brasil vive uma guerra não declarada. Os números da violência e da criminalidade são impressionantes. O total de mortes por causas externas (que, além de homicídios, inclui também acidentes, suicídios e outras causas não naturais) provocou no país cerca de dois milhões de mortes de 1980 a 2000 — o equivalente à população de Brasília. Em 82,2% dos casos (1,7 milhões), as vítimas foram do sexo masculino e a grande maioria, jovens.

A superexposição da violência na mídia, a perversidade dos criminosos que a cada dia sofisticam seus métodos encobrindo o terror do dia anterior, a banalização da vida e da morte, a ineficiência do poder público no combate e prevenção ao crime propiciam um estado de letargia coletivo, uma espécie de acomodamento covarde a espera do pior.

Desde os anos de 1980 a criminalidade violenta vem crescendo, notadamente nas grandes cidades com suas imensas regiões de grande vulnerabilidade social, em virtude do adensamento do tráfico de drogas. Enquanto se dizimavam milhares de vidas nos becos e ruas das favelas brasileiras, a sociedade assistia impávida a carnificina. Porém, como uma onda que espraia no lago ao atirarmos uma pedra, a violência foi ampliando seu raio de atuação. Em meados da década de 1990, os primeiros bairros de classe média começaram a sofrer com o problema. A criminalidade urbana foi tomando novos contornos: seqüestros, assaltos em plena luz do dia em agências bancárias, envolvimento de agentes públicos de todos os escalações da República. Era a criminalidade organizada mostrando sua face.

Hoje, nas principais cidades brasileiras todos somos reféns da violência e o medo nos une num sentimento coletivo. Não adiantam os muros altos, as câmeras de segurança ou os carros blindados. No espaço público as chamadas “balas perdidas” sinalizam que a violência está em todos os lugares e atinge todas as pessoas.

Por esse motivo, a classe média, nos últimos anos, começou a vocalizar seu protesto público. Provavelmente, porque passou a ser vítima dessa violência. E hoje, o problema, como mostram as pesquisas de opinião, aparece como o principal reclamo dos brasileiros.

Seria o niilismo, apregoado por F. Nietzsche (1844-1900), nosso destino histórico, desencadeado pela “morte de Deus”, ou seja, o vazio que se perfila no horizonte do homem ocidental depois do declínio do Deus da tradição metafísico-teológica cristã, com todas as certezas que este comportava?

Penso que não. Na verdade, há um lado positivo nesse dantesco cenário. A violência nos iguala. Todos somos reféns. Todos devemos lutar contra essa aparente impossibilidade de combatê-la.

A insensatez dos ricos, a incúria dos governantes e a omissão da sociedade agora estão em xeque. O problema passa a ser de toda uma nação que se aprisiona no espaço privado, pois o espaço público é terra de ninguém.

Se a violência nos iguala, juntemos nossas forças na construção de uma cultura da paz e da não-violência. Somemos nossas vozes nos protestos por um país decente, mais justo e igualitário. Não percamos essa oportunidade que, mesmo trágica, nos possibilita uma coesão nacional na construção de uma cidadania efetivamente para todos os brasileiros.

Segurança Pública: um recomeço?

Segundo reportagem do Jornal Folha de São Paulo, de 25/07/2010, o chamado PAC da Segurança Pública, lançado em agosto de 2007 pelo presidente Lula com a meta de reduzir os índices de homicídio pela metade, teve efeito quase nulo na contenção de mortes do tipo. Na maioria dos Estados (15) e no DF, o número de assassinatos aumentou.

Ainda segundo a Folha, "O programa tinha como objetivo chegar a 12 homicídios por 100 mil habitantes em 2010. O número ainda está em 25 por 100 mil, mesmo índice de quando o PAC foi lançado, segundo estima o próprio governo. Para a Organização Mundial da Saúde, mais que 10 por 100 mil é violência epidêmica."

"Prevê-se que, no período 2007-2012, sejam gastos R$ 6,1 bilhões com o programa, cuja face mais visível são as unidades pacificadoras que atuam em favelas do Rio."

2009 terminou com um balanço pouco animador na política nacional de segurança pública. Não obstante algumas conquistas, a década de 2000-2009 foi a continuidade de um flagelo na área da segurança. Apesar da diminuição de alguns indicadores de crimes violentos observados na segunda metade da década, a partir de 2005, não temos motivos para comemorar. O número de mortes por homicídio no Brasil é vergonhosamente assustador: cerca de 37 mil brasileiros perdem a vida por ano. Em sua maioria jovens, na faixa etária entre 14 e 29 anos, pobres e negros. Este também é o perfil dos novos presidiários que entram em idade cada vez mais tenra em nossas prisões - verdadeiras masmorras que não recuperam nem integram os infratores à sociedade. Prova disso é que as taxas de reincidência no país chegam a alarmantes 80%.

Como se não bastasse o número de homicídios - a maioria fruto do adensamento do tráfico de drogas no país, mas uma grande quantidade motivada por questões banais, devido ao número crescente de armas em poder dos cidadãos -, outros indicadores de causas externas de mortalidade nos envergonham: são cerca de 36 mil mortes por ano no trânsito, essa nova máquina de matar que continua gerando novos criminosos sem nenhuma punição. Isto porque nossa legislação não considera os assassinatos praticados por motoristas drogados, bêbados, irresponsáveis, em veículos sem condições de uso, como crimes dolosos. Afinal, até bem pouco tempo o automóvel era acessível somente às elites que continuam impunes, num país cujo sistema de justiça criminal é leniente, moroso e altamente seletivo – às vezes eficiente na punição de ladrões de chinelo, mas por outro lado, crimes do trânsito, do colarinho branco, da corrupção são invisíveis para uma justiça, em boa medida, cega e muda frente ao poder econômico.

Outros indicadores que nos assustam: a taxa de apuração de crimes pelas polícias é absurda. Homicídio, o crime mais violento, que atenta contra a vida humana, tem taxa de resolutividade de cerca de 7 a 10 %. Ou seja, de cada 100 homicídios, somente 7 a 10 autores desses crimes são efetivamente punidos. Com esse nível de ineficiência a impunidade campeia em nossas plagas. E como resultado desse descalabro, o cidadão, desconfiado do sistema de proteção e defesa social, deixa de notificar a maioria dos crimes, dificultando ainda mais o planejamento estratégico e a gestão policial.

Observam-se melhorias dos indicadores sociais; porém, temos ainda agências públicas que amedrontam a cidadania: polícias que torturam, invadem residências sem ordem judicial, julgam e executam. Agentes públicos que cotidianamente rasgam a Constituição, sem serem punidos. Somente no Rio de Janeiro, mais de mil cidadãos foram mortos pelas polícias no ano passado.

Mas voltemos aos números para exemplificar nosso argumento: em 1999, Belo Horizonte teve 536 homicídios. Esse número chegou a mais de 1.300 mortes em meados da década. No ano passado foram 730 assassinatos. Uma taxa de 30 homicídios por 100 mil/habitantes, quando o razoável seria 10 por 100 mil. Como, então, comemorar melhorias nesse tipo de indicador? O que aconteceu em Belo Horizonte em termos de homicídios se aplica em boa medida às grandes cidades do país.

Apesar desses números, podemos ver algumas luzes no final do túnel: primeiramente, o debate sobre segurança pública amplia-se. A sociedade passa a vocalizar uma ação articulada do Estado para essa área; segurança pública como direito de cidadania. Novos atores sociais são chamados a darem sua contribuição. Há uma evidente reação do poder público, com mais investimentos na gestão, integração e na eficiência policial. Programas de prevenção ao crime - destinados a jovens e populações em condições de vulnerabilidade social -, se institucionalizam.

Os municípios, antes alheios aos problemas da segurança, compreenderam seu papel nessa política e vêm cumprindo a tarefa de ampliar os programas sociais, investindo também na prevenção ao crime, na melhoria da infra-estrutura urbana e na vigilância do patrimônio público, desonerando a atividade policial.

O poder judiciário, menos encastelado e reativo, começa a experimentar novas metodologias de ação: a justiça restaurativa vai-se ampliando; a aplicação de penas e medidas alternativas ganha força e novos arranjos possibilitam uma justiça mais célere e eficiente.

Um segmento que precisa ser repensado é o sistema prisional brasileiro. Ineficiente e oneroso, ampliou-se soberbamente nos últimos 10 anos com a política de encarceramento e recrudescimento penal dos últimos anos. O caso do estado de São Paulo é paradigmático neste contexto. Diminuição das taxas de homicídios, mas superlotação das prisões. E as prisões continuam uma colcha de retalhos, podres, corruptas. De dentro das prisões, muitos crimes são articulados e perpetrados. Nosso modelo prisional precisa ser urgentemente repensado.

Por fim, os gestores públicos nos níveis municipal, estadual e federal começam a atuar de forma articulada e cooperativa, não somente no combate ao crime, mas nas ações de prevenção e, principalmente, no planejamento estratégico e integrado de ações de médio e longo prazos o que poderá resultar, brevemente, numa melhor eficiência na política pública de segurança.

A década passada foi perdida para a segurança pública. Tomara que em 2010 os governos e todos os segmentos da sociedade colaborem na construção de um recomeço; uma reversão no macabro quadro da (in) segurança pública brasileira. Que o poder público reconquiste seu lugar de garantidor dos direitos da cidadania. Que a cidadania ativa possa participar desse novo momento. E que possamos comemorar, no final desta década, indicadores que garantam ao povo brasileiro a tão sonhada paz, com justiça social.