sábado, 17 de março de 2018

A vida e a morte de uma mulher inconformada e os discursos de ódio

Foto: Mídia Ninja


Vamos deixar bem claro já no início deste texto: fundamentalistas religiosos e fascistas que saíram do armário nos últimos anos estão desassossegados nas redes sociais pelas repercussões da morte de Marielle, principalmente pelo fato de ser uma mulher, negra, pobre, de esquerda, defensora dos direitos humanos, feminista e homoafetiva. Querem matá-la pela segunda vez, disseminando ódio, inclusive com discursos religiosos eivados de sentimento de vingança. São perversos! E representam o que há de pior nessa sociedade adoecida pelo ódio derivado da abissal desigualdade; pela exclusão social que gera morte e pela violência estrutural que não permite que o andar de baixo seja "gente”.

Nessa quadra da nossa história, vem à memória situações vividas na Alemanha antes do nazismo: amargura, ressentimento e ódio contaminando o povo; a destruição de todos os sonhos, corroídos pelas falcatruas das elites no poder; a sanha de pervertidos direcionando o ódio coletivo às políticas públicas e sociais; a glomourização do medo e do terror para se justificar, na sequência, o totalitarismo.

Aqui, convivemos com a violência homicida, que ceifa e vida de milhares de pobres e negros; a violência estrutural, que impõe restrições de direitos à maioria da população, enquanto uns poucos nadam na opulência; a violência simbólica, que justifica e naturaliza a violência contra a mulher, o negro, o pobre, a população LGBT+, criminalizando-os e os tratando como sujeitos de segundo ou terceira categorias (que não merecem respeito, nem consideração).

Segmentos que aplaudem o auxílio moradia de juízes, cujo valor é maior que a renda de 90% dos brasileiros, e vomitam ódio quando o Estado oferece uma bolsa irrisória para o sustento dos mais pobres. Que estão irados pelo fato de uma mulher, negra, defensora de direitos humanos e da periferia ser reverenciada por uma Nação e pela comunidade internacional - que compreenderam o significado de sua morte: a tentativa de calar, silenciar, sufocar e, no limite, exterminar qualquer liderança popular que se contraponha as estruturas de poder e de governo que mantém o país mais desigual e racista do planeta terra.

Homenagens e reverência, urram os fascistas, só para os ricos e os poderosos; ou seja, só para os homens e mulheres de ben$ (com cifrão no final). Para a senzala, chicote.

É nesse caldeirão de desesperança, medo e ódio que vicejam os discursos perversos dos autoritários e fascistas, sempre de plantão.

E é na base social, de um povo que se sente pisoteado, humilhado e derrotado, que surgem as soluções autoritárias, trocando liberdades e direitos por falsas promessas de segurança a qualquer custo.

Disseminam-se os discursos e práticas sectárias; abundam as soluções messiânicas. Aparecem os outsiders da política, que não têm compromisso com a democracia, para solucionarem os problemas nacionais, à força.

A mágoa, o ódio, a vingança, sentimentos que exalam a baixeza da condição humana, congrega os setores mais reacionários da sociedade que se arvoram na tentava de enfraquecer e deslegitimar o pensamento analítico e dos grupos comprometidos com os ideais democráticos e republicanos.

Muitos pobres, vítimas desse sistema violento de dominação e colonização, embarcam facilmente nesses discursos de eliminação do outro, sem perceberem que cavam a própria sepultura. Afinal, como nosso sistema de educação não educa nem à autonomia e muito menos à cidadania, as salas de aula foram transferidas para os sofás anestesiantes e manipuladores de expectadores da mídia – principal vetor de disseminação do veneno e do ódio contra tudo e contra todos. E, ao produzir "terra arrasada, fica fácil a dominação pela violência e pela barbárie.

O mais chocante é que em nome da religião e de Deus, líderes inescrupulosos, perversos e manipuladores, charlatães da pior qualidade, aproveitam dessa situação para disseminar ainda mais essa onda mortal de discursos que justificam a violação da dignidade humana, acabando com a esperança do povo, o principal sinal da presença religiosa numa sociedade.

Os ovos da serpente do fascismo brotam por toda a parte. Os discursos virulentos após o assassinato de Marielle (por aqueles grupos que historicamente se apropriaram do Estado para saqueá-lo), abriu novamente a caixa da Pandora.  

Há exatamente um ano, escrevi um texto intitulado, “abriu-se a caixa de Pandora: a política do vale-tudo” (leia aqui). Na ocasião alertávamos: 

A trama perversa do golpe abriu a caixa de Pandora dessa república das bananeiras: escancarou não somente a podridão do sistema político, como também expôs  o nível de manipulação  e de controle que a mídia exerce sobre as instituições e a sociedade brasileira, o envolvimento de uma juristocracia elitista e conservadora com o submundo da política, o fascismo de setores da classe média, a fragmentação e as disputas dos setores democráticos e de vanguarda; enfim, a farsa de uma democracia altamente excludente, erigida e sustentada na desigualdade social e nos privilégios de elites, com instituições republicanas dominadas por grupos de interesse ensimesmados e não comprometidos com princípios basilares de um estado democrático e de direito.

É imperioso, nesse momento, a resistência e a racionalidade firme e aguerrida dos setores da sociedade que prezam pela dignidade do ser humano como princípio basilar da vida em sociedade.


sábado, 10 de março de 2018

Autoritarismo: ou, a volta daqueles que nunca foram



Já tratamos em diversos textos sobre a juristocracia tupiniquim. O conglomerado, formado pela chamada “carreira jurídica de estado”, principalmente por juízes, promotores e policiais, encrustado na burocracia pública, que opera como uma espécie de estado paralelo.

Um vídeo da ex-corregedora do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon, durante a XVI Conferência da Advocacia Mineira, em Juiz de Fora, entre os dias 8 e 10 de março, resume a ópera: [referindo a corrupção de juízes]: “sabe o que os meus colegas do CNJ diziam? É inconstitucional investigar juiz. Pronto”.

Esses segmentos conviveram pacificamente com a ditadura militar de 1964; não foram reformados pela Constituição Federal de 1988; convenceram as elites e classes médias, beneficiárias diretas de seus (bons) serviços, a vitaminarem seus poderes legais após a Constituição e foram se autonomizando a tal ponto de deixarem a condição de servidores da lei e fiadores da democracia e da República, a se transformarem em castas herméticas paraestatais, violando frontalmente os poderes que representam a vontade popular. Atualmente, qualquer prefeito é refém de um promotor.

Como está cada vez mais claro e evidente, o golpe de 2016 só foi possível por ações, omissões e conivências do sistema de justiça que, assistindo de camarote a usurpação da Constituição por diversas vezes (inclusive em transmissões ao vivo, como no caso do vazamento do telefonema entre a presidenta Dilma e Lula), preferiu “dormir em berço esplêndido” enquanto uma horda de malfeitores, a serviço do rentismo internacional e dos privilegiados nativos, preparava a facada final, através do fajuto impeachment sem crime de responsabilidade. Encenação tão mal-ajambrada que a presidenta cassada não perdeu seus direitos políticos, a denunciar a patifaria que se constituiu tal processo de exceção.

Qualquer cidadão que entende um mínimo de estado democrático de direito compreende que o golpe de 2016 se caracterizou pelo fato de um grupo minoritário ter tomado o poder sem respaldo e delegação popular, desrespeitando a decisão da maioria e afrontando os mecanismos institucionais e jurídicos do dito estado democrático e, por mais esdrúxulo que possa parecer, tal golpe ter sido respaldado por ações judiciais. 

Pois muito bem.  Depois de implantarem um programa de governo rejeitado pelas urnas, com as vênias pomposas da justiça eleitoral, e passados dois anos da empreitada, as pesquisas de opinião pública apontam o total desdém do povo em relação ao conglomerado golpista, formado pela fusão dos três poderes que operam contra o povo e os interesses da Nação. Temer et caterva, o Congresso - majoritariamente formado por larápios - e o judiciário da Casa Grande são objeto de reprovação da maioria dos brasileiros.

Enquanto foi possível substituir os tanques pelas togas, o golpe funcionou precariamente, com disputas vergonhosas, à la faroeste caboclo, pelos despojos da trama entre os usurpadores e devido a resistência popular que se avolumava, apesar da narrativa manipuladora da mídia nativa.

Mas, aproximando-se das eleições de outubro vindouro e haja vista a total desaprovação popular de todos os nomes do conglomerado usurpador que pleiteiam o Planalto, as aparências ruíram e foi ficando claro que o golpe corria risco.  Portanto, só restava recorrer à caserna para manter o projeto “de salvação nacional”, como dizia o impoluto conselheiro presidencial, o senador Romero Jucá.

Agora, fica claro: os grupos que empreitaram o golpe de 1964 estão novamente juntos e misturados: as elites e a mídia nacionais a serviço dos interesses norte-americanos, o sistema judicial-policial e as Forças Armadas.

Infelizmente, tivemos a lei da anistia que jogou uma pá de cal nos torturadores, ratificada solenemente pelo Supremo, diga-se de passagem; depois, a Constituição Federal de 1988 não reformou os sistemas de justiça e de segurança. Os governos democráticos, sempre governando com coalizões conservadoras, não enfrentaram as reformas estruturais que poderiam colocar freios no poder das corporações midiáticas e na sanha predatória das elites nacionais de mentalidade escravocrata.

Resultado: a repressão institucionalizada que caracterizou o golpe de 1964 está novamente montada no país e a intervenção no Rio é somente a face mais evidente dessa quadra do golpe.