terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Um balanço da segurança pública e justiça criminal



Para um balanço da política de segurança pública (local, regional e/ou nacional), via de regra utilizam-se indicadores de criminalidade: quais crimes aumentaram e quais caíram num determinado espaço e tempo. E se produz uma análise a respeito da variação desses indicadores.

Esse tipo de apreciação tem um valor muito relativo. Porque, entre outras questões, a criminalidade é sazonal; os indicadores refletem realidades conjunturais e escondem uma série de ações e omissões das agências públicas no enfrentamento do fenômeno. Ou seja, indicadores em baixa num determinado momento e local não significam, necessariamente, melhorias objetivas e duradouras da segurança pública; o contrário também é verdadeiro.

Para uma análise mais profunda e sistêmica da violência e da criminalidade é preciso discutir as causas desses fenômenos e como está estruturado o sistema de prevenção e combate aos crimes. Somente assim, poderemos entender porque a violência estrutural e cultural são características históricas e persistentes em nossa sociedade (há séculos). E, entra ano, sai ano, com pequenas alterações aqui e acolá, as múltiplas manifestações da violência persistem e as soluções efetivas para o enfrentamento do problema sequer são pautadas.

Nesse sentido, se lançarmos nosso olhar para indicadores em períodos mais ampliados perceberemos que, apesar de mudanças pontuais num ou noutro local ou num determinado período, convivemos com absurdos índices de violência e de crimes, naturalizados pelos governos e pela sociedade.

Em primeiro lugar é preciso reconhecer que enquanto não se processarem profundas reformas nos sistemas de segurança pública e de justiça criminal brasileiros não daremos um salto qualitativo em termos de arrefecimento da violência e promoção da paz no Brasil. Tais sistemas, que não foram reformados no processo de redemocratização, estão totalmente obsoletos, mesmo na realidade atual de uma democracia de mentirinha (ou de baixíssima intensidade, para agradar os conservadores).

Soa hipocrisia, inclusive, falar de segurança pública quando o poder central está nas mãos de grupos de desqualificados que governam a Nação. Alguns dos membros desses grupos, amalgamados nos três poderes da república, são identificados como pertencentes a grandes organizações criminosas. Portando, como combater o crime, quando o crime nos governa?


Como se não bastasse essa situação vergonhosa, é preciso constatar que os sistemas de segurança pública e justiça criminal são reativos, seletivos, altamente insulados e corporativos. Funcionam quase como um estado paralelo dentro do dito "Estado democrático e de direito". Tratam do fenômeno do crime com imensa discricionariedade, privilegiando alguns segmentos sociais em detrimento de outros.

Basta analisarmos os indicadores de crimes em quaisquer cidades médias ou grandes do nosso estado ou país. Numa mesma cidade, há ilhas de segurança, tranquilidade e conforto e espaços altamente violentos. As polícias e a justiça atuam nesses espaços de forma a protegerem alguns segmentos e criminalizarem outros.

Trata-se da velha história da Casa Grande e da senzala: o malvado e perigoso é sempre o pobre e o preto da favela; os usuários de drogas pobres e os microtraficantes da periferia. O rico e o branco podem até transportar o "bagulho" em altas quantidades em helicópteros... e isso não é problema paras as polícias e para a justiça.

Ademais, a insegurança pública gera muitos dividendos políticos e econômicos. A indústria da segurança privada é uma das que mais faturam no país. E, apesar de reclamarem o tempo todo da insegurança, os ricos e os segmentos da classe média têm alto poder de vocalização de suas demandas; por isso, seus apelos são visibilizados pela mídia empresarial e, em contrapartida, são os favorecidos, porque podem pagar por segurança privada e, se precisarem, têm as salvaguardas dos sistemas públicos de segurança e de justiça.

Por outro lado, aqueles segmentos sociais que mais precisam de um aparato público de proteção e de justiça são os mais vitimizados pelo modelo inquisitorial, reativo e seletivamente vingativo dos sistemas de segurança e justiça.

Há muitos bons policiais, promotores e juízes. Mas, institucionalmente, as elites das polícias, do MP e do judiciário estão mais preocupadas com disputas interinstitucionais e na defesa dos privilégios corporativos do que com a efetividade de tais instituições.

Em Minas, por exemplo, não obstante o aumento exponencial dos investimentos em segurança pública na última década, quando vivíamos tempos de vacas gordas, observamos a persistência de indicadores de crimes ruins se compararmos com sociedades democráticas. É claro que se a comparação for com outros estados da federação, parece que estamos em situação confortável. Essa percepção equivocada é sustentada por interesses corporativos, governamentais e por uma mídia que não consegue enxergar para além das nossas montanhas e que tem parte de sua audiência e seu faturamento no sensacionalismo da cobertura sobre o cotidiano da violência.

Junte-se a tudo isso o fato de que os governantes, nos três poderes do Estado e nos três níveis de governo, não têm disposição para enfrentar as históricas mazelas dos sistemas de segurança e justiça. Preferem a condição de reféns das corporações policiais e judiciárias a efetivarem reformas substantivas que alterem as práticas equivocadas, autoritárias e discricionárias desses sistemas. Ou, quando os indicadores de crime viram manchete, encenam um jogo de empurra: municípios apontam o dedo para o estado; que aponta o dedo para a União; que devolve para os estados e municípios. Polícias culpam o MP e Justiça. A justiça culpa as polícias e o sistema prisional. Guardas municipais culpam as polícias que culpam a justiça e... assim “a nave vai”.

Por isso, entra ano, sai ano, observamos alterações pontuais nos indicadores de crimes. E, mesmo nos locais onde esses índices são considerados baixos, basta uma rápida comparação com países verdadeiramente democráticos que chegaremos à triste conclusão: vivemos e convivemos com o caos seletivo na segurança, na justiça, nas prisões...

Acontece, que esse caos, como dito anteriormente, beneficia uns, apesar de prejudicar a maioria dos brasileiros. Talvez, por isso, apesar do estardalhaço geral, os sistemas de segurança e de justiça não são reformados. Repetimos: alguns ganham com esse caos.

No Brasil, a justiça e as polícias sempre protegeram a Casa Grande. E a senzala sempre foi tratada como cidadania de segunda ou terceira categorias.

E, enquanto persistir esse modo de funcionamento de uma sociedade estruturalmente injusta, desigual e violenta, as discussões sobre segurança e justiça se limitarão a indicadores que variam de acordo com circunstâncias, de forma pontual e para esconder interesses inconfessáveis.

Porém, uma análise mais profunda dos indicadores de crimes no Brasil - desde a chamada redemocratização – confirma: vivemos numa sociedade que naturalizou a violência estrutural e cultural porque as vítimas são, majoritariamente, pobres e negros; os governos ditos democráticos não adequaram os sistemas de segurança pública e justiça a uma ordem verdadeiramente democrática; tais sistemas protegem alguns segmentos em detrimento de outros e produzem lucros para alguns, vitimizando a maioria dos brasileiros.

(OBS: Didaticamente, optei por fazer uma distinção entre sistema de segurança pública e sistema de justiça criminal. A rigor, o sistema de justiça criminal contempla também a segurança pública).