domingo, 18 de setembro de 2016

Somos do bem: podemos tudo!

Fonte: Internet

Não há nada mais perverso, doentio e perigoso que a mistura entre radicalismo político e radicalismo religioso. O fanático político-religioso não tem limites; não tem ética; não age com a razão. Age por convicção, ou seja, pela crença pervertida que é um porta-voz do bem ou um discípulo de uma causa transcendental. É convicto que tem uma missão a ser cumprida e sendo superior, porque é um enviado de Deus para extirpar o mal da terra, deve salvar o mundo daqueles "eleitos" como sendo os ímpios.

Os fanáticos político-religiosos se congregam em castas herméticas cujo objetivo é criar mecanismos de autoproteção. Só assim, sentem-se seguros e empoderados para cumprir sua missão redentora. Estão convictos: somos do bem; podemos tudo!

É por isso que o fanático político-religioso tem na pregação e na oratória suas principais armas para arrebanhar adeptos. Utiliza-se da propagação do medo para justificar a consolidação de uma seita baseada em discursos de ódio e de vingança. Lembremos da advogada Janaína e seus espetáculos em nome de um deus que “vai nos salvar": “Se tem alguém fazendo algum tipo de composição nesse processo, é deus", disse ela na defesa do impeachment.

O filósofo e cientista político esloveno Slavoj Žižek nos ajuda a entender esse fenômeno: a unificação de todos os medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que move os ideais dos grupos e líderes fanáticos. Essa estratégia justificou, por exemplo, o nazismo (os nazistas tinham horror dos judeus, dos homossexuais...); e o golpe civil-militar de 1964 (o medo do comunismo). 

 A soma dos muitos medos (os verdadeiros ou aqueles construídos no imaginário social) produz um ambiente propício para se criar um clima de pânico; instalar a desconfiança generalizada; propagandear uma insatisfação irracional, mesmo num espaço institucionalmente normal. A partir daí, podem-se construir as saídas autoritárias e os golpes, através de pseudo-heróis "salvadores da Pátria"; justifica-se o injustificável com argumentos falaciosos, mas aparentemente palatáveis e aceitos pela cultura vingativa que, em alguma medida, nos congrega enquanto herdeiros da tradição cristã ocidental que se contenta, muitas vezes, com a eleição de bodes expiatórios para a superação das nossas mazelas.

A partir da unificação dos medos é fácil propagar o discurso do ódio, da violência e da eliminação a qualquer custo daqueles que encarnam os “males” que devem ser combatidos e extirpados pelos “bons”.

O espetáculo midiático promovido pelo promotor Dallagnol – um fervoroso fiel religioso que prega o combate à (um determinado tipo de) corrupção em templos pelo país afora – mostra que o fanatismo de base política e religiosa contaminou parte dos membros das instituições do sistema de justiça brasileiro. Talvez, por isso, há tantos “homens e mulheres da lei” (advogados, policiais, promotores, juízes) ligados umbilicalmente a certas igrejas e sociedades secretas.

Vários grupos incrustados em segmentos da advocacia, dos ministérios públicos, das instituições policiais e da magistratura têm se comportado como “caçadores de corruptos”, cuja pregação e discursos de base religiosa significam uma ameaça efetiva ao estado democrático e de direito.

Pensam, tacanhamente, que o direito penal, seletivamente aplicado, resolve todos os problemas e mazelas sociais e políticos. Exercem seu ministério com base numa paranoia de acusação sem direito à defesa, facilitando a "perseguição" ou "delação" - ao gosto dos clientes, no caso, da mídia hegemônica, dos políticos tradicionais organicamente corruptos e de segmentos privilegiados da sociedade.

O reducionismo judicial, transformado em ativismo persecutório, tem produzido uma justiça ainda mais seletiva e corroborado um pensamento torto, simplista, odioso e infantil Brasil afora. Esse pensamento espraia-se nas redes sociais, contaminando-as de ódio e caça às bruxas. 

Até a morte de um ator global tem sido atribuída ao PT. São tantas as sandices, as expressões de irracionalidade e mesquinhez – inexplicáveis pela razão – que somente podem ser entendidas, de fato, por convicções de base religiosa. Obviamente, uma religião imatura, infantilizada, persecutória, vingativa.

É preciso lembrar: o Ministério Público, as instituições policiais, inclusive a Polícia Federal, e o Judiciário foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 sem nenhuma prestação de contas de suas ações e omissões durante a ditadura. E mais: esses órgãos foram fortalecidos a partir de 1988, sem nenhum mecanismo efetivo de controle. Milhares de juízes, promotores e policiais, por exemplo, têm vencimentos acima do teto constitucional e isso parece natural e legal. Atualmente, parte dos membros dessas estruturas, povoadas pelos filhos das elites - que buscaram nas carreiras jurídicas do Estado a fonte de privilégios e defesa de interesses de classe -, formam uma espécie de estado paralelo dentro do estado de direito: uma juristocracia.

 A aliança espúria e virulenta entre setores do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário com a imprensa, desde o chamado “Mensalão” e agora na “Operação Lava Jato” - tramando jogadas midiáticas com discursos messiânicos (verdadeiros tribunais inquisitoriais contemporâneos) -, constitui num perigo inominável não somente à ordem democrática, mas também para todos os cidadãos e as demais instituições sociais.

Quando a acusação em doses cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de culpa, convicção, chantagem e difusão do medo e do ódio, mesmo não havendo investigações suficientes, provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e reputações e promover caça às bruxas flerta-se com um estado totalitário.

Como está cada vez mais evidente e já foi apontado por Jânio de Freitas noutra ocasião, “o que a Lava Jato investiga de fato, por meio de investigações secundárias, não é a corrupção na Petrobras; não é a ação corruptora de empreiteiras; não são casos de lavagem de dinheiro: são os governos do PT”. 

E, dado que a coalizão golpista apeou a presidenta Dilma do poder à força, resta agora, aos torquemadas sacrossantos, a perseguição inquisitorial a Lula (que como já escrevi noutro post, não é nenhum santo). E, na sequência, como sempre prega o impoluto Aécio Neves, a eliminação do PT. Aí, todos os males da face da terra serão expurgados e os homens e mulheres de bem reinarão para sempre. Amém! 

Fábio Konder Comparato escreveu célebre artigo sobre o caráter patrimonialista, elitista, hermético e autoritário do Judiciário brasileiro. Esse poder, desde os seus primórdios, se tornou o menos transparente da República, avesso a investigações de toda ordem, impedindo, desde sempre, que as inúmeras denúncias de corrupção e favorecimento de seus quadros e de elites políticas tradicionais fossem punidas nos limites da lei (veja aqui).

Que fique claro: apesar da podridão do sistema político, os excessos e arroubos autoritários cometidos pelas convicções de juízes, policiais e promotores na Lava Jato fazem com que o primeiro poder a ser questionado, nesse momento, seja justamente o Judiciário.