terça-feira, 5 de novembro de 2019

AS FALÁCIAS DOS "DOIS LADOS" E DA POLARIZAÇÃO POLÍTICA

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A mídia empresarial, que sempre tem lado, conseguiu implantar nas mentes e nos corações dos brasileiros, entre outras, duas das mais perversas mentiras que só servem para a alienação social: (1) que os fatos e acontecimentos têm dois lados e (2) que o Brasil está polarizado.
Os fatos sociais, políticos, econômicos, religiosos têm múltiplos lados. São complexos e não se resumem a simplismos.
Quando a mídia impõe a pseudoversão dos "dois lados", reproduz uma simplificação grosseira da realidade, historicamente conhecida: o maniqueísmo - a velha luta entre o bem e o mal.
Observe que a mídia empresarial (corrupta e corruptora, em seu DNA) sempre se posta do lado do bem e o outro lado, cirurgicamente escolhido e nomeado, é apresentado como sendo o lado do mal.
Ao usar essa perversidade simplificadora da complexa realidade sociopolítica, a mídia escolhe quem é o inimigo e como lançá-lo à fogueira inquisitória da chamada "opinião pública" (outra simplificação, porque essa opinião que se diz pública se reduz ao pensamento majoritário dos segmentos sociais que têm poder de vocalização; ou seja, a opinião publicada que agrada e reproduz as expectativas de uma minoria social de privilegiados).
Percebam que ao escolher o "outro lado" e nomeá-lo, a mídia empresarial procede de tal forma que múltiplas vozes e possibilidades de análise são silenciadas ou invisibilizadas para que o inimigo eleito seja condenado, por convicções, pela "opinião pública".
Outra fake news deslavada e propagada aos quatro ventos pela mídia empresarial é que o Brasil é um país polarizado.
Para justificar sua posição de apoio aos segmentos fascistas, autoritários, antinacionais e perversos da sociedade, a mídia precisa construir uma falsa imagem que há "um outro lado" tão perverso, ou até mais perverso, que precisa ser enfrentado e combatido pelos "bons".
Veja o que acontece nos dias atuais: a mídia empresarial é uma das principais responsáveis pelo golpe de 2016 e pela assunção do autoritarismo travestido de normalidade democrática. Por isso, precisa defender, "com unhas e dentes", a falácia da polarização para se autojustificar.
Há um lado radicalizado que todos conhecemos. Esse lado defende a ditadura militar; o AI - 5, a tortura, o fechamento do Congresso e do STF; a submissão da imprensa aos caprichos dos filhotes da ditadura; a transformação do país no quintal dos norte-americanos; a entrega de nossas riquezas naturais ao estrangeiro; a total submissão ao rentismo gerador da mais perversa concentração de renda da história do capitalismo; a destruição de seres humanos para abrir espaço à sanha do capital; a total subordinação dos poderes da república a grupos milicianos...
Pergunta: onde e quando, uma única vez, o outro "polo" defende esse tipo de radicalização?
Obviamente, esse discurso da polarização serve para (1) manter os ultradireitistas mobilizados, (2) passar a falsa ideia que a mídia é isenta e dá oportunidade de manifestação dos "dois lados" e (3) justificar o escamoteamento daqueles têm medo (e ainda algum pudor) de se revelarem à sociedade. Hipocritamente - porque têm lado e medo de se revelarem -, milhões de brasileiros preferem se refugiar nesse discurso alentador da covardia.
Não nos enganemos: há muitos lados nos fenômenos sociais, políticos, religiosos... e não há nenhuma polarização. Mas, há muitos covardes que adoram tais discursos.

domingo, 20 de outubro de 2019

Francisco: o grande líder global da atualidade

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Você não precisa ser católico e/ou religioso para concordar com o título deste artigo. Mas, certamente, só ratificará essa afirmativa se (1) acompanhar o cenário das disputas reais e simbólicas no plano internacional e (2) se o fizer extrapolando a cobertura da mídia empresarial (totalmente comprometida com o capitalismo rentista, concentrador de riqueza e usurpador das democracias contemporâneas). Afinal, esse despotismo financeiro que governa as economias capitalistas contemporâneas é classificado por Francisco como “uma economia que mata”.
Não obstante a guerra patrocinada contra Francisco em vários fronts, por poderosas corporações internacionais (bancos; agronegócio; indústrias das armas, farmacêutica e do petróleo; think tanks norteamericanos propulsores do ultraliberalismo na América Latina - liderados por megaempresários católicos e protestantes; políticos de extrema-direita e grupos religiosos obscurantistas...), o Papa continua a mobilizar um imenso contingente de líderes e grupos sociais de todas as Nações que se somam no enfrentamento, de variadas formas, da chamada “onda ultraconservadora”.
Remando corajosamente contra a maré, Francisco tem se empenhado em ações estratégicas que já redundam em poderosos focos de enfrentamento ao ultraliberalismo. Abaixo, listamos algumas das iniciativas de Francisco que tem repercutido globalmente e extrapolado o “mundo” católico.

1. Protagonismo dos Movimentos Populares: para contrapor a corrosão da política tradicional e os limites da democracia deliberativa (que sucumbiram à “economia que mata”), o Papa promoveu três encontros internacionais, elegendo como interlocutores privilegiados as lideranças dos movimentos populares.
Francisco percebeu que os chefes dos poderes públicos, de modo geral, estão altamente deslegitimados pelo fato de terem se capitulado à lógica do dinheiro e do mercado, afastando-se cada vez mais dos clamores dos pobres, servindo a um “sistema econômico que põe os benefícios acima do homem [...], que considera o ser humano como um bem de consumo, que se pode usar e depois jogar fora. Servem a um sistema centrado no ‘deus dinheiro’ a saquear a natureza para manter o ritmo frenético de consumo que lhe é próprio.  Um sistema global destrutivo “que impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza”. Assim, Francisco preferiu se aliar aos líderes dos movimentos populares que “expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias tantas vezes desviadas por inúmeros fatores.”[1]
Nos três encontros com os movimentos populares[2], Francisco tocou no ponto central desse sistema político-econômico que produz exclusão e múltiplas formas de violências. As últimas crises econômicas mundiais serviram para aumentar a concentração de riqueza e renda em todo o planeta. Atualmente, vinte e oito grandes grupos financeiros manejam quase dois trilhões de dólares por ano. O balanço desses megaconglomerados financeiros que têm, entre outros, o Goldman Sachs, o JP Morgan Chase, o Bank of America, o Citigroup, o Santander, entre outros, mostra um patrimônio (não produtivo) de cinquenta trilhões de dólares, sendo que o PIB mundial está na casa dos 75 trilhões. Esses conglomerados detêm cerca de 68% do fluxo mundial do capital.[3]
O sistema econômico atual se sobrepõe à política e aos interesses dos povos e das nações e funciona graças à corrupção generalizada: nada menos que 25% do Produto Interno Bruto mundial são remetidos a paraísos fiscais por grandes empresas e instituições financeiras.  Estima-se que a cada ano dezoito trilhões de dólares seguem o caminho da sonegação de impostos. No Brasil a estimativa de evasão fiscal entre 2003 e 2012 foi de 220 bilhões de dólares.
A corrupção passou a ser a mola propulsora do capitalismo rentista, especulador e concentrador de renda e riqueza que viceja nos últimos tempos. A concentração de poder em pouquíssimos conglomerados e a fusão ou compra de grandes bancos desencadeados pela crise de 2008 determina o modo de funcionamento de um sistema que precisa corromper governos (agentes públicos) para subsistir.
O elemento profético e simbólico da opção de Francisco pelos movimentos populares é a explicitação da mais dura e contundente crítica ao capitalismo em sua fase atual, marcada pelo rentismo especulativo que promove a mais avassaladora política de acumulação de riqueza e renda da história, a privilegiar pouquíssimos.
Em contraposição a esse sistema global idólatra “que exclui, degrada e mata”, o Papa Francisco propõe uma nova governança global protagonizada pelos movimentos populares: “atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas na busca diária dos ‘3 T’ (terra, teto e trabalho) e, também, na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudanças nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem”. [4]

2. A economia de Francisco: noutra grande articulação internacional, o Papa promoverá em Assis, na Itália, de 26 a 28 de março do próximo ano, um encontro mundial para repensar a economia global.
Serão convidados jovens economistas de até 35 anos, empresários e militantes de movimentos comprometidos com mudanças sociais. Segundo Francisco, há que se buscar “uma economia diferente, que faz viver e não matar; inclusiva; que humaniza e não desumaniza; que cuida da Criação e não a depreda. Um evento que nos ajude a estar juntos e nos conhecer, e que nos leve a fazer um ‘pacto’ para mudar a atual economia e dar uma alma à economia do amanhã.”
Para o encontro em Assis, já confirmaram presença: Muhammad Yunus, conhecido como “o banqueiro dos pobres” e Amartya Sen, professor de filosofia e economia em Harvard (EUA) e Cambridge (Reino Unido), ambos agraciados com prêmio nobel. Outros renomados especialistas em desenvolvimento sustentável e economia solidária, como Bruno Frey, suíço; Carlo Petrini, italiano fundador do Slow Food; Kate Raworth, inglesa; Jeffrey Sachs, estadunidense interessado nas causas da pobreza; a indiana Vandana Shiva, diretora do Fórum Internacional sobre Globalização e Stefano Zamagni, italiano estarão presentes no evento.
O objetivo do encontro é promover intercâmbios entre teoria e prática, de modo a elaborar uma proposta alternativa à economia hegemônica que, como afirmado anteriormente, gera exclusão social e enriquecimento nababesco de uns poucos. O Papa confia que esse encontro apontará as linhas gerais de uma nova economia: justa, sustentável e inclusiva.
Em vários países, inclusive aqui no Brasil, grupos de trabalho estão promovendo eventos, fóruns, seminários para discutir uma nova economia, propor novos currículos para Universidades que abordem modelos inclusivos (de economia), mapear e promover experiências de economia solidária, criativa, inclusiva, justa.
Essa iniciativa de Francisco aponta, objetivamente, para a proposição de uma nova engenharia de governança global que contraponha o modelo atual, no qual apenas 1% mais rico é dono de metade da riqueza do mundo e as 100 pessoas mais ricas possuem, juntas, mais do que quatro bilhões dos mais pobres.[5]

3. Um pacto educativo global: noutra frente sociopolítica, Francisco articula um pacto educativo entre as nações. Para tanto, promoverá um encontro no Vaticano, em 14 de maio de 2020.
Estão convidados profissionais que trabalham com a educação de várias partes do mundo. Como explica o Papa, numa mensagem divulgada para lançar esse evento, trata-se de um “encontro para reavivar o compromisso em prol e com as gerações jovens, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão. Nunca, como agora, houve necessidade de unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna”.
O Pacto Global pela Educação faz parte dos esforços de Francisco para promover uma ampla discussão sobre os efeitos da tecnologia, do consumismo e da cultura do imediatismo/individualismo na sociedade contemporânea: “O mundo contemporâneo está em transformação contínua, vendo-se agitado por variadas crises. Vivemos uma mudança epocal: uma metamorfose não só cultural, mas também antropológica, que gera novas linguagens e descarta, sem discernimento, os paradigmas recebidos da história. A educação é colocada à prova pela rápida aceleração que prende a existência no turbilhão da velocidade tecnológica e digital, mudando continuamente os pontos de referência. Neste contexto, perde consistência a própria identidade e desintegra-se a estrutura psicológica perante uma mudança incessante”, escreveu o Papa na mensagem.
Francisco propõe três desafios a serem enfrentados pela educação: primeiro, ter a coragem de colocar no centro a pessoa; segundo, a coragem de investir as melhores energias com criatividade e responsabilidade e,  finalmente, a coragem de formar pessoas disponíveis para se colocarem ao serviço da comunidade, promovendo uma “cultura do encontro”.[6]
4. Um novo humanismo: as iniciativas acima fazem parte de um conjunto de ações que Francisco tem liderado, globalmente, para enfrentar a xenofobia, a exclusão social, os nacionalismos, populismos e totalitarismos que ressurgem em várias partes do mundo na atualidade.
O Papa sempre enfatiza o tema do trabalho humano como um daqueles direitos sagrados que deve ser preservado em cada pessoa. Frente às concreções práticas de teses neoliberais, que sufocam e oprimem as pessoas em suas experiências profissionais, Francisco clama por um “novo humanismo, que coloque fim ao analfabetismo da compaixão e ao progressivo eclipse da cultura e da noção de bem”.
            Num prefácio de uma recente publicação, Francisco reconhece que os movimentos sociais têm a capacidade de uma articulação transnacional e transcultural: aquele “modelo poliédrico” ao qual fez referência em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (nº 2), e que se constitui a partir de um paradigma social baseado na cultura do encontro. Para o Papa, esta pluralidade de movimentos, cujas experiências de luta pela justiça ficam plasmadas no livro, “representam uma grande alternativa social, um grito profundo, um marco, uma esperança de que tudo pode mudar”.
Reafirmando sua convicção de que a humanidade enfrenta atualmente uma transformação de época caracterizada pelo medo, pela xenofobia e pelo racismo, Francisco afrima que os “movimentos populares podem representar uma fonte de energia moral para revitalizar nossas democracias”, numa perspectiva humanista.
De fato, em meio a uma sociedade global ferida por uma economia cada vez mais distante da ética, os movimentos sociais podem exercer a função de um antídoto contra os populismos e a política do espetáculo, já que privilegiam a participação da cidadania, com uma consciência mais positiva sobre o outro. Essa é a consequência da promoção de uma “força do nós”, que se opõe à “cultura do eu”.
Numa carta intitulada "A comunidade humana" (Humana communitas) publicada em 15 de janeiro deste ano, Francisco pede para "restaurar a importância desta paixão de Deus pela criatura humana e o seu mundo”. No nosso tempo, escreve o Papa “a Igreja é chamada a relançar com força o humanismo da vida que irrompe desta paixão de Deus pela criatura humana. O compromisso de entender, promover e defender a vida de todo ser humano é impulsionado por este amor incondicional de Deus".

5. Sínodo da Amazônia: não obstante a guerra midiática, regada com muito dinheiro dos opositores de Francisco -- encabeçada por Steve Bannon[7] e grupos religiosos ultraconservadores --, e a batalha política patrocinada pelo governo do Brasil e por grupos de ultradireita dentro e fora do catolicismo contra o encontro que acontece nesses dias em Roma, as notícias diárias do Sínodo dão conta da configuração de um grande pacto internacional em defesa da Amazônia:  dos povos locais (os indígenas e sua cultura) e da biodiversidade.
            É simbólico o fato de o Sínodo ter extrapolado o campo eclesial e se tornado, internacionalmente, um foco de discussão sobre o modelo predatório do modelo econômico atual que destrói não somente a natureza, mas as culturas e os povos originários, beneficiando somente aquela ínfima parcela da população opulenta, sustentada pelo modelo da “economia que mata”.
            Os resultados do Sínodo certamente transbordarão às ações da Igreja Católica na região panamazônica e já sinalizam outro pacto global em defesa da “Casa Comum”[8], como vem pregando Francisco desde sua assunção ao trono papal.

6. Reformas na Igreja: como se não bastassem essas iniciativas que posicionam Francisco como o grande líder mundial contemporâneo, o Papa “que veio do fim do mundo” promove uma árdua empreitada de reforma da Igreja Católica.
Enfrentando com sobriedade e destemor todo o tipo de vicissitudes patrocinadas por setores recalcitrantes do catolicismo (clero e laicato), Francisco denuncia o clericalismo, a opulência de setores herméticos da igreja, as perversões sexuais de parte do clero e os escândalos financeiros que, volta e meia, envolvem parte da Cúria Romana.
            Obviamente, o Papa percebe que é preciso uma guinada no modelo de “igreja triunfante” para uma igreja em saída “para as periferias geográficas existenciais”: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).
“Francisco pensa a Igreja “sal da terra”, “luz do mundo” e “fermento na massa”, muito distinta da Igreja societas perfecta, em conluio com os poderosos, contaminada pelo vírus antievangélico do egoísmo, do autoritarismo e do liturgismo, com o narcisismo que o acompanha, levando-a a se voltar para si mesma, num fechamento que a torna indigna do nome cristão. [9]
7. Relação com outras religiões: ao longo de seu pontificado, em vários eventos no Vaticano e em todas as suas viagens internacionais, Francisco tem se disposto a dialogar fraternalmente com todos os líderes religiosos. 
“Desde sua eleição, Francisco já visitou (em 2014) a Turquia (maioria muçulmana), a Albânia (também de maioria muçulmana); a Coreia do Sul (maior religião é a budista, com ¼ da população); a Jordânia (maioria muçulmana); Israel (de maioria judaica) e a Palestina (de maioria muçulmana). Nessa viagem à Terra Santa, Francisco se encontrou com dois grã-rabinos judaicos e com o grã-mufti muçulmano na esplanada das mesquitas em Jerusalém. Em 2015 visitou a Bósnia e Herzegovina (maior parte muçulmana); o Sri Lanka (de maioria budista). No Sri Lanka se encontrou inclusive com representantes das quatro grandes tradições religiosas do país: Budismo, Hinduísmo, Islã e Cristianismo. No ano de 2016, além de ter participado do encontro em Assis, na jornada mundial pela paz, onde se encontrou com representantes de diversos grupos cristãos, mas também representantes do Judaísmo, Islã e Tendai, o Papa Francisco foi ao Azerbaijão, de maioria muçulmana, onde manteve um encontro com estes fiéis na mesquita da capital Baku. No ano de 2017, Francisco foi a Myanmar (maioria budista), Bangladesh (maioria muçulmana) e Egito (também de maioria muçulmana). Nessa viagem ao Egito, o Papa Francisco realizou um pronunciamento que pode ser considerado o seu programa para o diálogo inter-religioso. E, finalmente, no ano de 2019, Francisco já viajou aos Emirados Árabes Unidos, de maioria muçulmana e ao Marrocos, país de quase totalidade muçulmana. No Marrocos foi emblemática a apresentação musical feita com a presença do Papa Francisco e representantes de diversas tradições religiosas, onde foi apresentada uma peça com uma cantora judia, uma cristã e um cantor muçulmano. Esta lista de viagens é apenas uma pequena amostra tanto da centralidade que o tema do diálogo inter-religioso tem em seu pontificado, como também a forma como tem feito Francisco: ir ao encontro, visitar e dialogar no espaço de tradições religiosas diversas da sua. Nestes encontros, o foco dos pronunciamentos e das preocupações do Papa não tem sido a diferença religiosa, mas a busca do engajamento e ação em conjunto em prol da humanidade e dos problemas que a assolam. Assim, disse o Papa no encontro com os muçulmanos no Egito”.[10]
Num dos encontros mais importantes do seu pontificado, em viagem apostólica aos Emirados Árabes Unidos, de 3 a 5 de fevereiro deste ano, o Papa assinou o “Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, juntamente com o Grão Imã da Mesquita de Al-Azhar, no Egito, Sheik Ahmad al-Tayyeb. O acordo foi uma forma de celebrar o gesto de São Francisco de Assis de visitar a região, de maioria islâmica (muçulmana), 800 anos atrás. E a visita de Francisco foi a primeira de um Papa à Península Arábica, berço do islamismo.
O documento diz que Al-Azhar e o Vaticano, muçulmanos e católicos, vão, juntos, lutar contra o extremismo religioso e que nenhuma religião deveria, nunca, incitar violência, ódio ou guerra. A assinatura foi feita diante líderes religiosos de todo o mundo.
Esses breves apontamentos confirmam a liderança inconteste de Francisco no cenário internacional. O Papa, apesar de octogenário, é a maior liderança propositiva (com palavras e gestos concretos) da atualidade. Enfrenta uma onda massificadora e obscurantista que, utilizando de pseudodiscursos religiosos clamam por uma “recristianização” do Ocidente a impor uma homogeneização violenta, excludente, geradora de morte.
Francisco constrói pontes: com gestos e palavras é um líder com ações propositivas; aponta, com coragem, os atores que patrocinam as guerras, o comércio de armas e que lucram com a cultura da morte e do descarte; confronta os líderes xenofóbicos e racistas que querem erguer muros e promover políticas de criminalização dos migrantes, dos refugiados, dos pobres, dos movimentos sociais; aponta os males de uma governança global que, desprezando a democracia de fato, sucumbiu ao capitalismo concentrador de riqueza e renda e gerador da miséria, exclusão e múltiplas formas de violências.
Viva Francisco!





[1] SOUZA, R. S. R. A política de Francisco. IN: JÚNIOR, F.de A.; ABDALLA, M.; SOUZA, R. S.R. (orgs). Papa Francisco com os movimentos populares. São Paulo: Paulinas, 2018.
[2] Ocorridos em Roma (2014), na cidade boliviana de Santa Cruz de La Sierra (2015) e novamente em Roma (2016). 
[3] Utilizamos dados sobre a concentração de riqueza das seguintes fontes: relatório da Oxfam, de 2017; DOWBOR, Ladislau, El capitalismo cambió las reglas, la politica cambió de lugar, Nueva Sociedad, 2016; CACCIA-BAVA, Silvio, “A corrupção e o impasse político”, texto impresso distribuído no encontro do Movimento Nacional de Fé e Política, realizado em maio 2017, no Rio de Janeiro; Ministério das Relações Exteriores, “Temas orçamentários e administrativos da ONU”.
[4] PAPA FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Coleção Sendas. Volume 4. Edições CNBB, 2015.
[5] “Os 26 mais ricos do mundo concentram a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres”. Disponível em:  https://oglobo.globo.com/economia/os-26-mais-ricos-do-mundo-concentram-mesma-riqueza-dos-38-bilhoes-mais-pobres-23391701 . Acesso em 20/10/2019.
[6] Veja a mensagem do Papa sobre o Pacto pela Educação, aqui: https://youtu.be/ZgmRnQgr5C0
[7] É um dos líderes mundiais dos movimentos de extrema-direita. Segundo o jornal The Guardian, Bannon declarou ao ex-ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, que o Papa Francisco “é o inimigo” e deve ser atacado. O ex-estrategista chefe de Donald Trump e mentor do bolsonarismo aconselhou o ministro do Interior italiano a atacar o Papa Francisco sobre a questão da migração, segundo fontes próximas à extrema direita italiana. “Bannon aconselhou o próprio Salvini que o papa atual é uma espécie de inimigo. Ele sugeriu, com certeza, atacar frontalmente”, disse o jornal inglês The Guardian, citando declaração de um representante da Liga anti-migração da Itália.  Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/592797-fracassou-o-contra-sinodo-sobre-a-amazonia-programado-em-roma-por-bolsonaro. Acesso em 20/10/2019.
[8] Citando o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo” (n.53).
[9] Vitório, Jaldemir. Igreja em saída: para onde? Disponível em: https://faje.edu.br/periodicos/index.php/annales/article/download/3628/3708/. Acesso em 20/10/2019.
[10] Papa Francisco e o Diálogo inter-religioso. Artigo de Frei Volney J. Berkenbrock, disponível em : https://franciscanos.org.br/vidacrista/papa-francisco-e-o-dialogo-inter-religioso/. Acesso em 20/10/2019.



sábado, 14 de setembro de 2019

A falácia democrática e a desorientação dos “democratas”



Observar os discursos dos principais atores políticos (instituições, partidos, academia...) em momentos de profunda crise política e institucional é um exercício interessante.

A discussão sobre democracia talvez seja o tema mais instigante nessas circunstâncias.
Fugindo do academicismo, vamos apresentar alguns elementos desse debate, analisando especificamente o “caso brasileiro”:

1.       Desde seu nascedouro, na Grécia antiga, a democracia nunca foi um “governo do povo”. Trata-se de um sistema de hierarquização do poder. (Leia mais aqui). Lá, o cidadão, aquele que participava ativamente do governo, era o homem livre. Mulheres, escravos, estrangeiros, ou seja, a maioria popular estava fora de quaisquer processos decisórios.

2.       Na modernidade, a democracia foi retomada, principalmente no Ocidente. Como um canto de sereia, apresentava uma beleza estonteante e escondia um novo vício que podemos chamar de corrupção: trata-se da democracia representativa. A ideia ingênua segundo a qual os eleitos (e, portanto, aqueles que têm condições para assumir o controle do governo) representam os interesses do conjunto da população. Qualquer analista minimamente honesto, que não esteja apegado a dogmas procedimentais - muito caros principalmente em nossa academia colonial, salvo exceções -, sabe muito bem que a representação é um instrumento fundamental para a exclusão política de boa parcela dos cidadãos, em quaisquer democracias. É um sistema de privilegia uma classe (os detentores do capital e seus capatazes) em detrimento de outras. Esquemas fraudulentos como o poder do dinheiro, a ação arbitrária das elites partidárias, o papel desempenhado pela “justiça” eleitoral, ou regras eleitorais (como o coeficiente eleitoral, no nosso caso) são instrumentos que excluem da participação efetiva dos processos eleitorais e, por consequência, dos processos políticos, a maioria dos cidadãos, limitados a meros eleitores submetidos e manipulados a tais regras discricionárias.

3.       A partir de certo momento, notadamente no século passado, a democracia ocidental passou a ser sinônimo de democracia capitalista. E criou-se um consenso segundo o qual não há salvação fora desse sistema: um modo de governança submetido aos interesses de quem domina os meios de produção e, mais recentemente, vassalo dos donos do sistema financeiro global. Portanto, somente dentro dos cânones determinados pelos capitalistas é possível se falar em democracia. Uma série de medidas foram tomadas para doutrinar os cidadãos a acreditarem que a única possibilidade de felicidade e realização é dentro de sistemas democráticos capitalistas, não obstante a pornográfica desigualdade social que assola as democracias e a formação de castas dentro desses sistemas: 1% concentrando quase toda a riqueza e determinando os rumos da política (note-se que o burocrata mais importante de qualquer governo democrático é o ministro da fazenda ou da economia); militares e juízes tutelando o sistema; classe média reacionária minoritária, defendo seus privilégios...

4.       Com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais evidente que a palavra democracia não se aplicava, de fato, a regimes dominados pelos interesses do capital - que produzem abissais desigualdades, exclusões e múltiplas formas de violências seletivas. Mesmo em momentos de ampliação de direitos trabalhistas, como ocorreu com o chamado “estado de bem-estar social”, a democracia capitalista mostrava sua farsa: não era o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, como exclamara Abraham Lincoln. Assim, a partir de meados do século passado, começou-se a adjetivar o termo para mantê-lo palatável. Expressões como “semidemocracia” ou “democracia de baixa intensidade” disfarçam a evidente incompatibilidade entre o que se prega (um regime de igualdade de direitos e deveres) e o que se observa na “vida como ela é”: um regime segregacionista: múltiplas formas de segregação (renda, etnia, idade, gênero...).

5.       Muitos estufam o peito e dizem: “em se tratando de regimes políticos, a democracia é o melhor”. Repare que, geralmente, essa frase é dita por aqueles que estão incluídos de direito e de fato nas democracias capitalistas.

6.       No caso brasileiro, nunca vivemos uma democracia de fato. Somente, lapsos de uma democracia procedimental. Se considerarmos o período desde a invasão europeia, no século XV, temos 10% do tempo de vivência da democracia formal no país.

7.       Com o golpe mais recente, o de 2016, ficou cristalino que o último grnde pacto entre elites, celebrado em 1979 com a lei da anistia e o acordão posterior, a chamada redemocratização, consolidaram a falácia democrática brasileira. Nos últimos 30, desde a Constituição de 1988, apesar de avanços incrementais (reconhecidamente importantes), a democracia de fato se estendeu, somente, para a classe média. Para cerca de 70% da população, a democracia continuou sendo um conto da carochinha. Mas, desde então, a classe média - ofendida em seus direitos civis e políticos durante a ditadura -, dormiu em berço esplêndido com o pacto celebrado em 1988, enquanto concessões eram destinadas ao andar de baixo. E como bons cristãos, todos dormíamos sem culpa, com a “consciência tranquila” (essa categoria individual e não necessariamente ética), mesmo sabendo do genocídio que continuava a dizimar pretos e pobres; as condições de semiescravidão de boa parte do mundo do trabalho; a consolidação de castas dentro do aparato estatal; a destruição de ecossistemas com projetos neodesenvolvimentistas; as barganhas sem escrúpulos para permitir governança aos nossos “representantes” eleitos; a transformação de cidadãos em consumidores ávidos pelo sucesso individual e sem noção de pertença nacional... E poderíamos listar, aqui, um rosário de outras mazelas históricas que continuaram minando nossa pseudodemocracia. Nenhuma reforma estrutural, nos sistemas político, econômico, judiciário, tributário, midiático, educacional, agrário... foi feita. Enquanto isso, as elites predatórias associadas ao ultraliberalismo internacional trataram de, mais uma vez (como antes, na proclamação da república; ou nas décadas de 30, 40... e em 1964) escancarar o que muitos insistem em negar: o Brasil sempre foi um arremedo republicano: oligárquico, excludente, violento e elitista.

8.       Fico pasmo ao ler e ver discursos de partidos e líderes do chamado “campo progressista”, mais especificamente da esquerda, que continuam a dizer, em pleno 2019, que “a democracia brasileira corre perigo”, mesmo depois da assunção ao governo de um grupo político claramente autoritário, um necrogoverno (leia mais aqui), sem nenhum compromisso com o intitulado “estado democrático de direito” (essa expressão que esconde o caráter elitista da nossa democracia, porque poucos acessam, de fato, tal “estado democrático”). Sem contar o impeachment fraudulento e as eleições de 2018 totalmente corrompidas (aos olhos da justiça que, aqui, sempre teve um lado para chamar de seu).

9.       O discurso da legalidade democrática vindo de castas do judiciário, da caserna, de setores da academia ou de golpistas históricos como da mídia empresarial é sobejamente conhecido e só serve para tamponar nossa realidade quase feudal. Mas, ouvir essa argumentação justamente daqueles que se dizem os defensores do povo e de uma democracia verdadeira é algo vergonhoso.

10.   O fato é que não temos no Brasil um campo político revolucionário e competente para propor e implementar um projeto de país onde as reformas estruturais que enfrentem e superem o nosso passado escravocrata, autoritário, elitista e violento sejam assumidas e, a partir de tais reformas, possa se vislumbrar a construção de uma Nação, onde a dignidade humana, de fato para além de direito, alcance a todos, e não somente 30% da população.

Por isso, essa quadra histórica se caracteriza pela desorientação: não dos autoritários, perversos e violentos; mas, dos democratas. Mas, “deixemos o pessimismo para dias melhores”. Em frente...


segunda-feira, 29 de julho de 2019

EUA: o demolidor da autonomia e da soberania das democracias

NUM ESCLARECEDOR EDITORIAL  nesse domingo (28/07), o jornalista G. Greenwald, do The Intercept Brasil, lembra que as grandes reportagens que revelaram as mais pérfidas sabotagens e golpes promovidos pelos EUA -- um Estado que manipula, corrompe e destrói democracias e estados democráticos mundo afora -- só foram possíveis porque jornalistas e outros profissionais optaram pelo apreço à ética e à verdade, preferindo o risco da morte, do banimento e de toda a desgraça das perseguições à mesquinhez de simples papagaios de pirata dos donos das empresas de mídia -- cujo único compromisso é a defesa intransigente de seus financiadores, apesar da lorota de credores das democracias.

É claro que atores e a conjuntura interna devem ser considerados na análise das rupturas democráticas. No caso brasileiro, é fundamental mapear os papéis desempenhados pela "elite do atraso"; as consequências da desagregação dos laços sociais causadas pelas históricas violência e desigualdades estruturais; as castas que dominam o Estado e se consideram tutoras das da democracia (sistema de justiça e Forças Armadas), entre outros atores e fatores.

Mas, é fundamental destacar o papel dos EUA em mais essa aventura golpista que pariu um governo de extrema-direita, ultraliberal e antidemocrático.

Lembra-nos Greenwald que "grande parte do jornalismo mais importante produzido nas últimas décadas foi feito graças a fontes que obtiveram ilegalmente informações cruciais e as entregaram para jornalistas."

E, apesar dos uivos de ienas antagonistas e seus financiadores secretos nestes tempos cabeludos, "o que fica registrado na História é o que foi revelado pelas reportagens, e não as ações das fontes que ajudaram na revelação."

O fundador do Intercept Brasil passa a descrever alguns casos emblemáticos que deveriam ser estudados, obrigatoriamente, em todas as escolas democráticas pelo mundo.

"Em 1971, um ex-oficial do Pentágono, Daniel Ellsberg, roubou dezenas de milhares de páginas de documentos secretos provando que o governo dos EUA estava mentindo para a população a respeito da guerra do Vietnã. Ellsberg entregou os documentos roubados ao (jornal) New York Times e depois para o Washington Post, e ambos produziram diversas reportagens com base nesses documentos. Se hoje em dia o nome de Ellsberg é lembrado, é como um herói que permitiu que essas mentiras oficiais do governo fossem expostas por jornalistas."

Se os limpinhos e cheirosos do "Manhattan Connection", de blogs e think tanks ultraliberais bancados por grana estadunidense produzissem jornalismo comprometido com a democracia, esses veículos e grupos de interesse seriam os primeiros a aderirem à narrativa do  Intercept, no episódio da VazaJato.

Continua Greenwald: "durante a chamada Guerra ao Terror promovida pelos EUA e seus aliados desde os ataques de 11 de setembro de 2011, os maiores veículos de mídia do ocidente – New York Times, Washington Post, NBC News, BBC, The Guardian – receberam repetidamente informações de fontes que violaram as leis para expor sérios crimes, como a prática de tortura, a existência de prisões secretas da CIA, e o sistema ilegal de vigilância da NSA. Ainda que algumas vozes autoritárias tenham clamado pela prisão dos jornalistas que revelaram esses segredos, o público de modo geral tratou essas reportagens como fundamentais, e todas essas revelações receberam o prêmio máximo do jornalismo, o Pulitzer."

E tem mais um caso escabroso do governo dos EUA,  que se diz o grande defensor das democracias e dos direitos humanos, mas que usa técnicas medievais para defender os interesses dos verdadeiros donos daquela nação: as indústrias do petróleo, das armas, dos remédios e, agora, das mídias eletrônicas.

E Greenwald recorda mais um caso vergonhoso: "O mesmo vale para as reportagens, publicadas em 2013 e 2014, sobre o sistema secreto e massivo de espionagem na internet, afetando populações inteiras, por parte do governo dos EUA e seus aliados – reportagens essas que só foram possíveis graças a documentos obtidos ilegalmente pelo whistleblower da NSA, Edward Snowden. Dezenas de veículos de mídia no mundo todo – inclusive o grupo Globo, no Brasil – manifestaram a vontade de ter acesso aos documentos roubados para produzir reportagens sobre o sistema secreto de espionagem mantido pelo governo dos EUA, porque em casos como esses os jornalistas entendem que o que importa não são as ações ou motivações da fonte, mas o conteúdo revelado ao público."

Vejam, caros leitores: as organizações Globo -- criadas com a ajuda estratégica dos Estados Unidos durante a ditadura para defender e promover os interesses norte-americanos nessas plagas, que se postam acima das leis e dos poderes da república e que agora, tão vergonhosamente defendem com unhas e dentes as práticas ilegais lavajatistas --, já tiveram momentos de alinhamento a hackers para divulgarem informações roubadas. Como a história é bela! Provavelmente, daqui a alguns anos, o grupo Globo lançará mais um patético editorial reconhecendo a verdade sobre a lavajato, como ocorreu anos depois em relação ao reconhecimento da ditadura no Brasil.

"Hoje em dia, o que é lembrado pela História sobre o assunto não são os julgamentos morais feitos pelo governo dos EUA e seus defensores acerca das ações de Snowden. O que importa – o que ficou registrado na História – é o que foi revelado pelas reportagens sobre as invasões de privacidade massivas e indiscriminada perpetradas em segredo pelas agências de segurança", sentencia Greenwald.

Mas, para não alongar muito, o que há em comum em todos esses escândalos de corrupção à democracia, ao estado de direito e à autonomia dos países? Resposta: a ação imperialista e fraudulenta dos EUA.

Inclusive,  na operação lavajato: a ação sórdida dos Estados Unidos -- que não respeitam nada daquilo que propagam aos quatro ventos -- está fartamente documentada nas nada republicanas parceiras que membros do judiciário e do MP fizeram com órgãos historicamente intervencionistas dos EUA na dita operação.

Como se sabe, no caso da lavajato, essa operação (apesar de algum minúsculo combate à corrupção, para agradar moralistas sem moral e servir de discurso  para os golpista) resultou na realização dos interesses norte-americanos no Brasil, com esses "grandes feitos" (entre outros):

a) A destruição da indústria pesada nacional, inclusive a indústria do petróleo, abrindo as portas para corporações estadunidenses  e o "vamos privatizar tudo" do ultraliberal Guedes e sua patota banqueira;

b) Milhões de desempregados que hoje se submetem a condições análogas à escravidão para conseguirem trabalho; ou seja, a precarização do mercado de trabalho para a superexploracão dos "novos investidores" nessa neocolônia;

c) Destruição de laços de solidariedade social e da Constituição, com as "reformas" ultraliberais, via assunção da extrema direita no Executivo e no Parlamento;

d) Vassalagem do Brasil à nova política imperialista norte-americana;

e) Um Judiciário que de seletivo e encastelado se transforma a passos largos numa justiça inquisitorial, de togados movidos por fanatismo religioso, ódio de classe e perversão moral, salvo exceções;

Os Estados Unidos -- sempre tramando contra as democracias -- são os grandes beneficiados da lavajato. Por isso, Moro et caterva continuam a ter o beneplácito de todos os golpistas, inclusive da globo. Ele foi o testa de ferro dos EUA na parte internacional do golpe que propiciou o governo que transforma o Brasil numa colônia norte-americana.

Por outro lado, alguns jornalistas, hackers, militantes sociais e digitais -- expondo as vísceras dessa política perversa norte-americana e seus atores bufos, como no caso da VazaJato, mostrando os vendilhões de uma Nação infiltrados nos poderes públicos -- são os inimigos "número um" da horda no poder.

Isso deve ser terrivelmente odioso para os poderosos e seus capachos nesse momento.

E viva os hackers e os jornalistas independentes que honram a profissão!

sábado, 6 de julho de 2019

Breve análise para além da pesquisa Datafolha

O Instituto Datafolha divulgou nesse sábado, 06/07, uma pesquisa avaliando a percepção popular após as divulgações das conversas nada republicanas entre o ministro da Justiça (quando juiz da operação Lava- jato) Sérgio Moro e procuradores da operação policial-judicial-midiática. Foram entrevistadas 2.086 pessoas em 130 municípios brasileiros, entre os dias 4 e 5 de julho.

Em resumo, 59% dos entrevistados afirmam que são graves e devem ser revistas as decisões de Moro durante a Lava Jato; entre abril e julho deste ano a avaliação do ex-juiz caiu 7 pontos percentuais, de 59 para 52%; a maioria (55%) acha que Moro deve permanecer no Ministério da Justiça; os mais jovens são os que mais acham inadequadas as condutas do ex-juiz (73%), enquanto somente 44% dos que têm 60 anos ou mais desaprovam a condução de Moro, sendo que os mais ricos são os que menos desaprovam (49%); 54% acham que a condenação e prisão do ex-presidente Lula foi justa, sendo que no Nordeste 56% acham injusta e no Sul somente 33%; por fim, 61% avaliam como ótimo e bom o trabalho desempenhado pela Lava-Jato.

Se por um lado há que se destacar que a maioria condena as ações ilegais e imorais de Moro (59%), por outro, a população está dividida em relação à condenação de Lula (principal vítima da referida operação).

Os ricos, sulistas e os mais velhos, ou seja, aqueles que, em tese, estão com a vida estabilizada continuam conservadores e pro-establishment, enquanto os mais jovens mantêm a indignação.

Vale, aqui, lembrar Gramsci (1891-1937). Embora as circunstâncias fossem outras (seus comentários sobre a crise da autoridade) e seja necessária uma pequena adaptação no texto, penso que se aplica ao momento de transição que vive o Brasil a ideia de que ‘o velho está morrendo e o novo apenas acaba de nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece’. (A frase original correta é: ‘A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece’.). E quanta morbidez adveio com o atual governo... Como já escrevemos neste espaço, trata-se de um necrogoverno.

Mas, é preciso avaliar, mesmo que sucintamente, porque significativa parte dos cidadãos, de uma maneira geral, se posiciona de forma dúbia frente à avassaladora quantidade de provas das ações deletérias do ex-juiz e de membros da operação Lava Jato reveladas nos últimos dias. Ainda é significativo o apoio a Moro no ministério da Justiça (por mais paradoxal que isso signifique) e no governo de extrema-direita. Dizendo de outra forma, há muita complacência com a conduta claramente antiética, antirrepublicana e criminosa do ministro do atual governo e parece que significativa parte da população não relaciona tais desvios a consequências à democracia, justiça, ética pública, respeito à Constituição e ao estado de direito, entre outros.

Quando se trata de análise das percepções da população é preciso considerar que o povo brasileiro é participante periférico da democracia de fato. Ademais, há uma série de condicionantes que interferem na opinião popular (não necessariamente nesta ordem):

a. A mídia empresarial, formadora de opinião (principalmente das classes médias), é altamente concentrada, oligopolizada, age em uníssono e se constitui, historicamente, num instrumento de viés claramente elitista e antipopular. A diversidade e pluralidade da mídia é um dos pilares de quaisquer democracias sólidas, o que nunca ocorreu nesse país e, não obstante o advento da mídia alternativa (importante frontde pluralidade de ideias), a tendência de repetir o pensamento hegemônico ainda persiste no senso comum dos cidadãos, ainda mais em tempos de guerra híbrida, pós-verdade, redes sociais e fake News. Por isso, a mídia mainstreamcontinua peça relevante na qualidade, fragilidade ou manipulação das democracias. Isso pode explicar, em certa medida, o apoio que Moro ainda tem e as incertezas do povo em relação a Lula. (Registre-se, porém, a persistência da desilusão de parte da população, por variados motivos, em relação ao PT e esquerdas).

b. A educação política do povo é praticamente inexistente. Aliás, a deseducação política no Brasil atinge, também, significativa parte da classe média e elites. Desde o golpe da proclamação da República e o advento do positivismo, a educação formal sempre foi dominada pelo pensamento das elites e tudo que é popular é associado a atraso, corrupção, crime. O sistema de ensino nunca se constituiu, no Brasil, como um instrumento de educação popular à cidadania.

c. Nossa cultura religiosa, de base judaico-cristã, solidificou na percepção da maioria do povo a ideia segundo a qual toda autoridade vem de Deus (e isso se percebe com muito mais clareza em tempos de adensamento do neopentecostalismo). Por isso, as pessoas de uma maneira geral ainda acreditam piamente não somente no que dizem ou deixam de dizer as autoridades religiosas, como também os juízes, operadores da lei, policiais, Forças Armadas etc., todos segmentos conservadores, sendo que alguns desses grupos, muitas vezes, se transformem nos algozes do povo. Acrescente-se que a mídia empresarial reverbera e reforça a opinião desses segmentos em detrimento de outras vozes que são criminalizadas e excluídas do debate público.

d.  As elites em nosso país, historicamente, perseguem todas as lideranças populares e massacram as revoltas e os levantes do povo, só permitindo à maioria uma “vida de gado”. Para manter um país tão rico e absurdamente desigual, oferecem concessões e privilégios para a classe média e, em troca, uma parcela significativa dessa classe, formadora de opinião, age como fiel escudeira dessas elites: são aqueles que, atualmente, pedem intervenção militar, fechamento do Congresso e do STF e querem uma justiça para chamar de sua (não à toa, apoiam Sérgio Moro com tanta fidelidade).

e. As instituições do Estado sempre foram pouco republicanas e, mesmo depois da Constituição de 1988, nunca perderam seu caráter elitista e, de certa forma, operam na contramão da construção de uma Nação (para todos) justa e igualitária. Nosso sistema judiciário e as polícias, pretorianos das elites, não foram reformados com o advento da Carta de 1988.

f. Em tempos de ultraliberalismo econômico e ultradireita política, o individualismo e a demonização do estado e das políticas públicas (principalmente pela ação de think tanks norteamericanos agindo na mídia, nas instituições de ensino, junto ao neopentecostalismo e em vários segmentos sociais) contaminaram o pensamento de grande parcela da população que despreza qualquer ideia de público, bem-estar social e política e, por isso, são incapazes de defender e lutar por demandas coletivas e comunitárias.

Todos esses pontos, entre outros, devem ser considerados quando analisamos os dados que surgem da percepção do povo em pesquisas de opinião.

Por isso, não adianta a simplificação das análises. São múltiplos os desafios para os setores democráticos e populares na reconstrução democrática.

sábado, 22 de junho de 2019

Breve história tupiniquim. Vamos recordar:

1. Moro, Dellagnol, TRF4, ministros do STF et caterva são membros do sistema de justiça. Esse sistema, historicamente, é uma casta, que existe para proteger elites (inclusive progressistas e das esquerdas) e seus interesses (salvo exceções). (Veja o estudo do professor catedrático Fábio Konder Comparato, intitulado "O poder judiciário no Brasil", publicado no Instituto Humanitas, da Unisinos).

1.1. Moro é a "cara", escancarada, desse sistema que, cotidianamente, massacra todos aqueles que são os "descartáveis". É só verificarmos como funciona a justiça criminal ou como são tratados os sonegadores de impostos neste país...

1.2. Sem uma profunda reforma no sistema de justiça (poder judiciário, MP, polícias, penitenciárias) continuaremos a ter uma sociedade estruturalmente injusta e violenta e socialmente iníqua.

2. O sistema de justiça associado ao militarismo no Brasil, desde a fantasiosa proclamação da República, sempre tutelaram o país. Essas duas castas (jurídica e militar) nunca se submeteram às Constituições (a não ser nos momentos que lhes interessavam). Operam como estados paralelos, inclusive nos governos progressistas.

3. Sistema de justiça e militarismo, desde o início do século XX, sempre foram sabujos dos norte-americanos e têm na mídia empresarial o modus operandi para manipular e controlar a opinião pública, promovendo golpes quando pactos entre elites não lhes interessam. A criação da #Globogolpista durante o regime militar coroou esse acordão.

4. Historicamente, e mesmo durante governos progressistas, a democracia de fato (ou seja, a vivência efetiva dos direitos civis, políticos, sociais, culturais....) nunca atingiu mais de 40% dos brasileiros. A grande maioria do nosso povo sempre viveu numa subcidadania. A violência estrutural, a justiça seletiva e a naturalização desde estado de coisas (pela educação, mídia, religião, etc) sempre impediram qualquer possibilidade de reformas estruturais ou um processo revolucionário verdadeiramente includente, a criar um estado de bem estar social para o conjunto da população.

4.1. Mesmo durante governos progressistas só se implementaram reformas incrementais, sem atingir as estruturas historicamente perversas e iníquas da nossa sociedade e do  estado.

5. O governo ultraliberal e de extrema direita que chegou ao poder graças a um golpe e uma guerra híbrida e semiótica, com apoio das elites predatórias deste país, aposta numa revolução ultraconservadora, a promover rupturas profundas no já esgarçado tecido social, nas fragilíssimas instituições sociopolíticas, radicalizando a exclusão social e promovendo a morte como lenitivo à nova fase de hiperexploracão capitalista tupiniquim: um necrogoverno.

6. Por isso, é preciso, mais que nunca, ter consciência da gravidade da situação, sem esperanças vãs, para se buscar uma saída potente via articulação e ação das forças sociais, historicamente resistentes num país que sempre foi marcado pela exclusão, silenciamento, dominação e eliminação da maioria de seus cidadãos.

(DE: Robson Sávio Reis Souza, em seu Facebook).

sábado, 8 de junho de 2019

Da violência estrutural ao necrogoverno: breve radiografia do Bolsonarismo



Não há dúvida: a violência no Brasil é estrutural. Desde o período colonial, foi sendo constituído um perverso arranjo social e político no qual os brancos e os proprietários de terra se impunham sobre os demais.

A República, um golpe de elites (militares, maçons, proprietários de terra, juristas), nunca se constituiu em realidade de fato e os ideais republicanos jamais chegaram à plenitude. Desde então, as políticas de governo (ou a falta delas) ratificam a disposição das relações de poder: consolidam privilégios aos quais apenas determinadas categorias sociais têm acesso.

As desigualdades (de renda, étnico-raciais, culturais, de gênero, regionais), nosso pior e mais vergonhoso cancro, são naturalizadas.

Outro processo violento atribui a culpa pela pobreza, miséria, desemprego etc. ao “corpo mole” do “andar de baixo” que, na verdade, é vítima de múltiplas formas de opressão. A violência estrutural consiste em naturalizar a opressão (verdadeira causa do problema), apresentando-a como se fosse óbvia consequência do modo de ser ou de agir dos que são sufocados pelas elites.

Nos raros momentos históricos em que houve aumento da participação social e expansão de direitos dos cidadãos, parte da sociedade, notadamente os privilegiados das classes média, saíram dos armários da hipocrisia; se ressentiram e a reivindicaram o emprego de critérios meritocráticos.

Para justificar essa ordem social perversa, a violência cultural opera de diferentes maneiras: naturaliza as desigualdades, inverte as relações de causa e efeito, reduz ao silêncio as contradições da sociedade. Cria-se um imaginário social de acordo com o qual a violência direta, caracterizada pelos crimes, e a (violência) estrutural são tratadas como consequência natural do mau procedimento das vítimas (pobres, negros, índios, grupos vulneráveis...).  A violência, portanto, deixa de ser vista como tal e passa a ser considerada algo normal e natural.

As leis, não raras vezes, são elaboradas de forma abstrata e incompreensível, permitindo interpretações escusas de uma justiça encastelada. Tudo coroado com um aparato judiciário seletivo, moroso, ineficiente e ineficaz.

Depois da traumática experiência da ditadura militar, novos ares sopraram nas plagas tupiniquins. Abria-se a possibilidade de construção de uma nação socialmente justa, nos moldes de um estado de bem-estar social.

Mas, já nos inícios dos anos de 1990, o vento impetuoso do neoliberalismo, vindo do Norte, ameaçava, novamente, o sonho dos brasileiros.

No neoliberalismo, prevalece a ideia segundo a qual o poder público, portanto, o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos.

A política é criminalizada e o político deixa de ser um representante legítimo a mediar os vários interesses e conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos dos cidadãos e dos interesses públicos.

No estado neoliberal, o espaço privado dos interesses dos poderosos é alargado ao máximo e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido, ao mínimo.

A exclusão e as desigualdades passam a ser encaradas como artimanhas do povo, acionando todo tipo de violências do aparato estatal, através do incremento do estado policial-penal punitivo.
Nos termos do neoliberalismo é impossível uma democracia de fato. Só serve uma democracia de mentirinha, como essa que vivemos desde 2016.
Governos democrático-populares implementaram políticas de expansão do estado social por mais de uma década. E, paradoxalmente, conviveram pacificamente com a violência estrutural, sem proporem reformas profundas no aparato estatal. E enquanto, governo e sociedade, todos “dormíamos em berços esplêndidos”, as velhas raposas sedentas de poder - as elites que sempre impuseram dor e sofrimento ao povo brasileiro -, tramaram nos bastidores e trataram de articular, em parceria com os Estados Unidos, um golpe parlamentar-jurídico-midiático, “com o Supremo, com tudo”, e retomaram o poder.
Por isso, o golpe de 2016 foi produzido dentro do arcabouço jurídico-institucional para salvaguardar os interesses de seus patrocinadores (banqueiros, industriários, os coronéis do agronegócio, rentistas, especuladores e elites da classe média – médicos, militares, operadores de direito, advogados, juízes, promotores, líderes religiosos conservadores) em detrimento da Constituição e dos interesses populares, com vistas a interromper a construção de um estado social.
Nesse novo contexto, a sanha dessas elites não se contentava mais com a implantação do neoliberalismo. Radicalizaram. E colaboraram na implantação de um estado ultraliberal.

É dentro desse novo quadro que foi eleito e se apresenta, faceiro, o governo Bolsonaro.

Seu núcleo econômico é o suprassumo do ultraliberalismo. É encabeçado por um banqueiro sem pudor, Paulo Guedes, que já serviu a um dos ditadores mais sanguinários das Américas: Pinochet.

Seu núcleo militar é composto por oficiais das Forças Armadas (mais de 130, nos primeiro e segundo escalões do governo) que continuam preocupados com os “inimigos internos” e, inebriados pelo poder, esquecem de proteger o país de ataques e interesses econômicos externos dos mais violentos.

Seu núcleo político encarrega-se do desmonte de políticas focalizadas, redistributivas e de proteção das minorias. Tem em figuras esdrúxulas, como Damares Alves (ministra de direitos humanos e família), Onyx Lorenzoni, que dispensa adjetivação (ministro da casa civil) e Abraham Weintraub (ministro da educação) verdadeiros cruzados, sem compromisso com a ética pública e a justiça social.

O núcleo de controle social, que atua no adensamento do estado penal-policial-punitivo, tem no xerife Moro, o ex-juiz sem escrúpulos, a missão do controle social, a ação ainda mais seletiva e violenta da justiça e a repressão aos grupos de reivindicação.

No núcleo da política internacional, que objetiva o alinhamento incondicional aos Estados Unidos, observamos figuras das mais anedóticas e autoritárias, como Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro; este o chanceler de fato. Estão empenhados em colocar o Brasil submisso aos interesses do capital internacional especulativo.

No âmbito da cultura, a guerra - que congrega vários atores dos núcleos acima mencionados  -, é atuar em relação a valores, crenças, religião, implantando um estado obscurantista, em associação com os neopentecostais evangélicos e católicos. Aqui, entra o enfrentamento à educação: essa pseudoguerra da doutrinação ideológica, que inclui o projeto fascista intitulado “escola sem partido”; a tal “ideologia de gênero”; o revisionismo da ditadura; a vigilância de professores; a reinserção nos currículos da disciplina “moral e cívica”; a inquisitória “lava-jato da educação” e sandices diversionistas, como o criacionismo e o  terraplanismo.

Como se não bastasse, utilizam estratégias de uma guerra semiótica e híbrida, via redes sociais - esse circo de misérias e horrores que move verdadeiros zumbis, incapazes de utilizarem a razão e o bom senso.

Saímos de governos que historicamente se impuseram ou foram coniventes com a violência estrutural para um necrogoverno: um governo que mata e destrói.

É só destruição e morte. Senão, vejamos: na agricultura, com a liberação de dezenas de agrotóxicos; no meio ambiente, a auto-regulamentação e o alinhamento com o agronegócio na sua feição mais predatória; na ciência e tecnologia, profundos cortes nos programas de pesquisas e bolsas; na cultura, uma guerra obscurantista;  na defesa, a tentativa de cessão de bases aos Estados Unidos, a venda da Embraer e a fragilização dos projetos estratégicos; no desenvolvimento agrário, retrocesso total da política de reforma agrária e caçada aos movimentos sociais do campo; nas políticas de direitos humanos, a criminalização dos movimentos sociais, a perseguição aos indígenas, usuários de drogas, moradores de rua, LGBT’s; na educação, o escola sem partido, o ensino à distância, o corte de bolsas de pesquisa e dos orçamentos de todas as modalidades de ensino, principalmente universitário, e a reforma curricular; na economia, a “abertura” do setor financeiro aos megabancos estrangeiros e a  destruição dos bancos públicos; na indústria, a abertura comercial radical e unilateral; na justiça,  o apoio ao armamento, o “pacote Moro”, a liberação e aprovação da violência policial; no setor energético, a destruição gradual da Petrobrás e da Eletrobrás; na previdência, a privatização e destruição da Previdência Pública; nas relações exteriores, o alinhamento incondicional com os Estados Unidos, a saída disfarçada dos BRICS e a desarticulação do Itamaraty, além da violação dos princípios de não intervenção e autodeterminação; na saúde, a liberação da venda de cigarros, a gradual privatização do SUS, a volta dos manicômios, a internação compulsória, o investimento em comunidades terapêuticas acusadas de violações de direitos, o descontrole das epidemias; no trabalho, a extinção do Ministério e forte redução de direitos; nos transportes, a precarização do sistema de controle de velocidade (radares), a disfarçada liberação de ¨rebites” para motoristas, a concessão de rodovias, ferrovias e portos em larga escala.

Não se trata da redução do Estado ao mínimo; mas sua quase eliminação. Inclusive com a criminalização dos servidores, o corte de cargos, a proibição de concursos públicos e a desconcentração de competências da União.

Um governo que aposta no esgarçamento total do Estado e do tecido social e no estímulo ao hiper-individualismo, como corolários do autoritarismo ultraliberal.

Bolsonaro e seu clã agem como uma espécie de “agitadores fascistas”: demandam adesão ideológica das massas, num jogo entre ameaçadores versus ameaçados a justificar uma cruzada moralista, autoritária e religiosa contra os valores e os direitos humanos.

Radicalizam a raiz da brutalidade constitutiva da sociedade brasileira (a violência estrutural), expressas na violência da virilidade patriarcal, no autoritarismo da caserna e da justiça e no nosso cinismo de nascença. Tudo como se fosse um jogo onde a violência e o gracejo se misturam com a brutalidade sanguinária, a rigidez do militarismo, o moralismo religioso e os desejos pervertidos da construção de uma sociedade governada por “homens puros e de bem”.

É preciso registrar que o governo Bolsonaro surge, também, como uma ameaça totalitária. Além de Bolsonaro personificar, em certa medida, os estereótipos de um ditador populista, o mais preocupante é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições sociais e políticas quando (elas) se tornam homogêneas. E o alinhamento dos poderes da República (Congresso e STF) a ideais autoritários do presidente de plantão podem indicar essa tenebrosa perspectiva. As bancadas ultraconservadoras no Congresso e a fragilidade e dubiedade do STF, atualmente guiado por um juiz que nunca inspirou confiança sequer entre os pares, fazem jus a esse diagnóstico.

No governo Bolsonaro instala-se o ultraliberalismo que é uma forma contemporânea do totalitarismo. Trata-se de um necrogoverno.