Não há dúvida: a violência no
Brasil é estrutural. Desde o período colonial, foi sendo constituído um perverso
arranjo social e político no qual os brancos e os proprietários de terra se
impunham sobre os demais.
A República, um golpe de elites
(militares, maçons, proprietários de terra, juristas), nunca se constituiu em
realidade de fato e os ideais republicanos jamais chegaram à plenitude. Desde
então, as políticas de governo (ou a falta delas) ratificam a disposição das relações
de poder: consolidam privilégios aos quais apenas determinadas categorias
sociais têm acesso.
As desigualdades (de renda, étnico-raciais,
culturais, de gênero, regionais), nosso pior e mais vergonhoso cancro, são
naturalizadas.
Outro processo violento atribui a
culpa pela pobreza, miséria, desemprego etc. ao “corpo mole” do “andar de baixo”
que, na verdade, é vítima de múltiplas formas de opressão. A violência estrutural
consiste em naturalizar a opressão (verdadeira causa do problema),
apresentando-a como se fosse óbvia consequência do modo de ser ou de agir dos
que são sufocados pelas elites.
Nos raros momentos históricos em
que houve aumento da participação social e expansão de direitos dos cidadãos, parte
da sociedade, notadamente os privilegiados das classes média, saíram dos
armários da hipocrisia; se ressentiram e a reivindicaram o emprego de critérios
meritocráticos.
Para justificar essa ordem social
perversa, a violência cultural opera de diferentes maneiras: naturaliza as
desigualdades, inverte as relações de causa e efeito, reduz ao silêncio as
contradições da sociedade. Cria-se um imaginário social de acordo com o qual a
violência direta, caracterizada pelos crimes, e a (violência) estrutural são
tratadas como consequência natural do mau procedimento das vítimas (pobres,
negros, índios, grupos vulneráveis...).
A violência, portanto, deixa de ser vista como tal e passa a ser
considerada algo normal e natural.
As leis, não raras vezes, são
elaboradas de forma abstrata e incompreensível, permitindo interpretações
escusas de uma justiça encastelada. Tudo coroado com um aparato judiciário
seletivo, moroso, ineficiente e ineficaz.
Depois da traumática experiência
da ditadura militar, novos ares sopraram nas plagas tupiniquins. Abria-se a
possibilidade de construção de uma nação socialmente justa, nos moldes de um
estado de bem-estar social.
Mas, já nos inícios dos anos de
1990, o vento impetuoso do neoliberalismo, vindo do Norte, ameaçava, novamente,
o sonho dos brasileiros.
No neoliberalismo, prevalece a ideia
segundo a qual o poder público, portanto, o Estado, deve ser administrado como
uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter
como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para
se preocupar e garantir os interesses de uns poucos.
A política é criminalizada e o
político deixa de ser um representante legítimo a mediar os vários interesses e
conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor, ocupado
e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no
neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e
financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos dos
cidadãos e dos interesses públicos.
No estado neoliberal, o espaço
privado dos interesses dos poderosos é alargado ao máximo e, ao mesmo tempo, o
espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido, ao mínimo.
A exclusão e as desigualdades passam
a ser encaradas como artimanhas do povo, acionando todo tipo de violências do
aparato estatal, através do incremento do estado policial-penal punitivo.
Nos termos
do neoliberalismo é impossível uma democracia de fato. Só serve uma democracia
de mentirinha, como essa que vivemos desde 2016.
Governos democrático-populares
implementaram políticas de expansão do estado social por mais de uma década. E,
paradoxalmente, conviveram pacificamente com a violência estrutural, sem proporem
reformas profundas no aparato estatal. E enquanto, governo e sociedade, todos “dormíamos
em berços esplêndidos”, as velhas raposas sedentas de poder - as elites que sempre
impuseram dor e sofrimento ao povo brasileiro -, tramaram nos bastidores e trataram
de articular, em parceria com os Estados Unidos, um golpe parlamentar-jurídico-midiático,
“com o Supremo, com tudo”, e retomaram o poder.
Por isso,
o golpe de 2016 foi produzido dentro do arcabouço jurídico-institucional para salvaguardar
os interesses de seus patrocinadores (banqueiros, industriários, os coronéis do
agronegócio, rentistas, especuladores e elites da classe média – médicos, militares,
operadores de direito, advogados, juízes, promotores, líderes religiosos
conservadores) em detrimento da Constituição e dos interesses populares, com
vistas a interromper a construção de um estado social.
Nesse novo contexto, a sanha dessas elites não
se contentava mais com a implantação do neoliberalismo. Radicalizaram. E colaboraram na implantação de um estado ultraliberal.
É dentro desse novo quadro que
foi eleito e se apresenta, faceiro, o governo Bolsonaro.
Seu núcleo econômico é o suprassumo
do ultraliberalismo. É encabeçado por um banqueiro sem pudor, Paulo Guedes, que
já serviu a um dos ditadores mais sanguinários das Américas: Pinochet.
Seu núcleo militar é composto por
oficiais das Forças Armadas (mais de 130, nos primeiro e segundo escalões do
governo) que continuam preocupados com os “inimigos internos” e, inebriados pelo
poder, esquecem de proteger o país de ataques e interesses econômicos externos
dos mais violentos.
Seu núcleo político encarrega-se
do desmonte de políticas focalizadas, redistributivas e de proteção das
minorias. Tem em figuras esdrúxulas, como Damares Alves (ministra de direitos
humanos e família), Onyx Lorenzoni, que dispensa adjetivação (ministro da casa
civil) e Abraham Weintraub (ministro da educação) verdadeiros cruzados, sem compromisso
com a ética pública e a justiça social.
O núcleo de controle social, que
atua no adensamento do estado penal-policial-punitivo, tem no xerife Moro, o
ex-juiz sem escrúpulos, a missão do controle social, a ação ainda mais seletiva
e violenta da justiça e a repressão aos grupos de reivindicação.
No núcleo da política internacional,
que objetiva o alinhamento incondicional aos Estados Unidos, observamos figuras
das mais anedóticas e autoritárias, como Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro;
este o chanceler de fato. Estão empenhados em colocar o Brasil submisso aos interesses do capital internacional especulativo.
No âmbito da cultura, a guerra - que congrega vários atores dos núcleos acima mencionados -, é atuar
em relação a valores, crenças, religião, implantando um estado obscurantista, em
associação com os neopentecostais evangélicos e católicos. Aqui, entra o
enfrentamento à educação: essa pseudoguerra da doutrinação ideológica, que
inclui o projeto fascista intitulado “escola sem partido”; a tal “ideologia de
gênero”; o revisionismo da ditadura; a vigilância de professores; a reinserção
nos currículos da disciplina “moral e cívica”; a inquisitória “lava-jato da
educação” e sandices diversionistas, como o criacionismo e o terraplanismo.
Como se não bastasse, utilizam
estratégias de uma guerra semiótica e híbrida, via redes sociais - esse circo de
misérias e horrores que move verdadeiros zumbis, incapazes de utilizarem a
razão e o bom senso.
Saímos de governos que historicamente
se impuseram ou foram coniventes com a violência estrutural para um necrogoverno:
um governo que mata e destrói.
É só destruição e morte. Senão,
vejamos: na agricultura, com a liberação de dezenas de agrotóxicos; no meio ambiente,
a auto-regulamentação e o alinhamento com o agronegócio na sua feição mais predatória;
na ciência e tecnologia, profundos cortes nos programas de pesquisas e bolsas;
na cultura, uma guerra obscurantista; na
defesa, a tentativa de cessão de bases aos Estados Unidos, a venda da Embraer e
a fragilização dos projetos estratégicos; no desenvolvimento agrário,
retrocesso total da política de reforma agrária e caçada aos movimentos sociais
do campo; nas políticas de direitos humanos, a criminalização dos movimentos
sociais, a perseguição aos indígenas, usuários de drogas, moradores de rua,
LGBT’s; na educação, o escola sem partido, o ensino à distância, o corte de
bolsas de pesquisa e dos orçamentos de todas as modalidades de ensino, principalmente
universitário, e a reforma curricular; na economia, a “abertura” do setor
financeiro aos megabancos estrangeiros e a destruição dos bancos públicos; na indústria, a
abertura comercial radical e unilateral; na justiça, o apoio ao armamento, o “pacote Moro”, a liberação
e aprovação da violência policial; no setor energético, a destruição gradual da
Petrobrás e da Eletrobrás; na previdência, a privatização e destruição da
Previdência Pública; nas relações exteriores, o alinhamento incondicional com
os Estados Unidos, a saída disfarçada dos BRICS e a desarticulação do Itamaraty,
além da violação dos princípios de não intervenção e autodeterminação; na saúde,
a liberação da venda de cigarros, a gradual privatização do SUS, a volta dos
manicômios, a internação compulsória, o investimento em comunidades terapêuticas
acusadas de violações de direitos, o descontrole das epidemias; no trabalho, a extinção
do Ministério e forte redução de direitos; nos transportes, a precarização do
sistema de controle de velocidade (radares), a disfarçada liberação de ¨rebites”
para motoristas, a concessão de rodovias, ferrovias e portos em larga escala.
Não se trata da redução do Estado
ao mínimo; mas sua quase eliminação. Inclusive com a criminalização dos servidores, o
corte de cargos, a proibição de concursos públicos e a desconcentração de
competências da União.
Um governo que aposta no esgarçamento
total do Estado e do tecido social e no estímulo ao hiper-individualismo, como corolários
do autoritarismo ultraliberal.
Bolsonaro e seu clã agem como uma
espécie de “agitadores fascistas”: demandam adesão ideológica das massas, num
jogo entre ameaçadores versus ameaçados a justificar uma cruzada
moralista, autoritária e religiosa contra os valores e os direitos humanos.
Radicalizam a raiz da brutalidade
constitutiva da sociedade brasileira (a violência estrutural), expressas na violência da virilidade
patriarcal, no autoritarismo da caserna e da justiça e no nosso cinismo de
nascença. Tudo como se fosse um jogo onde a violência e o gracejo se misturam
com a brutalidade sanguinária, a rigidez do militarismo, o moralismo religioso
e os desejos pervertidos da construção de uma sociedade governada por “homens puros
e de bem”.
É preciso registrar que o governo
Bolsonaro surge, também, como uma ameaça totalitária. Além de Bolsonaro
personificar, em certa medida, os estereótipos de um ditador populista, o mais preocupante
é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições sociais e políticas quando
(elas) se tornam homogêneas. E o alinhamento dos poderes da República (Congresso
e STF) a ideais autoritários do presidente de plantão podem indicar essa tenebrosa
perspectiva. As bancadas ultraconservadoras no Congresso e a fragilidade e
dubiedade do STF, atualmente guiado por um juiz que nunca inspirou confiança
sequer entre os pares, fazem jus a esse diagnóstico.
No governo Bolsonaro instala-se o
ultraliberalismo que é uma forma contemporânea do totalitarismo. Trata-se de um
necrogoverno.
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