domingo, 30 de setembro de 2018

Sobre os gritos roucos da cav(s)erna


Fica cada vez mais evidente que a extrema-direita brasileira partiu para o confronto e resolveu violar a democracia e a Constituição.

Como é incapaz de vencer as eleições, aliou-se a setores do sistema de justiça para implementar, a qualquer custo, uma agenda ultraliberal perversa e cruel num país ainda ferozmente desigual. Resolveu utilizar da violência das leis (via contrarreformas aprovadas nos últimos dois anos) e, mais recentemente, ameaça a utilização das armas para tentar silenciar o povo brasileiro.

Desde 2013, a extrema-direita (agronegócio, grande empresariado e bancos, setores da justiça e elites políticas, em associação com a mídia empresarial) começou a sinalizar a recusa à institucionalidade (constituição, poderes da república e regras procedimentais da democracia). E partiu para a ruptura...

Na ocasião, o PT estava no poder. E preferiu optar pela institucionalidade: reforçava o sistema de justiça; apoiava legislações (draconianas) que vitaminavam os setores fascistas desse sistema; apostava no Supremo como guardião da Constituição; enfim, fazia o jogo republicano do respeito às instituições que, paulatinamente, eram carcomidas pela sanha persecutória e inquisitorial de juízes, promotores e policiais, “com o Supremo, com tudo”.

A coalizão de extrema direita, com o impeachment sem crime de  responsabilidade urdido numa cruel conjuntura política (iniciada com as jornadas de junho de 2013 e aprofundada com a recusa dos resultados das eleições de 2014 pela turma de Aécio Neves) e grave crise econômica, desmontava todas as possibilidades de pactuações futuras com vistas à restauração da democracia.

Para justificar o assalto democrático, dois discursos oportunistas, usados em doses cavalares, foram cuidadosamente construídos pela mídia empresarial: o primeiro se referia à corrupção. Contra a corrupção, o Brasil foi entregue à camarilha mais corrupta da história.

O outro, mais recente, é o discurso da polarização. Para justificar o fascismo enrustido que ainda continua dentro do armário de muitos “cidadãos de bem”, essa narrativa autoritária tenta comparar um candidato fascista com outro do campo democrático.

É óbvio que o antipetismo cimenta esses dois discursos hipócritas, construído a rigor para “homens de bens” e “bons cristãos”. Não à toa, líderes religiosos, sem nenhum escrúpulo, apoiam o candidato de extrema-direita. Conhecemos muito bem essa história: 1964 é logo ali...

O fato é que as eleições de 2018 (que poderiam ser o início da saída do poço sem fundo que se encontra o Brasil) poderão se transformar num novo abismo. Isto porque as vozes roucas que ecoam das cavernas do ódio, da intolerância, do racismo, do patriarcado, enfim, da Casa Grande, retumbam de duas cornetas: da justiça e da caserna.

Em relação aos militares, é bom lembrar do malfadado pacto entre elites articulado no processo da redemocratização - que foi cantado em prosa e verso como o grande acordo nacional (também naquela época com o supremo, com tudo): como se não bastasse a lei da anistia, ainda se permitiu às Forças Armadas a responsabilidade pela garantia da Constituição e da lei e da ordem (artigo 142).  Ou seja, entregou-se de bandeja aos militares a tutela do país. Um arranjo genuinamente brasileiro.

Agora, o "coiso" não cansa de dizer nos microfones de discípulos de Goebbels da mídia empresarial que não aceita o resultado das eleições caso não seja o vencedor. Ou seja, o capitão e o seu vice (o general - que parece não aceitar qualquer insubordinação de seu comandado) sinalizam que tramam novamente contra as regras mais comezinhas da democracia, como fez Aécio, em 2014. Como diz o ditado popular, “onde passa um boi, também passa uma boiada”.

O ex-ministro Celso Amorim, figura de proa dos segmentos democráticos, garante que esses roncos não redundarão em outros jogos oportunistas e autoritários se Haddad vencer o pleito. Lembro-me que José Eduardo Cardoso também garantia que o Supremo daria um basta à quebra da institucionalidade à época do impeachment. Aliás, parte dos setores de esquerda, paradoxalmente, continuam a apostarem na institucionalidade.

Com claros sinais de manutenção da ruptura institucional pelos setores da extrema-direita - que já colocaram a democracia para escanteio faz muito tempo -, será que há espaço para um novo pacto no país, nas condições atuais?

Tomara que eu esteja redondamente enganado...


terça-feira, 25 de setembro de 2018

Eleições 2018: a hora de escolher seu candidato

Foto: Internet

Dois anos após o pleito que definiu prefeitos e vereadores, chegou a vez do Brasil escolher seu representante máximo, eleito de 4 em 4 anos. Além do Presidente da República, serão eleitos governadores, senadores, deputados federais e estaduais ou distritais. O primeiro turno acontece no dia 7 de outubro e o segundo, se houver, no dia 28 do mesmo mês. Para tratar do assunto e esclarecer alguns pontos sobre as especificidades desta eleição conversamos com o professor Robson Sávio Reis Souza, pós-doutor em Direitos Humanos e doutor em Ciências Sociais. É professor da pós-graduação PUC Minas e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas (Nesp), além de articulista e comentarista em várias mídias e aqui ele aborda temas como fake news, pesquisas e outros assuntos.


1)       O que é imprescindível que um eleitor faça em termos de busca de informação para escolher o seu candidato?
É importante que o eleitor tenha clareza que o pleito deste ano não resolverá, como um passe de mágica, todos os problemas derivados da ruptura democrática e crise institucional havida a partir de 2016. Neste sentido, é fundamental nessas eleições o engajamento cívico de todo eleitor na escolha de candidatos comprometidos com princípios democráticos e republicanos. Não somente nas eleições majoritárias, mas também para as assembleias legislativas e o Congresso Nacional. Assim, além dos canais tradicionais de informação (partidos políticos, propaganda eleitoral, redes sociais) é preciso um esforço para conhecer cada candidato para além do marketing eleitoral. E é fundamental o acompanhamento sistemático dos eleitos. Ou seja, a cidadania política exige um eleitor comprometido com a democracia, a justiça, a igualdade e o bem comum não somente no processo eleitoral.

2)       É correto afirmar que o aumento das intenções de votos nulos e brancos se dá, neste momento, por um desgaste
e descontentamento do eleitor em relação ao sistema político brasileiro? Como estes votos, se efetivados, podem intervir nos resultados das eleições?
O desencanto do eleitor com a política tem múltiplas causas: além do descontentamento com o sistema político, há que se considerar a campanha de criminalização da política nos últimos tempos; o distanciamento entre representantes e representados e outros dilemas de uma democracia representativa. O povo se percebe cada vez mais distante das principais decisões políticas. Nessas condições, há uma evidente percepção que os representantes estão mais interessados em defender os interesses de seus financiadores e verdadeiros prepostos, ao invés de atender os interesses populares (para os quais são eleitos). É por isso que se torna fundamental, para a reconfiguração do sistema político, uma reforma política profunda que, entre outras medidas, deveria ampliar mecanismos de democracia direta e criar condições de recall para candidatos que, no exercício do mandato, contrariam suas propostas de campanha.

3)       Como conferir a veracidade de uma informação em tempos de fake news?
As fake news não são novidades nesta campanha eleitoral. Sempre fizeram parte de processos de disputa política e eleitoral. E quanto mais tensa e disputada for uma eleição, mais se utilizam de estratégias de manipulação de notícias e informações. Aliás, o marketing eleitoral se tornou o principal instrumento de produção de fake news à medida que visa a desconstrução e, em alguns casos, a destruição do adversário a qualquer custo. O que ocorre nos últimos tempos é que as redes sociais ampliaram a disputa de narrativas: por um lado se transformaram em um potente instrumento de produção de uma narrativa contrária à mídia tradicional, que sempre atuou de forma interesseira nas eleições e, por outro, também se prestam como instrumento de divulgação em massa de notícias falsas. 
Não à toa – e com financiamento nem sempre muito claro – estão sendo criadas agências de caça fake news, muitas delas associadas a poderosos grupos de mídia (que também são produtores de notícias enviesadas na cobertura política).  A pergunta é a seguinte: e quem vigiará aqueles que se dispõem a vigiar as informações sobre eleições por nós? O mais importante, nesses momentos, é checar todas as informações em múltiplas fontes. Se é verdade que há muita notícia falsa em redes sociais, também é verdade que os oligopólios midiáticos têm seus interesses, nem sempre democráticos, nas disputas eleitorais. Assim, o melhor é não se contentar com informações recebidas de quaisquer fontes.  Nesse campo vale a dica: desconfiar e checar sempre.

4)       As pesquisas realizadas no 1º turno em relação às intenções de votos no 2º turno se confirmam ao longo da história brasileira? É seguro seguir essas intenções e orientar seu voto a partir desses índices?
Pesquisas de intenção de voto refletem um dado momento de uma campanha eleitoral; ou seja, a situação no momento da pesquisa. São, simplesmente, indicadores de tendências (de voto, reprovação etc.) do momento pesquisado. Podem indicar tendências, mas em momento algum devem definir cenários eleitorais. O mais importante é o eleitor votar baseado em princípios democráticos e republicanos e não de forma pragmática. Enquanto prevalecer a democracia representativa, mesmo com seus vários vícios e defeitos, o eleitor é o responsável pelos eleitos, ou seja, pelos que definem os rumos de nossos municípios, estados e país. O eleitor não pode delegar para ninguém esse direito que também é um dever cívico.

Fonte: Boletim Com Você, IEC/PUC Minas, nº 108. (Disponível em: http://portal.pucminas.br/iec/informativo/materia.php?codigo=1955&materia=27242).

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Tem cheiro de armação no ar...



A duas semanas das eleições e na iminência do campo progressista disputar o embate do segundo turno com um extremista (com altíssimos índices de rejeição), fica cada vez mais claro que o conglomerado golpista, rejeitado solenemente pelo eleitor, prepara alguma tramoia para as vésperas do primeiro turno do pleito.

Qual o objetivo da provável armação? Colocar um candidato que apetece a camarilha golpista no segundo turno; ou inviabilizar as eleições, criando condições objetivas para um golpe dentro do golpe (via judiciário ou Forças Armadas).

O poder judiciário – que já promoveu todas as lambanças possíveis na disputa eleitoral -, qual rei nu recolheu-se envergonhadamente e, neste momento, encontra-se na moita, salvo alguns arroubos de torquemadas aqui e acolá. Passou o bastão das tentativas de usurpação da soberania popular para vozes roucas que ecoam da caserna.

Os tiros de verde-olivas disparados via twitter ou via mídia empresarial golpista saíram pela culatra, até agora. A cada rajada de truculência que sai da boca de um general, o povo responde e reage com altivez, a demonstrar que não aceita a substituição de togas por fuzis na disputa eleitoral. (E em se tratando de fuzis, as ações de uma companhia armamentista brasileira dispararam nos últimos dias, diga-se de passagem).

Restam agora as manchetes de final de semana das revistas agourentas ou alguma edição extraordinária do folhetim global travestido de jornalismo. Aguardemos!

É preciso observar com atenção alguns movimentos estranhos: um deles é a prorrogação, pela Polícia (às vezes política) Federal do inquérito que apura a facada no candidato que flerta com o fascismo. O resultado da apuração sairá às vésperas do primeiro turno. Alguém duvida que nesse angu pode haver caroço do grosso?

Outro sinal vem de institutos de pesquisa: divulgação de dados à meia noite e notas explicativas de metodologias de sondagem deixam transparecer o velho e malfadado ditado: “os números, se torturados, tudo confessam”.

E por falar em tortura, o silêncio sepulcral das cúpulas de instituições que se dizem democráticas, inclusive no campo religioso, e convivem pacificamente com um candidato que prega, como plataforma de governo, a violência extrema contra segmentos vulneráveis e até mesmo a eliminação do “inimigo” explicita que as elites nacionais, definitivamente, não têm nenhum compromisso com o preambulo da Constituição Federal de 1988 que prega: instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Nesse sentido, um discurso de ocasião, o da “polarização”, substituiu, momentaneamente, o discurso da “corrupção” para esconder o que realmente interessa: a luta de classes, sempre silenciada quando o andar de baixo resolve sublevar-se contra os históricos carrascos e feitores da Casa Grande. Sintomaticamente e quase em uníssono, os vários grupos de elite resolveram adotar o discurso da polarização na tentativa de viabilizar um candidato que disputa os despojos do golpe de 2016 e representa os interesses daqueles que historicamente sempre lucraram, real e simbolicamente, com uma sociedade marcada pela abissal desigualdade social e violência estrutural.

O fato: o conglomerado que articulou e implementou o golpe usará de todas as estratégias possíveis e outras tantas inimagináveis para não perder o poder central.

E ao que tudo indica, se não conseguir seu intento via armações de última hora às vésperas do primeiro turno, nem emplacar um preposto na disputa eleitoral, questionará o resultado das urnas, a repetir a aventura de Aécio, em 2014, que lançou o país num poço sem fundo...
  

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Uma revolução silenciosa



Charge de Márcio Baraldi, copiada do site da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte.

Os mentores e executores do golpe de 2016 - tramado por elites econômicas (locais e internacionais) em complô com elites políticas, sociais e do sistema de justiça brasileiro - apostavam:

1. No sucesso e consolidação das reformas neoliberais: tiveram força suficiente para aprovar a famigerada emenda constitucional que limita os gastos públicos por 20 anos e a reforma trabalhista, juntamente com a terceirização de mão de obra e o enfraquecimento da justiça do trabalho. Mas, já na terceira empreitada, a reforma previdenciária, enfrentaram colossal resistência da sociedade e dos setores democráticos e não lograram êxito.

2. Eliminação das esquerdas e, em especial, do PT: em conluio com a mídia empresarial e segmentos justiceiros e antidemocráticos do sistema de justiça, envidaram imenso e articulado esforço para eliminar as esquerdas e o principal partido desse campo. Numa espetacular reação dos movimentos sociais, da mídia alternativa, dos coletivos identitários e de segmentos democráticos de vários espectros sociais amargam fragorosa derrota: as esquerdas retomaram parte do protagonismo na cena política brasileira; o PT voltou a ter crescimento no número de filiados, simpatizantes e militantes; as armações contra o campo popular e democrático foram explicitadas, inclusive pela mídia internacional e Lula, para o desespero de feitores e tutores da Casa Grande (nos tribunais e nas casernas) se consolidou como o principal agente político e personagem central na disputa eleitoral.

3. Legitimação do golpe via crescimento econômico: os golpistas apostaram muitas fichas na retomada do crescimento econômico como principal álibi à consolidação do neoliberalismo. Com esse pretenso trunfo, conseguiriam apresentar à nação um nome forte à disputa eleitoral de 2018. Ao contrário do planejado, a economia está em frangalhos; o desemprego aumenta assustadoramente; a miséria voltou à cena; a credibilidade internacional do país está no fundo do poço. E de resto não há nenhum nome da coalizão golpista que apresente, sequer, um resultado econômico convincente à população. Alckmin e Meireles, que disputam os despojos da coalizão golpista, são um fiasco na disputa eleitoral.

4. Entrega da soberania e privatização de bens públicos: a política externa subserviente aos interesses norte-americanos somada a uma nova onda de entreguismo do patrimônio público também foi colapsada devido ao total descrédito do governo atual. O país continental se transformou num anão diplomático, ridicularizado no concerto das Nações. Por outro lado, nenhum agente do conglomerado financeiro-econômico internacional que se preza deseja fazer negócios com um governo sem nenhuma legitimidade e odiado pelo seu povo. É um risco alto demais para o deus-mercado.

Como podemos observar nesse pequeno inventário, as apostas do condomínio golpista e seus poderosíssimos atores nacionais são como um gigante de pé de barro e terminam esse período pós impeachment fajuto com um estrondoso fracasso e evidentes derrotas.

Porém, a mais espetacular derrota se apresenta na desobediência civil silenciosa, que já é captada nas pesquisas de intenção de votos à presidência, no atual momento: os candidatos golpistas, são um fracasso. 

Do outro lado, aqueles candidatos que denunciam o golpe e seus atores são os que, juntos, têm a preferência da maioria do eleitorado.

Se somarmos as intenções de votos atribuída a Lula (sendo que boa parte será transferida para Haddad), Ciro Gomes e Boulos temos um percentual duas vezes maior que a soma de todos os demais concorrentes (da coalizão golpista e daqueles cujos discursos dúbios, como o caso de Marina Silva, parecem não convencer o eleitor).

Fala-se que o povo está ausente e apático da disputa política. Trata-se, mais uma vez, desses despautérios produzidos por intelectuais conservadores, analistas de botequim da mídia empresarial e por incautos do campo progressista para criminalizar, ainda mais, os setores populares.

A bem da verdade, as significativas intenções de voto nos candidatos do campo democrático-popular são a mais contundente revolução silenciosa do povo que - não obstante o massacre midiático, a seletividade da justiça da Casa Grande, o autoritarismo que ecoa da caserna, os discursos violentos e de ódio dos setores ultraconservadores e antidemocráticos - não se curvou à narrativa golpista e resiste bravamente contrariando os podres e poderosos poderes.

Agora resta saber se o pleito, que é a última e frágil casca da fajuta democracia tupiniquim, será respeitado.




sábado, 1 de setembro de 2018

Democracia tutelada: todo poder emana dos juízes



Desde 2016 - quando havia uma quase unanimidade entre os setores progressistas e da academia que afirmavam a conflagração de um golpe caracterizado pela atuação do Parlamento e da mídia -, venho insistindo que o principal operador da ruptura democrática havida no Brasil é o sistema de justiça, com protagonismo do poder judiciário.


Estava claro desde então, pelo menos na minha modesta compreensão, que por ações, omissões e conivências, setores do sistema de justiça (membros do MP, PF e Judiciário) formaram uma hermética coalizão (dentro da coalizão golpista, mais fragmentada) e conspiravam contra a democracia que se construía no Brasil.

Ressalvo, antes de tudo, que há bons e honestos juízes, promotores e policiais.

Obviamente, os golpes de estado no Brasil foram engendrados por forças político-econômicas. Os dois últimos, de 1964 e 2016, têm os mesmos sujeitos (quase) ocultos: o alto empresariado antinacional; os banqueiros (e, agora, os rentistas), saqueadores contumazes do erário através da dívida pública; o latifúndio (atualmente travestido de agronegócio) e os interesses norte-americanos. A mídia sempre foi a porta-voz desses grupos. E a classe média conservadora - um amontoado de privilegiados que têm ódio de pobre - um potente canal de mobilização social.

Porém, a operacionalização e a manutenção dos dois golpes se deu de forma distinta: em 1964, via Parlamento e Forças Armadas; em 2016, através do Parlamento e do sistema de justiça.

O processo de formação de uma casta togada no Brasil é histórico. Basta ler o texto do professor Fábio Konder Comparado sobre "o poder judiciário no Brasil". 

Porém, as castas do mundo jurídico (que incluem membros dos ministérios públicos, policiais de alta patente e magistrados) – historicamente avessas à democracia de fato - foram vitaminadas, paradoxalmente, com a Constituição Federal de 1988. A construção, bem arquitetada, do conceito de “estado democrático de direito” reforçava a “ideia imaculada e positivista” segundo a qual o sistema de justiça seria o guardião incorruptível da Constituição; portanto, garantidor do estado democrático.

O povo, protagonista no processo de redemocratização, foi solenemente colocado ao escanteio. Abriu-se algum espaço de participação efetiva da população em conselhos, fóruns e conferências, geralmente consultivos. As experiências dos orçamentos participativos foram limitadas. Houve pouquíssimos referendos e plebiscitos. E as grandes participações populares em processos decisórios se limitavam às eleições.

O assoberbamento, disfarçado de valorização, das carreiras jurídicas de Estado passou a ser uma espécie de mantra repetido garbosamente na boca dos democratas tupiniquins de todas as tonalidades. E, novamente, de modo paradoxal, foi nos governos do PT que houve o maior reforço nas estruturas de estado e nas legislações que empoderaram, ainda mais, os segmentos jurídicos e judiciários.


Todos devem lembrar do orgulho de segmentos das esquerdas, nos governos petistas, ao falarem dos investimentos na Polícia Federal; do respeito republicano às indicações (ardilosas) de procuradores gerais do MP; das nomeações de ministros do Supremo respeitando as demandas de setores classistas da magistratura, etc., etc... Tudo em nome do republicanismo e do combate à corrupção (essa cantilena que se agiganta em momentos de crise, a  esconder e proteger os verdadeiros e grandes corruptores, além de servir para nutrir os espíritos dos hipócritas que implementam os golpes de estado com esse discurso oco e estéril).

Paralelamente ao assoberbamento do sistema de justiça, principalmente sua vertente criminal e mais notadamente desses setores no MP e no judiciário, uma campanha midiática criminalizava os poderes executivo e legislativo. Como uma mentira repetida mil vezes pode virar uma verdade, a política foi-se transformando em sinônimo de corrupção e malandragem para a população.

O Supremo, aos poucos, amesquinhava na sua condição de tribunal constitucional e se transformava num tribunal penal espetaculoso e midiático para o gozo de uma plateia que demandava uma justiça justiceira. O julgamento do chamado mensalão já escancarava essa faceta autoritária do STF.

Sem uma reforma política verdadeira, a legislação eleitoral, por seu turno, favorecia o domínio dos partidos por elites políticas que escolhiam a dedo os candidatos “bom de voto” (e de dinheiro, diga-se de passagem). Essa estratégia pragmática favorecia ainda mais a degradação dos parlamentos, formados por quadros que representavam interesses de grupos e corporações, salvo exceções, e distantes dos anseios populares.

O gerencialismo neoliberal – absorvido também por setores da esquerda -  era apresentado como lenitivo aos problemas da administração pública, promovendo forasteiros endinheirados à condição de chefes do executivo.

Tudo isso junto e misturado corroborava à erosão dos poderes controlados diretamente pelo povo e, por tabela, propiciava a arrogância e a intervenção cada vez mais discricionária, violenta, pretoriana e antidemocrática de juízes, promotores e policiais na esfera política.

Resultado do enredo: depois do golpe, temos uma pseudodemocracia totalmente tutelada pelo sistema de justiça, com apoio discreto, mas efetivo, de setores das Forças Armadas. As mensagens tuiteiras do comandante do exército, portanto de um militar da ativa, quando da votação do STF dohabeas corpus de Lula, em 3 de abril passado, corroboram esse argumento.

A votação do TSE nessa sexta, dia 31 de agosto, é somente mais uma evidência da ditadura togada.

Porém, como explicar o fato de Lula e o PT (com recursos, percursos, intercursos e discursos) demandarem e confiarem no sistema de justiça para restaurar a democracia, depois de tudo o que está a acontecer? (Aliás, os conselheiros jurídicos de Dilma, durante o processo do impedimento fajuto, também confiavam na justiça. E deu no que deu...).

Até mesmo a recomendação do Comitê de Direitos Humanos sobre a importância de se garantirem os direitos políticos do ex-presidente Lula foi solenemente ignorada pela justiça (de exceção) brasileira.

Qualquer cidadão que entende um pouquinho sobre direito internacional dos direitos humanos sabe: quando um estado nacional ratifica os pactos de direitos, tais legislações são hierarquicamente superiores às leis infraconstitucionais. Portanto, a lei da ficha limpa (essa pérola antidemocrática do higienismo punitivo-seletivo à brasileira) não se constitui óbice para o acatamento da recomendação do Comitê da ONU.  Mas, há doutos e maiorais juízes brasileiros não pensam assim.

Afinal, para as elites jurídicas tupiniquins, direitos humanos são artigos de perfumaria (vide as atrocidades cometidas pelo sistema prisional brasileiro sob as barbas do judiciário, solenemente denunciadas por organismos internacionais há anos), utilizados eruditamente em julgamentos televisionados quando convém; para a exibição em regabofes sofisticados ou em congressos nacionais e internacionais, onde teoria e prática são dois universos incomunicáveis.

Ou seja, o sistema de justiça decide quem são os candidatos. Depois, autoriza a população a escolher, entre os seus escolhidos, aquele que que pode ser eleito. E, mais, sinaliza, desde já, que o eleito continuará sob sua tutela - com ameaças constantes, via imprensa.

O judiciário só falta dizer quem deve ser o mamulenco eleito.

E lembrando Rui Barbosa, “a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.”

Vamos observar os próximos passos dessa novela à brasileira, digna de um folhetim global, cujo título poderia ser "democracia tutelada: todo o poder emana dos juízes". 

Cabe, porém, um pergunta: e se o candidato dos "homens bons e das leis" naufragar? Teremos, enfim, o rei togado?