sábado, 18 de junho de 2016

A MISÉRIA DAS ELITES BRASILEIRAS

Fonte: Facebook.
Como naturalizar e não problematizar a imensa injustiça provocada pelas altíssimas taxas de juros e de spread bancário que oprimem toda uma população em favor de meia dúzia de banqueiros e especuladores? Como entender um golpe travestido de legalidade e abençoado pelos setores mais conservadores e retrógrados da sociedade, com a conivência cínica de instituições que, a princípio, deferiam se levantar contra toda afronta à Constituição ou a afronta à dignidade dos pobres?

         Jessé Souza, em sua mais recente obra A tolice da inteligência brasileira, ou como o país se deixa manipular pela elite (São Paulo: LeYa, 2015), nos ajuda a entender que a perfeita união entre o economicismo (“a crença explícita ou implícita de que a variável econômica por si esclarece toda a realidade social”) e o culturalismo conservador (uma ciência da ordem que existe para afirmar e legitimar o mundo como ele é) justificam as leituras dominantes e empobrecedoras do debate político brasileiro. Esse é um dos motivos do porque não indignamos com o fato de que “nos bolsos do 1% mais rico da população brasileira está o resultado do trabalho dos 99% restantes”. E isso parece normal, natural, justificável, imutável e academicamente inquestionável.

Para manter esse empreendimento vergonhoso intacto, somente com muita violência simbólica, “que se disfarça de convencimento pelo melhor argumento”. E aqui entra a miséria da nossa ciência. Como já ensinava Max Weber, é preciso que o dominado socialmente se convença de sua inferioridade para que a dominação social seja possível. Neste sentido, “a legitimação científica da dominação fática produz a imagem de sociedades idealizadas de um lado e de sociedades essencialmente corrompidas do outro”. Portanto, “em vez de apontar para as causas reais da concentração da riqueza nas mãos de uns poucos e para a exclusão da maioria, essas concepções de intelectuais servis ao poder e ao status quo nos levam a acreditar que nossos problemas advêm da ‘corrupção apenas do Estado’, levando a uma falsa oposição entre o Estado demonizado, tido como corrupto, e um mercado visto como o reino de todas as virtudes”.

A bem da verdade, as elites nacionais nunca se importaram com a consolidação de um sistema educacional voltado aos interesses da cidadania, com o objetivo de concretizar uma república de fato (para além da formalidade do direito). Conviver pacificamente com essa abissal desigualdade social assistindo em berço esplêndido e impunemente o extermínio de sessenta mil cidadãos por ano (a maioria negros e pobres e parte significativa sendo eliminada por agentes do estado), além de um descomunal cinismo é um dos dados mais evidentes da intensa fragilidade de uma sociedade que nunca foi e não é nem republicana, nem liberal-democrática e cujo Estado nunca foi e não é  de direito (a não ser na formalidade da lei que é manipulada ao bel-prazer de e para poucos). Como dizia Darcy Ribeiro: "o Brasil tem uma classe dominante ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente!"

As críticas de Jessé Souza acerca do servilismo dos intelectuais brasileiros aos interesses dos poderosos precisam ser consideradas: “Todos os dias indivíduos normalmente inteligentes e classes sociais inteiras são feitos de tolos para que a reprodução de privilégios injustos seja eternizada entre nós. Para enxergar com clareza nosso real lugar no mundo, é fundamental compreender como nossa elite intelectual submissa à elite do dinheiro construiu uma imagem distorcida do Brasil de modo a disfarçar todo tipo de privilégio injusto. Os poucos que hoje controlam tudo precisam desse “exército de intelectuais”, do mesmo modo que os coronéis do passado precisavam de seu pequeno exército de cangaceiros. (...) E produzir “convencimento” é precisamente o trabalho de intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado.”

Mas, por que o título do livro trata de uma “tolice da inteligência brasileira”?  Porque, segundo o autor, e concordamos com ele, os principais intérpretes do Brasil sempre foram “colonizados até o osso”. Criaram suas teorias sociológicas e políticas a partir do pressuposto de um desenvolvimento socioeconômico relativamente baixo, como próprio das pessoas de sociedades como a nossa e não como resultado de uma estrutura e institucionalidade de distribuição da riqueza (acesso a bens e serviços) extremamente desiguais e excludentes.

A bem da verdade, constata Jessé Souza, a maioria dos cientistas sociais e políticos vê a modernidade como se fosse uma “fábula para adultos”; ou seja, a modernidade descrita como fruto de uma benção divina. Assim, algumas sociedades abençoadas têm pessoas boas que são recompensados (por méritos) com riquezas. Outras, não são abençoadas e têm pessoas más, padecendo do castigo da pobreza.

Neste sentido, no caso da tolice à brasileira, trata-se de criar todo um conjunto de teorias com vistas a confundir a causa (desigualdade extrema associada a “pobreza extrema”) com a consequência (reprodução crônica e ampliada das “doenças” modernas). A partir dessa “confusão”, os tolos, que somos todos nós, acabam vendo subjetividade, ou seja, sociedades melhores, onde na verdade existe objetividade, isto é, sociedades estruturalmente mais ou menos desiguais.

A leitura atenta do livro de Jessé Souza ajuda-nos, entre outras possibilidades de apreensão das muitas mazelas nacionais, a entender um pouco mais sobre a crise política que vivenciamos nos últimos meses. A erosão das instituições políticas somente confirma o que todos sabíamos, mas não queríamos reconhecer: somos uma república das bananas, na qual, salvo exceções, as elites (políticas, econômicas, intelectuais, religiosas e jurídicas) defendem na teoria uma democracia formal, mas não se comprometem na concretização de numa democracia de fato.

A ressaca frustrante dessa democracia de faz-de-c0nta, que não respeita sequer a formalidade dos procedimentos determinados pela Constituição Federal de 1988, foi comprovada no golpe parlamentar-jurídico-empresarial-midiático-elitista em curso no país. No livro, editado no ao passado, o autor já antevia no capítulo “o golpismo de ontem e de hoje: considerações sobre o momento atual”, o que ocorreu, de fato, neste ano.

Construtores e patrocinadores dos contos da carochinha sobre corrupção, isenção da justiça e deficiência do Estado, divulgados em doses cavalares pela mídia (afinal, ninguém é dominado se não aceitar a dominação como algo bom ou devido a sua inferioridade moral), os beneficiários diretos de uma desigualdade que se reproduz de forma ampliada fizeram a sociedade brasileira crer que ela é essencialmente corrupta, devendo, portanto, aceitar passivamente o estupro à democracia apadrinhado por uma elite despudora, chafurdada na lama da corrupção, mas com um discurso higienista, salvacionista e eivado de conservadorismo (social, moral, político e religioso).

Os espertos (ricos, beneficiários diretos da estrutura desigual da sociedade) construíram uma farsa fazendo com que o brasileiro, não abençoado e corrupto por natureza, confiasse que o âmago da corrupção está no Estado e no governo de plantão que gerenciava a máquina pública. Como alter ego da sociedade, a mídia ainda cumpriu o perverso papel de propagar a ideia de negação da política (os políticos, os partidos e a democracia representativa como instituição), bem como repudiar a importância do Estado no seu papel de fundamental como lócus de redução da desigualdade social e suas mazelas, entre elas as violências real e simbólica.


Tudo bem arquitetado, assistimos ao golpe elitista reposicionando novamente para o centro das decisões do Estado aquele 1% mais rico, que controla a riqueza e o poder; que tem nas mãos todo o sistema de manipulação da opinião publicada transformada em opinião pública; que tem no sistema de justiça conservador  e seletivo parceiro de primeira hora; que não paga imposto (porque no Brasil os lucros de capital são isentos de tributos) e que, historicamente, sempre usurpou do trabalho e do suor dos 99% dos brasileiros, principalmente dos 70% dos trabalhadores e empobrecidos. E todos, como marionetes, assistimos ao espetáculo sem perceber que os mesmos de sempre pagarão a conta do banquete dos poderosos.