domingo, 8 de maio de 2016

Consuma-se a farsa do impeachment

Aproxima-se o dia no qual os usurpadores, que não passaram pelo crivo das urnas e, portanto, não têm mandato popular, conseguirão apear do poder uma presidenta eleita democraticamente e impedida de exercer seu mandato sem ter praticado crime de responsabilidade, numa afronta abissal à Constituição.

Antes, dado que já cumpriu o seu "dever", assistimos a extemporânea retirada de Cunha do comando da Câmara Federal. Em pouco mais de um ano no comando daquela Casa, articulou a coalizão parlamentar do golpe. Agora, para dar "ares de legalidade" é afastado pelo STF. Cumprido seu papel de jagunço político será, doravante, uma espécie de bode expiatório, a purgar publicamente para o deleite daqueles que ainda acreditam na isonomia e efetividade da justiça.

Sobre ele, pesam dezenas de acusações de corrupção ativa e passiva, há anos.  Não obstante, comandou como uma ninfa incólume a abertura do processo de impeachment, sob os olhares passivos dos ministros do Supremo, guardiões da Constituição e, por consequência, das regras procedimentais da democracia, criando, desde então, uma situação incontornável sob o ponto de vista político.

Se o STF desejasse um mínimo de moralidade na República, deveria ter determinado não somente o afastamento de Eduardo Cunha do seu mandato e da presidência da Câmara, mas também anulado todos os seus atos desde o recebimento da denúncia da PGR em dezembro de 2015. E, nesses atos, estaria inclusa a patética sessão da Câmara de 17 de abril quando foi determinado o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Como dizia Ruy Barbosa "a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta." (IN: "Oração aos Moços", 1921).

As duas coalizões golpistas (veja aqui) urdiram uma trama quase perfeita. Porém, o resultado desse estupro à democracia virá em doses cavalares nos próximos dias e anos.

         O mais vergonhoso é que desde a derrota eleitoral de 2014, os golpistas, não aceitando os resultados das urnas, tramaram de todas as formas para violentarem a vontade soberana do povo. Desde o primeiro momento, Aécio questionou as eleições, a ponto de colocar em xeque a eficiência das urnas eletrônicas. Ao longo de um ano, sob a batuta de Janot, Moro, da Polícia Federal e da mídia, chafurdaram a vida e as ações de Dilma tentando encontrar um crime de responsabilidade. Como não encontraram, inventaram essa desculpa esfarrapada das pedaladas fiscais para justificarem a empreitada golpista.

         O vexame é tão óbvio e ululante que Glenn Greenwald (jornalista, escritor e advogado americano, especialista em Direito Constitucional, que iniciou a divulgação, através do jornal britânico The Guardian, das informações sobre os programas de vigilância global dos Estados Unidos pela NSA, revelados em junho de 2013 através dos documentos fornecidos por Edward Snowden),  escreveu em seu twitter: “a elite brasileira cansou de perder as eleições; em vez de continuar tentando, resolveu destruir a democracia” (confira aqui).

A última presepada da coalizão golpista está sendo urdida no Senado. Depois de apresentar um relatório eivado de vícios, o tucano Antônio Anastasia, assistiu seu parecer na Comissão daquela Casa ser   desconstruído publicamente pelos três juristas citados por ele no documento. Os constitucionalistas Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia aparecem na peça de Anastasia como se reforçando o ponto de vista do relator.

Porém, segundo os professores supracitados, Anastasia usou um argumento deles para defender o contrário do que eles acreditam com relação ao artigo 85 da Constituição, que versa sobre os crimes de responsabilidade. Os três advogados escreveram um artigo expondo o "equívoco". “O senador Anastasia nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos”. (Confira aqui). 

Anastasia não tinha condições morais e éticas para relatar o impeachment: além de ser do PSDB (o partido que manejou o golpe e até pagou parecer jurídico para a feitura do pedido originário de impeachment – veja aqui), pedalou inúmeras vezes como governador. 

Apresentado por alguns golpistas como constitucionalista (veja aqui), Anastasia é da área do Direito Administrativo. No texto de punho do próprio autor na plataforma Lattes está escrito: “tem experiência na área do direito; com ênfase em direito administrativo”. Seu título de mestre foi obtido em 1990. Observamos duas pequenas publicações do autor que versam sobre temas correlatos ao direito constitucional (leia aqui). Portanto, dizer que Anastasia é um constitucionalista não seria mais uma fraude?

No embate entre Anastasia e o advogado geral da União José Eduardo Cardoso, durante uma das oitivas na Comissão do Impeachment do Senado, o mineiro quis, espertamente, dar ares de legalidade a trama golpista, sendo confrontado imediatamente pelo defensor de Dilma Rousseff:  “O fato de existir direito de defesa formal, não real, onde as pessoas já entram com a convicção formada, indica uma decisão política e não uma decisão imparcial. O senhor (Anastasia) diz que nunca viu golpe com direito de defesa? Eu já vi. Eu já vi injustiça com direito de defesa. Todos os julgamentos mais iníquos da humanidade foram feitos com direito de defesa. Aliás, quando se quer esconder uma iniquidade, se dá o direito de defesa retórico onde as cartas já estão marcadas, onde o jogo já está definido”. (José Eduardo Cardozo – veja aqui).

A destruição da democracia pelos infames golpistas terá um preço alto. Conforme as palavras proferidas pelo insuspeito professor Paulo Sérgio Pinheiro, integrante do governo FHC e reconhecido internacionalmente pela defesa dos direitos humanos, “o que vai acontecer é a derrubada de tudo o que se constituiu nos últimos 25 anos em termos de direitos humanos, controle civil das Forças Armadas, fortalecimento dos movimentos sociais e da sociedade civil democrática organizada”. “O perfil do governo golpista simplesmente é um sinal fraco do governo, com práticas de direita e extrema direita, que estarão ainda por vir” (veja aqui).

Finalmente, como escreveu o professor de ciência política da Universidade Federal de São Carlos e professor visitante na Universidade de Cambridge, Pedro Floriano Ribeiro, em artigo no El País, “a democracia comporta gestões melhores e piores, e à oposição (recente ou antiga) cabe fustigar o Governo à espera de novas eleições, quando disputará a narrativa sobre a administração que se encerra em busca do voto popular. Qualquer coisa fora disso recoloca o país no circuito das repúblicas bananeiras - seja uma quartelada clássica, seja a congressada e conspiração palaciana ora em curso. O vice ansioso parece muito atento às pompas e circunstâncias, e preocupado com a autoimagem e seu lugar na história. Pois bem: deve saber que está chegando à Presidência de braços dados com o que há de pior na política brasileira – incluindo o deputado misógino, travestido de valentão linha-dura, capaz de regozijar-se com a dor da tortura alheia, numa das piores canalhices já registradas no parlamento brasileiro. (....) Temer está garantindo, assim, um lugar menos decorativo na história política brasileira – história que comporta, no entanto, papéis de todos os tipos. O dele dificilmente será dos mais honrosos." (Leia aqui).

Porém, enganam-se aqueles que pensam que os democratas e defensores de uma sociedade justa e igualitária se acovardarão diante de tamanha violência. Como escreveu o conceituado professor e criminalista Leonardo Isaac Yarochewsky, “quando os caminhos legais são fechados; quando o judiciário se omite; quando a injustiça é flagrante; quando a Constituição da República é rasgada; quando a farsa e a insensatez tomam o lugar da verdade e do juízo; quando a ética é destruída pela indecência; quando não há mais esperança, só resta o caminho da resistência e da desobediência civil”. (Veja aqui).