Aproxima-se o dia no qual os
usurpadores, que não passaram pelo crivo das urnas e, portanto, não têm mandato
popular, conseguirão apear do poder uma presidenta eleita democraticamente e
impedida de exercer seu mandato sem ter praticado crime de responsabilidade,
numa afronta abissal à Constituição.
Antes, dado que já cumpriu o seu
"dever", assistimos a extemporânea retirada de Cunha do comando da
Câmara Federal. Em pouco mais de um ano no comando daquela Casa, articulou a
coalizão parlamentar do golpe. Agora, para dar "ares de legalidade" é
afastado pelo STF. Cumprido seu papel de jagunço político será, doravante, uma
espécie de bode expiatório, a purgar publicamente para o deleite daqueles que
ainda acreditam na isonomia e efetividade da justiça.
Sobre ele, pesam dezenas de acusações
de corrupção ativa e passiva, há anos. Não
obstante, comandou como uma ninfa incólume a abertura do processo de impeachment, sob os olhares passivos dos
ministros do Supremo, guardiões da Constituição e, por consequência, das regras
procedimentais da democracia, criando, desde então, uma situação incontornável
sob o ponto de vista político.
Se o STF desejasse um mínimo de
moralidade na República, deveria ter determinado não somente o afastamento de
Eduardo Cunha do seu mandato e da presidência da Câmara, mas também anulado
todos os seus atos desde o recebimento da denúncia da PGR em dezembro de 2015. E,
nesses atos, estaria inclusa a patética sessão da Câmara de 17 de abril quando
foi determinado o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Como dizia Ruy Barbosa "a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça
qualificada e manifesta." (IN: "Oração aos Moços", 1921).
As duas coalizões golpistas (veja aqui)
urdiram uma trama quase perfeita. Porém, o resultado desse estupro à democracia
virá em doses cavalares nos próximos dias e anos.
O mais vergonhoso é que
desde a derrota eleitoral de 2014, os golpistas, não aceitando os resultados
das urnas, tramaram de todas as formas para violentarem a vontade soberana do
povo. Desde o primeiro momento, Aécio questionou as eleições, a ponto de
colocar em xeque a eficiência das urnas eletrônicas. Ao longo de um ano, sob a
batuta de Janot, Moro, da Polícia Federal e da mídia, chafurdaram a vida e as
ações de Dilma tentando encontrar um crime de responsabilidade. Como não
encontraram, inventaram essa desculpa esfarrapada das pedaladas fiscais para
justificarem a empreitada golpista.
O vexame é tão óbvio e
ululante que Glenn Greenwald (jornalista, escritor e advogado americano,
especialista em Direito Constitucional, que iniciou a divulgação, através do
jornal britânico The Guardian, das informações sobre os programas de vigilância
global dos Estados Unidos pela NSA, revelados em junho de 2013 através dos
documentos fornecidos por Edward Snowden),
escreveu em seu twitter: “a
elite brasileira cansou de perder as eleições; em vez de continuar tentando,
resolveu destruir a democracia” (confira aqui).
A última
presepada da coalizão golpista está sendo urdida no Senado. Depois de
apresentar um relatório eivado de vícios, o tucano Antônio Anastasia, assistiu
seu parecer na Comissão daquela Casa ser
desconstruído publicamente pelos três juristas citados por ele no
documento. Os constitucionalistas Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de
Oliveira e Alexandre Bahia aparecem na peça de Anastasia como se reforçando o ponto de vista do
relator.
Porém, segundo os professores supracitados, Anastasia usou um
argumento deles para defender o contrário do que eles acreditam com relação ao
artigo 85 da Constituição, que versa sobre os crimes de responsabilidade. Os
três advogados escreveram um artigo expondo o "equívoco". “O senador
Anastasia nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos”.
(Confira aqui).
Anastasia não tinha condições morais e éticas para relatar o impeachment: além de ser do PSDB (o
partido que manejou o golpe e até pagou parecer jurídico para a feitura do
pedido originário de impeachment – veja aqui),
pedalou inúmeras vezes como governador.
Apresentado por alguns golpistas como constitucionalista
(veja aqui),
Anastasia é da área do Direito Administrativo. No texto de punho do próprio
autor na plataforma Lattes está escrito: “tem experiência na área do direito;
com ênfase em direito administrativo”. Seu título de mestre foi obtido em 1990.
Observamos duas pequenas publicações do autor que versam sobre temas correlatos
ao direito constitucional (leia aqui).
Portanto, dizer que Anastasia é um constitucionalista não seria mais uma
fraude?
No embate entre Anastasia e o advogado geral da União José Eduardo Cardoso, durante uma das
oitivas na Comissão do Impeachment do
Senado, o mineiro quis, espertamente, dar ares de legalidade a trama golpista,
sendo confrontado imediatamente pelo defensor de Dilma Rousseff: “O fato de existir direito de defesa formal, não real, onde
as pessoas já entram com a convicção formada, indica uma decisão política e não
uma decisão imparcial. O senhor (Anastasia) diz que nunca viu golpe com direito
de defesa? Eu já vi. Eu já vi injustiça com direito de defesa. Todos os
julgamentos mais iníquos da humanidade foram feitos com direito de defesa.
Aliás, quando se quer esconder uma iniquidade, se dá o direito de defesa
retórico onde as cartas já estão marcadas, onde o jogo já está definido”. (José
Eduardo Cardozo – veja aqui).
A destruição da
democracia pelos infames golpistas terá um preço alto. Conforme as
palavras proferidas pelo insuspeito professor Paulo Sérgio Pinheiro, integrante do governo FHC e reconhecido
internacionalmente pela defesa dos direitos humanos, “o que vai acontecer é a
derrubada de tudo o que se constituiu nos últimos 25 anos em termos de direitos
humanos, controle civil das Forças Armadas, fortalecimento dos movimentos
sociais e da sociedade civil democrática organizada”. “O perfil do governo
golpista simplesmente é um sinal fraco do governo, com práticas de direita e
extrema direita, que estarão ainda por vir” (veja aqui).
Finalmente, como
escreveu o professor de ciência política da Universidade Federal de São Carlos
e professor visitante na Universidade de Cambridge, Pedro Floriano Ribeiro, em
artigo no El País, “a democracia comporta gestões melhores e piores, e à
oposição (recente ou antiga) cabe fustigar o Governo à espera de novas
eleições, quando disputará a narrativa sobre a administração que se encerra em
busca do voto popular. Qualquer coisa fora disso recoloca o país no circuito
das repúblicas bananeiras - seja uma quartelada clássica, seja a congressada e
conspiração palaciana ora em curso. O vice ansioso parece muito atento às
pompas e circunstâncias, e preocupado com a
autoimagem e seu lugar na história. Pois bem: deve saber que está chegando à
Presidência de braços dados com o que há de pior na política brasileira –
incluindo o deputado misógino, travestido de valentão linha-dura, capaz de
regozijar-se com a dor da tortura alheia, numa das piores canalhices já registradas
no parlamento brasileiro. (....) Temer está garantindo, assim, um lugar menos
decorativo na história política brasileira – história que comporta, no entanto,
papéis de todos os tipos. O dele dificilmente será dos mais honrosos." (Leia aqui).
Porém,
enganam-se aqueles que pensam que os democratas e defensores de uma sociedade
justa e igualitária se acovardarão diante de tamanha violência. Como escreveu o conceituado professor e
criminalista Leonardo Isaac Yarochewsky, “quando os caminhos legais
são fechados; quando o judiciário se omite; quando a injustiça é flagrante;
quando a Constituição da República é rasgada; quando a farsa e a insensatez
tomam o lugar da verdade e do juízo; quando a ética é destruída pela
indecência; quando não há mais esperança, só resta o caminho da resistência e
da desobediência civil”. (Veja aqui).
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