sábado, 31 de dezembro de 2016

Feliz ano velho: 2017 tem tudo para ser pior.


Não pretendo ser mais realista que o rei. Mas, não adianta entrarmos nesse clima infantilizado de final de ano. Achar que num passe de mágica as pessoas, o mundo, os golpistas mudarão. Acreditar que com crendices, rezas e rituais teremos a intervenção cósmica, ou divina, a resolver milagrosamente os nossos problemas sociais, políticos, econômicos...

Entendo que um pouco de ilusão, fantasia e fuga da realidade tornam-se ingredientes importantes para suportar a dureza da vida e dos fatos. 

Nessa época, o final de ano, há uma “tentação” de acharmos que os milagres existem (a começar pelo fantasioso papai Noel). Ou que vale apostar todas as fichas numa esperança de esperar (que tudo mude para melhor, sem esforço pessoal e comunitário) ao invés de esperançar-se (ou seja, juntar-se com os outros para fazer algo diferente). Esse clima produz sujeitos passivos, poliqueixosos e irresponsáveis, à medida que a solução para os problemas do cotidiano são transferidos para o outro; ou são direcionados para o além.

Porém, tudo indica que a curto prazo, no campo da política, não há razões para sermos otimistas. E só não vê quem não quer:

1.    Temer e sua camarilha implementaram um golpe imprevisível e, desde então, iniciaram um programa de desmonte do estado sem precedentes.

2. Para atenderem as expectativas dos rentistas e do Tio Sam, os verdadeiros ganhadores do golpe, estão a implementar uma agenda que inclui violentos cortes nas áreas sociais (a garantir o superávit, visando o pagamento da dívida aos especuladores); de entrega do patrimônio público a alienígenas (privatizando a preço de banana os bens públicos, como fizera anteriormente FHC); de desmonte da indústria e da pesquisa nacionais (para manter o país na condição de colônia eternamente explorada); e, ainda, a imposição de regras trabalhistas e previdenciárias similares ao capitalismo do século XIX (cuja mentalidade dos burgueses à época era a exploração máxima da classe trabalhadora, de maneira que pudessem garantir o lucro absurdo e manter a massa operária dependente). Realmente, a começar pelo lema do governo golpista, “ordem e progresso”, parece que retornamos ao século XIX, quando a classe dominante, na Europa, se manteve insensível às condições de precarização e deterioração da vida do trabalhador, preferindo ignorar a imensa dívida social, pois não se sentia atingida pelas desventuras dos pobres. Era mais cômodo e fácil fingir que nada acontecia e tratar os trabalhadores e os pobres como se não fossem seres humanos. Esse é o retrato do Brasil sob Temer.

3.  Para navegar em céu de brigadeiro, Temer, o decorativo, estará alinhado aos tucanos – que formam o núcleo duro de seu governo -, e aos setores do banditismo político incrustados no Congresso Nacional: o centrão, aquela facção forjada por Cunha para chamar de sua; a bancada BBB e a turma do PMDB, os coronéis da velhaca política nacional.

4.  O golpista continuará tendo o apoio amistoso da juristrocracia nacional. Para tanto, contará com um Ministério Público Federal que, nos dizeres de Eugênio Aragão, “se ideologizou, se apaixonou pelo fetiche criminalista, e relegou muitas de suas funções mais preciosas em nome de um fortalecimento da perseguição penal. Com isso, ele deu uma guinada para a direita e hoje é profundamente conservador”.  Sob o atual ministro da justiça, terá uma Polícia Federal transformada numa polícia política, sem controle e de ação enviesada e não-republicana. A partir do STF terá um judiciário que confirma a sina da justiça desse país: sempre serviçal da casa grande.

5.  Com a patrocinadora do golpe, a mídia antidemocrática, manipuladora, sem controle social e alçada à condição de produtora da agenda política brasileira, Temer será generoso, despejando dinheiro público, com faz em doses cavalares neste final de ano. Até capa de princesa já ganhou para a sua “bela, recatada e do lar”.

6.  No próximo ano, pelo andar da carruagem, mais uma vez em parceria com a juristocracia, há condições ideais para que a mídia continue a exercer seu papel de chantagista e definidora da produção da tal agenda política nacional.

7.  Por outro lado, Moro e Gilmar Mendes, os parceiros queridinhos da mídia tupiniquim e dos verdadeiros ganhadores do golpe, continuarão no centro das disputas políticas. Essa é a república brasileira atual: o centro das decisões políticas foi deslocado dos poderes que têm no voto a referência e se instalou num poder autocrático, hermético e distante daqueles que são a origem e a razão do poder: o povo. A instabilidade provocada por esses atores do judiciário e policiais é proposital para manter o sistema político frágil e poroso, permeável ao controle e às chantagens dos interesseiros, numa democracia de baixíssima intensidade.

8.  As imensas perdas de patrimônio e da renda do empresariado nacional serão compensadas com o arrocho salarial e a precarização das condições de vida dos trabalhadores. Como nossos empresários e comerciantes sempre pensam no imediato, nas férias em Miami e no próprio umbigo, continuarão incapazes de prever o tamanho do fosso no qual estão sendo lançados. Os capitalistas exógenos terão condições ideais, em pouco tempo, de comprar a preço de banana os restos, ou seja, os despojos da indústria e do patrimônio nacional dilapidados pela sanha dos golpistas.

É pouco previsível, a curto prazo, que esse cenário dantesco sofra alterações substantivas, ainda mais se considerarmos que no plano internacional grassa o recrudescimento da direita conservadora, cuja “onda azul”, aqui bem caracterizada pela cor do tucanato, espraia-se mundo afora.

Não se sabe se esse alargamento do conservadorismo é refluxo de um capitalismo que urra para sobreviver. Afinal, o capitalismo rentista produziu um esgotamento que pode ser percebido em várias dimensões: do ecossistema, da política, da economia baseada na especulação e no rentismo, das instituições tradicionais - incapazes de dar respostas a uma sociedade cada vez mais complexa. Além disso, em seu formato especulativo e rentista da atualidade, o capitalismo destrói as comunidades e as minorias étnicas e sociais.

Portanto, é preciso inscrever o golpe ocorrido no Brasil dentro dessa dimensão político-econômica mais ampla para que possamos perceber suas dimensões e consequências e escaparmos das análises minimalistas ou panfletárias, que não dimensionam perspectivas mais amplas e complexas para o seu enfrentamento.

Ademais, haja vista nosso tipo de sociedade (proposital e culturalmente despolitizada, com uma cidadania pouco ativa, acostumada com um estado assistencialista e “naturalmente” patrimonialista e elitista) é pouco provável que uma reação surja através de grandes mobilizações sociais.

Como o imprevisível é componente real das disputas em curso pelo controle do golpe (envolvendo os três poderes e outros atores interessados nos desmonte do estado), restará alguma perspectiva de mudança do cenário, a médio prazo, se houver a (pouco provável) união dos campos progressistas.

Mas, não nos enganemos. Não é pulando ondas, orando tresloucadamente ou queimando fogos de artifício que teremos um 2017 melhor...

Então, pelo menos por enquanto, feliz ano velho!


domingo, 18 de dezembro de 2016

A atual fase do golpe e suas faces


Charge: Laerte Coutinho
Um golpe sempre produz gravíssimas rupturas de ordens institucional, jurídica, econômica e social. E esse golpe tem um agravante: diferentemente da ditadura civil-militar, quando os militares assumiram o controle, enquadrando as demais instituições (para gerar alguma estabilidade, pela força), o que vemos agora é uma luta fratricida entre os três poderes pelo controle do golpe.

As consequências das rupturas democráticas aparecem de variadas formas (disputa entre poderes, instabilidade das instituições, experimentos de golpes dentro do golpe...). Nas tentativas de contorna-las, os golpistas sempre abrem novas frestas a indicarem que “remendos novos em panos velhos” só servem para tamponar momentaneamente o caos.

Todos sabemos que o golpe no Brasil é patrocinado pelos Estados Unidos, especificamente pela Wall Street (o rentismo financeiro internacional). Apesar de as eleições americanas terem consagrado justamente a Main Street (o setor produtivo), na figura de Donald Trump, o capital especulativo internacional, concentrador de renda e riqueza, precisa manter nosso país como uma colônia extrativista (haja vista nossos abundantes recursos naturais) e de mão-de-obra precarizada. Ademais, para a geopolítica estadunidense, o Brasil não tem o direito de dar voo solo em nenhuma hipótese.

Para conseguir golpear nossa democracia de baixa intensidade, os rentistas internacionais optaram por patrocinarem um tipo de ruptura diferente. Ao invés de invasão externa (impossível num país da nossa dimensão) ou na aliança com os setores militares (metodologia utilizada na América Latina na segunda metade do século passado), resolveram apostar em figuras autóctones para tocar a empreitada.

Há características psicopatológicas comuns, perceptíveis nos principais líderes golpistas brasileiros: desejo incontido de poder, prestígio e bajulação e uma imensa fraqueza moral e ética, própria de personalidades pueris.

Investir nesse tipo de personalidade - de pessoas que não têm limites; vivem num mundo paralelo; postam-se como cidadãos acima do bem e do mal e são obcecados pelo poder a qualquer custo -, foi o tiro certeiro e bem orquestrado para a implementação do golpe. No momento adequado, serão descartados do jogo.

Fundamentalmente, duas estratégias foram utilizadas para criar as condições para o golpe: a primeira, treinar pessoas cuidadosamente escolhidas para executarem milimetricamente o enredo golpista. E, depois, utilizar da grande mídia para endeusar esses “salvadores da pátria”, distorcer fatos, eleger bodes expiatórios, criar um clima de instabilidade, ódio e manipulação da realidade.

As principais faces autóctones do golpe são: no campo político, Aécio Neves e Cunha (já descartado) e no campo jurídico, Gilmar Mendes, Janot, Moro e os procuradores da Lava-jato. Vejam que essas personagens têm em comum as mesmas características mencionadas acima: desejo incontido de poder, prestígio e bajulação e uma imensa fraqueza moral e ética, própria de sujeitos pueris. As cenas amistosas entre Aécio e Moro, recentemente, foram mais uma evidência da trama golpista, entre tantas outras.

Temer, como já discutimos em outro post, é uma espécie de mamulengo. Está, literalmente, nas mãos dos nominados acima e de outros de igual extirpe aninhados no seu partido, o PMDB. Muito provavelmente continuará dançando conforme a música tocada pelos verdadeiros líderes golpistas ou será solenemente descartado quando sua “missão” tiver sido devidamente cumprida.

Na atual fase do golpe importa consolidar as condições para devolver o Brasil à sua condição de colônia do capitalismo rentista. Portanto, aniquilar os direitos sociais conquistados na Constituição Federal de 1988 (antiga PEC 55 e as “reformas” da previdência e trabalhista). Para tanto, há uma orquestração das ações nos campos político (poderes executivo e legislativo) e jurídico-constitucional (STF).

Porém, devido a onda crescente de insatisfação popular (capturada nas pesquisas de avaliação do governo) e a disputa figadal entre os três poderes (cujo objetivo comum é a autopreservação de seus quadros, dado a evidente corrupção sistêmica e estrutural que os dominam), resta agora apelar para estratégias de comunicação de massa com o objetivo de dissuadir uma revolta popular. Registre-se que somente uma revolta poderá deter o golpe; afinal, o enfraquecimento e as disputas entre os campos progressistas e de esquerda não impõem qualquer perigo.

Para tentar contornar um possível caos social, uma avalanche de anúncios e programas midiáticos otimistas estão em curso. O objetivo é contrapor o clima policialesco que domina os noticiários – sempre à caça de culpados seletivamente escolhidos - e tamponar o saque ao erário e a guerra entre os golpistas. O encontro ocorrido entre o presidente e o dono da emissora oficial do golpe, a Rede Globo, nesses dias, evidencia parte dessa estratégia.

Por outro lado, para aplacar a ira dos setores econômicos, que perceberam que o golpe está aprofundando seus prejuízos, o governo anunciou um pacote de bondades para as áreas financeira e empresarial e de maldades para os trabalhadores.

Imaginem os lucros estratosféricos que serão auferidos pelos setores farmacêutico, hospitalar, de seguros e de planos de saúde com o desmonte da previdência e da saúde pública, por exemplo. Esses são alguns dos ganhadores do golpe. Nem os militares tiveram tanta ousadia. O custo dessa aventura será alto...

Acontece que, nas economias capitalistas, a somatória de golpe com recessão econômica gera, inevitavelmente, além da incerteza, uma avalanche de temor, medo difuso e “salve-se quem puder”. Preocupados com a sobrevivência, os trabalhadores (parte mais fraca) se recolhem num primeiro momento. Por isso, o esvaziamento das ruas. Mas a recessão impõe condições de vida tão precarizadas que os grupos rancorosos, racistas, fascistas e movidos por medo e ódio, de todos os segmentos sociais, aparecem, derivando numa situação sem controle, mais cedo ou mais tarde. Já começamos a viver essa situação.

Enganam-se aqueles que pensam em futuro promissor nessas condições, ainda mais num país onde a justiça sempre foi seletiva e desacreditada e as instituições referenciais, como as igrejas, também são objeto de desconfiança pública.

Ou o país retoma os rumos de uma democracia (o arranjo menos ruim), pelo voto popular, ou cairemos numa situação de barbárie.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Direitos Humanos: ainda resta longo caminho...

Dignidade está relativizada pela classe social e não pela condição humana.

Dignidade está relativizada pela classe social e não pela condição humana. (Divulgação)

Direitos humanos ainda são violados e as políticas públicas voltadas para a ampliação da cidadania ainda são insuficientes.
Foi após a Constituição Federal de 1988 que observamos a inclusão dos direitos humanos nas leis gerais, nos planos de governo e na implementação de políticas públicas em nosso país. Direitos Humanos se referem a todos os direitos: civis, políticos, sociais, culturais. E de todas as pessoas, classes, etnias, orientações sexuais...
No campo da educação, por exemplo, contemplando a temática relativa aos direitos humanos, podemos citar como avanços importantes, o Plano Nacional de Educação, os Parâmetros Nacionais Curriculares, a Matriz Curricular da Educação Básica e a Lei 10.639/2003, que alterou as diretrizes e bases da educação nacional e incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira. 
Graças à Constituição, a consolidação das ações de direitos humanos ampliou-se sobremaneira ao longo da década de 1990, em parte pela série de conferências internacionais e pelos acordos e tratados delas derivados, dos quais o Brasil se tornou signatário. No plano interno, nosso país viu-se obrigado a adequar-se às novas exigências internacionais, e, aprovando um elenco de leis e medidas jurídicas com o espírito da “constituição cidadã”, o governo brasileiro comprometeu-se, inclusive em fóruns supranacionais, com a defesa, proteção, reparação e a promoção desses direitos.
Não obstante os avanços – reconhecidamente conquistados nos últimos anos, principalmente a partir de 2003 com a ampliação do estado de bem-estar social –, temos um longo caminho a percorrer na efetivação dos direitos humanos, pois ainda nos defrontamos com um abismo que separa os direitos formalmente garantidos e seu exercício, haja vista as imensas desigualdades sociais que ainda assolam o Brasil.
Não podemos ficar alheios à trivialização de um quadro no qual temos, de um lado, os incluídos, portadores de direitos e de cidadania, e, do outro, os excluídos, vivendo à margem da cidadania. Uma das formas mais contundentes de verificarmos esses dois brasis, o dos incluídos e o dos excluídos, são os indicadores de crimes violentos. Se analisarmos os homicídios, por exemplo, verificamos que são quase 60 mil assassinatos por ano. Essa carnificina, quase naturalizada, tem como vítimas, majoritariamente, negros, pobres e jovens. Esse perfil talvez mostre que o valor da vida humana em nosso país é diferente: a dignidade está relativizada pela classe social e não pela condição humana.
A despeito da implantação de um estado formalmente democrático, os direitos humanos ainda são violados e as políticas públicas voltadas para a ampliação da cidadania ainda são insuficientes. Se, formalmente, na Constituição de 1988, a cidadania está assegurada a todos os brasileiros, na prática ela só funciona para alguns. Sem dúvida existe um déficit de cidadania, isto é, uma situação de desequilíbrio entre os princípios de justiça, equidade e solidariedade. É ético que um cristão se acomode na inércia caracterizada pela passividade frente aos dilemas sociais?
A grande pergunta que se coloca diante do drama da desigualdade no Brasil (principalmente nesses tempos de governo que não tem compromissos com o povo, senão com um grupo elitizado e de privilegiados), refere-se à possibilidade de construir saídas que consigam reverter uma situação de letargia social e política frente às injustiças, de forma a viabilizar a edificação de um país com requisitos mínimos de civilidade em seus padrões societários: uma nação capaz de manter e ampliar políticas que promovam a diminuição da desigualdade social; um governo que leve em consideração os valores éticos de solidariedade, democracia, liberdade e justiça; enfim, um país com mecanismos reais e concretos de reelaboração da cidadania plena e capaz de potencializar a capacidade participativa da sociedade.
Os cristãos têm um papel fundamental a cumprir nesse contexto, exigindo, ao lado dos organismos da sociedade civil, que o Estado reassuma o papel central de agente de promoção, defesa, proteção e reparação dos direitos humanos. Ademais, em consequência dessa ação, os cristãos podem somar-se aos esforços dos grupos organizados da sociedade no sentido de auxiliar os gestores públicos na consecução das condições legais, políticas e orçamentárias para implementar as políticas públicas baseadas na ampliação dos direitos de cidadania.
Não basta, pois, que, como cidadãos, manifestemos boas intenções. Como diz o adágio popular, “de boas intenções o inferno está cheio”. Por outro lado, no plano do Estado, é necessário que se estruture para além de um marco legal, um pacto social que nos possibilite, como Nação, avançar na construção de uma cultura de direitos humanos, ou seja, de uma sociedade onde a cidadania não seja um mero adjetivo, mas uma realidade. 
Os cristãos não deveriam ficar alheios, ou coniventes, nesse momento político atual, no qual há evidentes processos de desconstrução da cidadania em nosso país, patrocinados justamente pelos poderes que deveriam promover a equidade social. 
Tratar de direitos humanos como se fossem um apêndice da vida e da estrutura social e política é cinismo sob o ponto de vista ético; é desumano, sob o ponto de vista cristão.
Publicado originalmente no Portal Dom Total, em 09.12.16.