segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

MARILENA CHAUI: VIOLÊNCIA E AUTORITARISMO SÃO AS MARCAS DA SOCIEDADE BRASILEIRA

Da Revista Cult

Desde o início dos anos 1980, Marilena Chaui tem proposto como chave de leitura de nosso país a ideia de que a sociedade brasileira é autoritária e violenta. Em obras como Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas, de 1981 (que será reeditado em seus Escritos, publicados pela Editora Autêntica), a filósofa contraria a imagem de uma cultura nacional pretensamente formada pelo acolhimento recíproco e pela cordialidade, revelando estruturas enraizadas de hierarquização e de sedução pela autoridade.

Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como individualmente violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e republicano é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações de poder.

Essa chave de leitura permanece, aos olhos de Marilena Chaui, extremamente atual para analisar o momento vivido pelo Brasil. Apesar dos percalços éticos, políticos e econômicos das duas últimas décadas, o país tenta entrar na Modernidade, que exige necessariamente inclusão social. Essa mesma inclusão, no entanto, desperta resistência. Se os auxílios financeiros para inserção econômica, distribuídos por países como Alemanha e França às populações mais pobres, são considerados por lá sinais de desenvolvimento, o Bolsa Família, no Brasil, é chamado de assistencialismo e de estratégia eleitoreira. Se a ação do Estado no controle do mercado é vista como necessária em outras partes do mundo, aqui ela é chamada de “ameaça comunista” e de inchaço da máquina pública.

O problema é que ainda não sabemos muito bem o que é o espaço público, porque não agimos como sujeitos, transferindo a responsabilidade pela construção da cidadania aos aparelhos de governo. Focamo-nos nas salvações que podem vir do poder e não obrigamos o poder público a representar de fato todos os setores sociais. O resultado dessa prática (ou ausência de prática) é o fortalecimento da violência e do autoritarismo, que atualmente se intensificam nas formas de controle policial, por exemplo, e a falta de pensamento no jogo político (não somente de direita, mas também de esquerda!).
Chamar atenção para essa dinâmica perversa é o que faz Marilena Chaui na entrevista que concedeu à CULT.

CULT: Como a senhora vê a situação política vivida pelo Brasil hoje?
Marilena Chaui: É uma situação gravíssima. É gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita e protofascista que está tomando conta da pauta política. Quando examinamos os pontos da pauta política discutidos de outubro de 2015 até agora, vemos o poder dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia. É uma regressão sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva, antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo reacionário protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe média urbana brasileira veio à tona e pegou as esquerdas completamente desprevenidas. As esquerdas tinham pautas como o antineoliberalismo, os direitos, a questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do Estado Islâmico, enfim, pautas voltadas aos problemas da democracia e do socialismo, e foi pega completamente despreparada por uma onda de extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960. É uma ameaça de golpe para reverter o processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos anos e sustentada pela pauta “boi, bala e Bíblia”. Aliás, a atuação de grupos religiosos é muito preocupante e vai além de uma questão propriamente política, porque, apesar de se manifestar na representação política, ela é uma questão socioeconômica: é a maneira como as igrejas evangélicas interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal.

CULT: Como se dá essa interiorização e reformulação evangélica da concepção neoliberal?
Marilena: Uma das características do neoliberalismo é a maneira como ele concebe o indivíduo, que não é entendido nem como parte de uma classe social, nem como ser em formação que vai se relacionar com o restante da sociedade. O indivíduo não é pensado nem como átomo nem como classe, mas como um investimento. Na medida em que um indivíduo é um investimento, o salário não é entendido como salário, mas como provento, como renda. Então, o ser humano é programado para ser rendoso e rentável. A família, a escola e o emprego passam a ter por função a rentabilidade do indivíduo, porque ele é um investimento. As igrejas evangélicas se apropriam desse ideário e o desenvolvem por meio de uma teologia – a teologia da prosperidade, que considera cada indivíduo justamente como um investimento ou uma empresa. Ele não é um empresário, mas uma empresa, e, como tal, precisa de uma série de condições para funcionar. Então as igrejas, além de convencerem a pessoa de que ela nasceu para vencer na vida e ser rentável, levam a ética calvinista ao máximo, explorando a crença de que ser rentável é um sinal de salvação, porque é isso que Deus espera.
Como se sabe, a maior parte das igrejas evangélicas possui franquia. Elas se espalham no campo da produção e do comércio e empregam todas as pessoas, fazendo com que elas provem que Deus as escolheu e que são um investimento rendoso. Pouco a pouco, as pessoas se apropriam da franquia; depois abrem outra e assim por diante. Há, portanto, um fenômeno de fortalecimento da ideologia neoliberal e das concepções conservadoras da classe média por meio da maneira como as igrejas evangélicas incorporam o neoliberalismo, com uma teologia para isso. Se você juntar o conservadorismo com o reacionarismo da classe média urbana e a presença avassaladora das igrejas evangélicas, além de toda a discussão sobre a vida no campo (a reforma agrária), vai entender por que politicamente se exprime, de modo efetivo, nos grupos do “boi, bala e Bíblia”, a pauta ultraconservadora que está aí.
A minha preocupação é, evidentemente, por um lado, denunciar de todas as maneiras possíveis a tentativa de golpe. Por outro, assegurar que governos voltados para os direitos sociais (e, desse ponto de vista, com uma pauta antineoliberal) sejam garantidos. Ao lado disso, a minha preocupação é com a sociedade, ou seja, com a ideologia. Depois de muito tempo, lá retorno eu à questão da ideologia. É preciso refletir sobre como erguer um dique para impedir a entrada avassaladora da ideologia neoliberal na sua forma teológica. Estamos vivendo um momento que vai fazer 1964 parecer uma coisa muito simples. 1964 estava inserido na Guerra Fria, no poderio dos Estados Unidos sobre os países da América Latina. Por causa do exemplo de Cuba, acreditava-se ser possível uma revolução socialista. Os componentes eram muito óbvios. Havia uma clareza na compreensão do momento vivido. Agora não há clareza. Tudo é muito difuso, muito opaco, obscuro, porque há fundo teológico.

CULT: A senhora acredita em um golpe militar?
Marilena: Está fora de questão.

CULT: O que pode acontecer?
Marilena: Se as coisas continuarem no ritmo em que estão e se o golpe dos 3B se concretizar, haverá uma efervescência social enorme, porque todos aqueles cujos direitos foram garantidos pelo Estado depois da era militar terão esses mesmos direitos cortados. E haverá ameaças: ameaça no campo, ameaça urbana, uma situação de vigilância e intimidação em todas as instituições. Isso provocará reação, uma resposta social enorme. É um risco que o PSDB não quer correr porque ele não tem condição de conter essas reações; e esse risco também não interessa ao PMDB, porque o partido está dividido. Então, no fim das contas, as forças que poderiam produzir um golpe não têm mais interesse que ele aconteça, porque a convulsão que ele vai provocar, à direita e à esquerda, não pode ser controlada nem pelo PSDB e nem pelo PMDB. Eles não têm quadros e condições institucionais para controlar convulsões sociais.

CULT: E o que daria as condições de governabilidade nesse possível contexto?
Marilena: Se houver golpe, a prática será a pura intimidação e a violência. Aquilo que a gente viu com os Atos Institucionais. Um Ato Institucional poderia concretizar, por meio da polícia – já que o Exército não se misturará –, a intimidação e a violência.

CULT: Pensando na materialização da violência, que espaço resta ao diálogo nesse momento condicionado à truculência?
Marilena: Nenhum. Vamos tomar o caso de São Paulo como exemplo. Há uma coisa muito interessante: quase ninguém se dá conta de que o estado de São Paulo – o único estado realmente capitalista no Brasil, já que os outros são semicapitalistas – é governado desde o final dos anos 1980 por um único partido político. Economicamente, São Paulo é um estado capitalista, mas politicamente é uma capitania hereditária. Parece haver um contrassenso entre o conservadorismo político e o desenvolvimento econômico. Mas é só na aparência que isso é contraditório, porque o conservadorismo político é a base de sustentação desse tipo de desenvolvimento capitalista. Vejam o que acontece com o governador. Há o problema da água, da luz, das escolas, da saúde – escândalos –, mas nada gruda no Geraldo Alckmin. Escorre. Isso acontece porque ele representa o tipo de poder político do estado de São Paulo: forte e autoritário. A juventude sai às ruas e faz uma manifestação? Polícia nos jovens, bate neles! O pessoal do transporte sai para se manifestar? Polícia neles, bate neles! Isso é referendado pela sociedade paulista, não só a paulistana, que está de acordo e espera que isso seja feito. Esperaríamos uma reação profunda, mas não é o que acontece. Eu me lembro de ter visto pela televisão estudantes algemados durante a ocupação das escolas. Eu disse, “Meu Deus, não se algema estudante!”. Eles não só foram algemados, como isso foi dado pela mídia como algo natural; e pela sociedade, como uma coisa necessária.
Então nós temos a consagração, da maneira menos retórica possível, da violência estrutural da sociedade brasileira. Não uma violência pontual, de modo que possamos falar em “ondas de violência”. Não. Há uma violência estruturante. É a estruturação violenta de uma sociedade hierárquica, vertical, oligárquica, conservadora, que defende os privilégios contra qualquer forma de direitos; é a mesma que dá a sustentação ideológica e política para a manifestação da violência governamental. Essa violência governamental é a expressão da violência não só paulista e paulistana, mas brasileira, e é ela que legitima essas ações. Se consideramos todo o ideário da burguesia e da alta classe média brasileira, vemos que qualquer contestação, qualquer revolta é uma “crise”. A noção de crise está identificada por essa classe com a ideia de desordem e perigo. Ora, diante da desordem e do perigo, o que é que se pede? Repressão. Cada vez que há uma luta por direitos contra privilégios, essa luta é vista como violenta e precisa ser reprimida. Há, portanto, uma inversão ideológica fantástica no Brasil: a violência é vista como ordem.

CULT: A senhora ainda acredita na desobediência civil?
Marilena: Eu acho necessária! Outro dia um colega me disse: “Marilena, você tem que levar em conta que a juventude que tinha 13, 14 anos em 2000 só conhece o PT como governo, não conhece a história do PT como movimento social e sindical, como presença contestadora e de desobediência civil no interior da ordem brasileira”. Isso quer dizer que a figura do PT se apagou e sobrou somente esse pedaço, esse triste pedaço que é o PT no aparelho de Estado.
Seria preciso lembrar, por exemplo, a criação do CEDEC [Centro de Estudos de Cultura Contemporânea]. Existia no Brasil o CEBRAP [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], que era dirigido pelo Fernando Henrique Cardoso. O Francisco Weffort, em 1976, disse que o CEBRAP era muito economicista e que precisávamos de um centro que pensasse as questões políticas e sociais. Reunimo-nos, então, o Francisco Weffort, o José Guilhon de Albuquerque, o José Álvaro Moisés, o Lúcio Kowarick e eu, criamos o CEDEC. A Sociologia, a Ciência Política e a História explicavam (e ainda explicam) o Brasil sempre a partir do aparelho de Estado. A História do Brasil era contada como história das mudanças no aparelho de Estado e das decisões tomadas pelo Estado. O Estado aparecia como o sujeito histórico, político e econômico, como se não existisse uma sociedade nem uma luta de classes. O CEDEC propôs inverter esse processo e lembrar que a sociedade brasileira existe, com os movimentos sociais e populares. Era o momento em que surgia o Movimento dos Sem Terra, o movimento feminista, o movimento sindical. Os movimentos começavam a se organizar; os sindicatos criam as comissões de fábrica no ABC e fazem as greves. É desse momento histórico que nasce o PT. Nós surgimos da ideia de que a história do Brasil e a sociedade brasileira não são feitas pelo aparelho de Estado e de que o Estado não é o sujeito social. Existe a luta de classes e é no interior do conflito que se criam as bases da democracia. O PT se originou, então, de atos de desobediência civil. Mas isso os jovens não sabem, porque eles só conhecem o PT como um partido institucionalmente posto, envolvido nas questões do Estado e governamentais, como se isso desse conta de toda a história do PT.
É isso que permite entender também por que jovens de esquerda querem outras opções, em vez de ligar-se ao PT. Proliferam os pequenos partidos de esquerda porque toda a história social e política ficou encolhida nesses últimos quinze anos. Isso também explica o quanto nós do PT ficamos despreparados na hora em que surgiu o atual golpe. Imagine o PT do qual eu venho, o PT dos anos 1980 e 1990… Ele não teria aceitado minimamente aquilo que iria desencadear o golpe. Ele nem permitiria que isso sequer aflorasse. Muito do que estamos vendo em termos de pauta conservadora na política está ligado ao encolhimento de tudo aquilo que representa uma pauta de esquerda.

CULT: A esquerda tornou-se obediente?
Marilena: Sim, claro. O PT ficou desarmado no momento em que teria de tomar uma posição pública e esclarecer as coisas. Agora, de um lado temos o Eduardo Cunha, com as igrejas evangélicas, e, do outro, o Alckmin, com a Opus Dei. É demais da conta! Eu venho de uma tradição em que a grande aliança era sustentada pela Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Ver os cristãos perdidos entre os evangélicos e a Opus Dei é demais; é insuportável para a minha cabeça porque eu vi a outra experiência que o cristianismo é capaz de ter e que teve na América Latina inteira.

CULT: A senhora interpreta a frase “Meu partido é meu país”, comum nas manifestações de 2013, como a manifestação de um desejo de algo novo ou como uma frase conservadora?
Marilena: “Meu partido é meu país” é uma frase nazista. Ela nasceu na luta contra a social-democracia, sobretudo quando o nazismo se opõe à República de Weimar e leva a pensar que os partidos políticos roubam ou tomam para si as ações políticas que caberiam exclusivamente ao governante. O governante aparece, então, como o chefe. É dele que deve emanar, transcendentemente, toda a decisão política. Desse ponto de vista, se os partidos políticos usurpam uma função que não é deles, é preciso eliminá-los. Daí a ideia de que “meu partido é meu país”.

CULT: Falando de encolhimento da pauta de esquerda, como a senhora interpreta a ação de setores do movimento estudantil que consideram os docentes como inimigos ou representantes do capital? É delicado tocar nesse ponto, porque não se trata de ser contra o movimento estudantil. Mas entender a universidade como espaço de tensão entre estudantes, servidores (técnicos) e docentes não é também uma forma de violência ou de exclusão de diferenças?
Marilena: Há algo que marca com força a história da política de esquerda no Brasil: é o fato de que, periodicamente, vindos da baixa classe média ou da classe média, há grupos que se apropriam do marxismo e do leninismo e se apresentam como revolucionários. Na verdade, o encolhimento do espaço público e de tudo o que ele representa alimenta pequenas formas privatizadas do pensamento de esquerda, dando origem a pequenos movimentos e pequenos partidos. Não vou nomear nenhum deles, mas estou apontando para a origem deles, a maneira pela qual eles privatizam um ideário. Isso significa, em primeiro lugar, fazer com que esse ideário não apareça como um ideário em expansão, mas como um ideário de exclusão. Esses partidos e movimentos se fecham sobre si mesmos, porque a condição de sobrevivência deles está na recusa de qualquer inclusão e de qualquer ampliação. Eles se mantêm pela sua pequeneza e pelo fato de que eles excluem tudo o que não se restrinja a uma pauta mínima produzida por eles mesmos. É uma mescla da vulgata marxista, da vulgata leninista e do stalinismo puro, simples e cru. É mais do que uma coisa reacionária, é uma vertente totalitária. E é por essa maneira totalitária, privatizada e excludente de se organizar que esses grupos encaram todo o restante como inimigo que precisa ser destruído. O outro não é inimigo por causa disso ou daquilo. Ele é inimigo porque simplesmente é outro. É a mesma lógica de Carl Schmitt, incorporada por grupos pretensamente de esquerda.
  
CULT: A senhora sabe que um curso seu, de leitura rigorosa da Ética de Espinosa, seria hoje considerado, em alguns contextos, como um trabalho burguês, não sabe?
Marilena: Eu sei!

CULT: Então, por que a cultura erudita ou o pensamento é associada por alguns movimentos a uma prática burguesa?
Marilena: O pensamento é associado à prática burguesa porque esses movimentos operam pela ausência de pensamento. Estamos em uma situação aterradora: do lado da direita e da esquerda há ausência de pensamento. Você conversa com alguém da direita e vê que ele é capaz de dizer quatro frases contraditórias e sem perceber as contradições. Você conversa com alguém da extrema esquerda e vê o totalitarismo que também opera com a ausência do pensamento. Então nós estamos ensanduichados entre duas maneiras de recusar o pensamento. Lá onde o pensamento estiver se exercendo, ele receberá mil e um nomes, e como para esse pessoal de esquerda xingar é chamar de burguês, eles tratam a cultura erudita como coisa de burguês. Mas se você perguntar o que é a burguesia e o que é o capital, se pedir uma explicação, verá que eles não sabem muita coisa; apenas repetem um chavão. Nesses grupos há uma coisa muito parecida com o que acontece nas igrejas evangélicas: uma teologia e uma lavagem cerebral. É um esvaziamento de qualquer capacidade de pensamento. Não é por acaso que dos dois lados o exercício da violência é igual, e vai da violência verbal à física, à exigência de sangue. Quando o João Grandino Rodas foi reitor da USP e houve a segunda ocupação da reitoria, nós, professores, fomos negociar com os alunos e com a própria reitoria, e os alunos finalmente aceitaram desocupar. Veio então um membro desses pequenos partidos de esquerda e disse: “Ninguém sai; nós queremos ver sangue”. Por que ele queria ver sangue? Porque ele achava que ganharia poder pela destruição física do outro – uma destruição que não é nem política, nem social.

CULT: Há um encolhimento da capacidade humana de refletir e fazer escolhas ponderadas? Tanto do lado da polícia como do de certos grupos de esquerda…
Marilena: Eu entendo isso com Espinosa. O que há nos seres humanos? Há paixões. A maneira como entendemos o mundo, a nós mesmos e aos outros é dada pela maneira como o mundo e os outros nos afetam. Eles causam em nós a sensação de perigo ou de aumento da nossa capacidade de viver. Se tudo o que se passa em mim é produzido pela maneira como o que está fora age sobre mim, eu sou passiva e todos os meus sentimentos são apenas paixões: o amor, a esperança, o ciúme, a misericórdia, a honra, a glória etc. O que eu sinto é pura e simplesmente uma reação passiva ao que vem de fora.
Ao contrário, se eu tenho força interior para saber que eu posso ser a causa dos meus sentimentos e, que se sinto raiva de você, não é por sua causa, mas por aquilo que eu sinto com relação ao que eu penso a seu respeito, então me vejo como a causa da raiva que sinto por você, em função do modo como eu penso em você ou percebo você. A partir do momento em que eu sou capaz de me reconhecer como causa dos meus sentimentos, eu sou ativa e descubro que não tenho de responsabilizar os outros por aquilo que se passa em mim. Se eu for passiva, nunca serei livre; tudo o que eu fizer será determinado pelo que os outros exigem de mim; e, mesmo que eles não façam nenhuma exigência, eu sinto como uma exigência. Então só obedeço ao que eu imagino que seja o desejo do outro. Ao contrário, se é o meu desejo que determina o que eu vou fazer e como vou fazer, eu sou livre.
Dessa perspectiva, o que é a violência? É aquilo que se passa inteiramente no campo das paixões, porque é lá que os desejos entram em conflito. Se eu me entregar a elas, faço o meu desejo valer destruindo o desejo do outro; e o outro faz a mesma coisa: ele acha que, para existir, deve dobrar o meu desejo, deve se apropriar de mim e me dominar física e psicologicamente, pela manipulação dos desejos e sentimentos, pela ideologia, por uma série de manipulações sociais, amorosas etc. Pense no caso da violência policial: é a força física pura e simples. Um policial não é capaz de tomar uma decisão em que ele enfrentaria uma ordem recebida, dizendo, por exemplo: “Puxa vida, um filho meu poderia estar entre os manifestantes…”. Mas isso não acontece só porque ele recebeu uma ordem. É porque essa ordem constitui o modo como ele é, pensa e opera. Ele encarna essa ordem, é o portador dela e opera em um contexto de pura paixão. Essa é uma análise puramente psicológica. É preciso pensar também em termos sociais: o policial encarna a repressão; ele a realiza em nome da ordem, da paz e da segurança. Psicologicamente, ele não é capaz de deliberar sobre como poderia agir diante de manifestantes que gritam por direitos e denunciam privilégios, porque ele é, naquele instante, pura paixão. Social e institucionalmente, ele só existe como policial porque recebe, cumpre ou dá uma ordem. A polícia existe, então, como instituição social garantidora de determinados privilégios de classe. Trata-se do embate entre o direito e o privilégio. Esse embate se realiza, na sociedade brasileira, por meio da violência.

CULT: A senhora diria que o movimento de ocupação das escolas foi um bom uso político das paixões?
Marilena: Um excelente uso…

CULT:  E que diferença a senhora vê entre esse movimento e o das  ruas de 2013?
Marilena: Em 2013, o movimento foi algo inesperado. Pouco antes das manifestações, eu estava dando um seminário na faculdade e ouvi um tambor pelos corredores. Me falaram: “É o movimento do Passe Livre, que está convocando uma reunião”. Havia só uns 30, 40 gatos pingados. Até que eles puseram nas redes sociais e aconteceu aquela movimentação toda. Mas na primeira manifestação tinha de tudo. Era um evento com a motivação mais diversa possível. Não estou dizendo que era um movimento totalmente despolitizado, mas que tinha um pequeno conteúdo determinado pelo grupo do Passe Livre, ao qual se juntaram outras formas de descontentamento. Foi estarrecedor ver que, na segunda manifestação, quando a juventude começou a comemorar, levando bandeiras do PT, do PSTU, do PSol, do movimento dos sem teto, apareceram jovens embrulhados na bandeira do Brasil, atacando, espancando e ensaguentando os manifestantes de esquerda. Assim, em lugar do conflito democrático, passou-se ao combate violento e à agressão ao adversário. Mas algo curioso aconteceu: construiu-se um sentido político para toda aquela movimentação. A própria mídia, que falava dos “vândalos” das primeiras manifestações, depois passou a falar de “manifestantes”. Houve uma construção política de uma manifestação que não existiu realmente como algo político. Ninguém prestou atenção nisso! Eu procurei falar do assunto e fui violentamente agredida, mesmo pela esquerda. Disseram que eu não tinha entendido o momento histórico. Mas fizeram mais: pegaram a afirmação que eu fiz sobre o caráter fascista dos jovens vestidos com a bandeira e disseram que eu havia considerado todas as manifestações como fascistas. Na época das eleições, o Fernando Gabeira chegou a escrever um artigo de uma página inteira no jornal O Globo contra mim, afirmando que, na minha opinião, a presença do povo na rua era fascismo. O que eu tinha dito era: houve um momento fascista nessas manifestações e ninguém está prestando atenção nisso. Aí, quando começaram os panelaços de 2015, ficou evidente o que eu queria dizer. O que veio a seguir? Veio a demanda de retorno da ditadura, a presença da TFP [Grupo de extrema direita intitulado Tradição, Família e Propriedade] e a afirmação da pauta conservadora dos 3Bs.

CULT: Na verdade, em 2013, a senhora previu, em entrevista à CULT, que no Brasil iriam acontecer panelaços parecidos com os da Argentina.
Marilena: Fui a única. Eu não sei por que as pessoas – algumas delas inclusive feridas por 1964 e 1968 muito mais do que eu, como o próprio Gabeira – não se deram conta do que estava vindo. Não sei se eu conseguia ver porque presto muita atenção no Brasil como uma sociedade violenta e autoritária… Não sei se é por isso, mas eu fiquei muito surpresa ao perceber que muita gente de esquerda não percebia o que estava se montando e que junho de 2013 não era maio de 1968. Maio de 1968 foi a ocupação das escolas agora. Isso foi maio de 68.

CULT: Por quê?
Marilena: Porque, no caso da ocupação das escolas, há, em primeiro lugar, um movimento de inclusão e ampliação. A marca dos movimentos realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação. Em segundo lugar, pelo fato de que ele foi se dando à maneira do que, no meu tempo, se conhecia como “greve pipoca”. Em uma fábrica, por exemplo, às seis horas da manhã, um setor para por 40 minutos. Durante o tempo em que ele parou, outros três ou quatro setores não conseguiram funcionar. Então, aquele primeiro setor volta a funcionar, mas, daí, em outra ponta, outro setor para por 40 minutos. Tudo o que está em volta não funciona. Assim, sobretudo quando a greve era proibida, ia pipocando paralisação, de modo que as instituições (uma fábrica, uma escola etc.), mesmo sem parar, ficavam inteirinhas paralisadas. Nos lugares estratégicos pipocava a paralisação. Foi assim que a ocupação das escolas seguiu o princípio da greve pipoca. Quando os administradores da educação achavam que iam resolver a ocupação de uma escola, começava na outra; quando eles iam resolver nessa outra, começava em outra. Ou seja, ela foi pipocando até o instante em que parou tudo.
Além disso, a maior diferença entre a ocupação das escolas e o movimento de 2013 é que a paralisação aconteceu no interior de uma instituição pública e social para a garantia do caráter público dessa instituição. Não foi um evento em favor disso ou daquilo; foi uma ação coletiva de afirmação de princípios políticos e sociais. Os dois grandes princípios foram, primeiro, o princípio republicano da educação – a educação é pública; segundo, o princípio democrático da educação – a educação é um direito. A ação dos estudantes e professores foi tão significativa porque eles disseram: “O espaço da escola é nosso. Somos nós, alunos e professores, que somos a escola”. Então, foi a “integração de posse” das escolas pelos alunos e professores. É gigantesco o fato de alguém no Brasil pensar que algo público é nosso! É diferente das ocupações de reitorias, em que os estudantes dizem: “Nós somos contra isso que o reitor fez…” Agora, os estudantes disseram: “Esse lugar, essa instituição é pública; ela é nossa e não vamos sair daqui”. Eles se posicionaram contra algo típico do neoliberalismo – posto em prática, sob certos aspectos, no decorrer da Ditadura e, depois, explicitamente nos governos Fernando Henrique Cardoso: a ideia de que um direito social e político é aquilo que pode ser transformado em serviço e comprado no mercado. As pessoas falam das privatizações como se elas fossem apenas a da Vale e das grandes empresas… É isso também, mas o núcleo da privatização está em outro lugar, está na transformação de um direito social em serviço que se compra e vende no mercado. Isso foi feito com a educação, com a saúde, com o transporte, com todos os direitos sociais. E, em São Paulo, com grandes baterias, isso foi feito. Os estudantes mostraram que a escola pública não é mercadoria; fizeram uma ação republicana e democrática de um alcance incrível. Eu só vi algo parecido, em termos de configuração social no Brasil, nas greves de 1978 e 1979 no ABC. Por quê? Não pela repercussão, mas pelo sentido que elas tiveram.
Pensem no fato de que, durante as ocupações, só foram chamados para dar entrevistas cientistas políticos, sociólogos, historiadores, mas nenhum professor ou estudante das escolas ocupadas! Nenhum professor ou estudante foi considerado capaz de explicar o que se passava. Só se ouviu gente que estava fora das salas de aula e que vinha explicar falando disparates. Quando a mídia entrevistava algum estudante, só perguntava coisas do tipo: “O que você sente? Do que você gosta e não gosta? O que você quer?”. Ou seja, ficava no nível puro e simples do sentimento, não do pensamento. Apesar disso, a palavra deles chegou à sociedade por outras vias; e isso mostra o tamanho da ação que eles realizaram. Houve uma solidariedade que há muitos e muitos anos não se via no estado de São Paulo inteiro. Por fim, as ocupações deixaram claro o motivo de fechar as escolas. Em um país como o nosso, não se fecha escola; se abre. Mas o governador de São Paulo queria os terrenos para uma exploração imobiliária gigantesca. E para fazer o quê? Para fazer fundo de campanha. É claro que agora o Geraldo Alckmin vai tentar fragmentar tudo e implantar devagarzinho o seu projeto. Hoje essa escola, amanhã aquela. Não sei se ele vai conseguir, mas vai tentar. Como o Ensino Fundamental é praticamente todo municipal, o Ensino Médio é estadual e, de um modo geral, o Ensino Universitário é responsabilidade federal, essas instâncias operam de modo fragmentado; e isso permite tentativas de reestruturação como as de São Paulo e de Goiás. De todo modo, os estudantes revelaram que a ideia de fechar uma escola não significava fechar uma escola, significava vender um terreno. Portanto, eles denunciaram o caráter corrupto da suposta política de reestruturação escolar.

CULT: Como a senhora vê o atual momento da economia brasileira?
Marilena: No primeiro ministério montado pela presidente Dilma, enfatizou-se, por um lado, a crise internacional em que o elemento financeiro é decisivo, e, por outro, o fato de haver, no Brasil, uma disputa entre a indústria, o comércio e o setor agrário. A Dilma pôs representantes desses setores no governo e deu a eles a responsabilidade de resolver o conflito. Um banqueiro junto com o agronegócio. Eles não resolveram. Não sei se a presidente foi maquiaveliana, mas ela parecia prever que eles fracassariam e que o fracasso mostraria para onde o barco deve ir. Então, o que ela está fazendo agora? Ao chamar o principal assessor do Guido Mantega, ela sinaliza claramente que vai retomar a política de desenvolvimento e crescimento econômico, a começar pelo aumento do salário mínimo.
É claro que há uma crise internacional gigantesca e que vai pegar os membros do BRIC. Já pegou a China, está pegando a Índia; a situação vai complicar. Mas, de todo modo, a opção agora é a do desenvolvimento. Sem desenvolvimento e crescimento não se faz, efetivamente, a política dos programas sociais. Se não há mudança no mercado de trabalho com aumento do emprego e da escolaridade, a manutenção dos programas sociais vira assistência.

CULT: Como a senhora entende a crítica da classe média alta e de alguns economistas que afirmam ser o Brasil um país protecionista e que faz pouco investimento?  
Marilena: O grito contra o protecionismo é o grito da direita. São os republicanos nos EUA, o Le Pen na França, o pessoal da Alemanha. O que eles entendem por fim do protecionismo? Um “liberou geral”, um capitalismo “adulto”. A ideia de que o Estado intervenha é o que eles chamam de protecionismo. Mas se o Estado não limitar a ação do capital, cai-se na barbárie. Com relação ao investimento, a gente sabe que o Estado brasileiro investe. Há dados inacreditáveis. Na verdade, não são inacreditáveis se conhecermos bem a burguesia brasileira. Vejam: o BNDES liberou todos os recursos possíveis para os empresários brasileiros, mas eles não investiram; eles puseram tudo nos bancos, nas ilhas Cayman, em Miami, onde quiseram. Em vez de investir no país, o dinheiro do BNDES foi parar no setor financeiro fora do Brasil. E daí se diz que o país não investe! Eu adoro a burguesia brasileira. Quando ela disse “quero café”, foi ótimo. No mundo inteiro, quem vai plantar café constrói estrada de ferro para levar o café até os pontos de distribuição. Aqui no Brasil, porém, é o Estado que tem de construir estradas de ferro. A burguesia só plantava o café. Se ela precisa de porto, no mundo inteiro ela constrói portos. Aqui não. É o Estado que tem de construir o porto para a burguesia mandar o café. A burguesia quer industrializar, mas é o Estado que tem de fornecer eletricidade. A burguesia brasileira mama nas tetas do Estado desde que ela nasceu. E tem a ousadia de se colocar contra os programas sociais, quando ela depena o Estado sistematicamente.

CULT: Recentemente, a senhora afirmou que o Bolsa Família fez pelas mulheres o que seis décadas de feminismo no mundo não conseguiu…
Marilena: Esses dados estão consagrados em um livro feito pela Walquíria Leão Rego sobre o Bolsa Família (Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania, em coautoria com Alessandro Pinzani, Editora da UNESP). O que ela mostrou? Primeira coisa: como o dinheiro vai para as mulheres, elas foram transformadas em chefes de família. Na tradição brasileira, o dinheiro costuma ir para o homem, e só uma parte vai para a família; a outra parte vai para os gastos pessoais dele. Com o Bolsa Família, quebra-se o monopólio masculino sobre a administração da casa. Em segundo lugar, as mulheres passaram a cuidar mais de si mesmas. Juntando o dinheiro do Bolsa Família com os serviços do SUS, por exemplo, elas fizeram diminuir o número de doenças femininas. Finalmente, elas têm participado mais de atividades públicas, filiaram-se a movimentos sociais e criaram cooperativas. Há uma quantidade enorme de cooperativas criadas pelas mulheres com o que sobra do uso do dinheiro do Bolsa Família.

CULT: Qual seria o papel do Estado na promoção da igualdade e dos direitos das mulheres?
Marilena: A função do Estado não é a de promover. Ele tem de reconhecer os direitos das mulheres e decretá-los. Sua função é consignar na lei, institucionalmente, aquilo que os movimentos das mulheres exigem e produzem, mas essa ação é social. A política se faz pela sociedade. O Estado brasileiro precisa parar de agir como se não houvesse uma sociedade. A ele cabe salvaguardar tudo o que há de republicano e democrático nas ações políticas da própria sociedade. Mais do que promover, o Estado tem de garantir.

Juvenal Savian Filho é professor de História da Filosofia da UNIFESP
Laís Modelli é repórter da revista CULT


Fonte: REVISTA CULT

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Índios e campesinos são as principais vítimas de violações de direitos no Brasil

A violência no campo foi um dos pontos negativos registrados no Brasil pelo relatório anual da Anistia Internacional


(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil )


Por Flávia Villela, Da Agência Brasil
Indígenas e defensores de direitos humanos nas regiões rurais foram os grupos que mais sofreram violações de direitos humanos no Brasil em 2015, segundo o diretor executivo da Anistia Internacional, Atila Roque. A entidade divulgou hoje (23) seu relatório O Estado dos Direitos Humanos no Mundo – 2015.
 
 

“Eles são extremamente invisibilizados neste país. Vivemos uma situação de enorme conflito no campo brasileiro, de grande patamar de violência, inclusive letal, contra defensores de direitos humanos, lideranças indígenas, camponeses, quilombolas, que confrontam interesses de toda ordem, desde grandes proprietários a grandes empresas mineradoras ou do agronegócio, que acabam fazendo uso da violência para impor seus interesses e isso passa praticamente desapercebido pela sociedade”.

A violência no campo foi um dos pontos negativos registrados no Brasil pelo relatório anual da organização.
De acordo com a Anistia Internacional, as populações indígenas continuaram na longa espera por demarcação de suas terras indígenas no ano passado, “apesar de o governo federal contar com a autoridade legal e os meios financeiros para pôr em prática o processo”, aponta o documento.
Os ataques contra indígenas também persistiram impunemente em 2015, segundo o relatório. Um dos casos relatados no documento foi o ataque à comunidade Ñanderú Marangatú, no município de Antonio João, no Mato Grosso do Sul, no dia 29 de agosto do ano passado. Fazendeiros atacaram a comunidade, mataram um homem e deixaram mulheres e crianças feridas. Nenhuma investigação foi aberta sobre o ataque nem foram tomadas quaisquer medidas para proteger a comunidade contra novos atos de violência, de acordo com o relatório. 
PEC 215
Segundo o diretor executivo da Anistia, a piora da situação dos direitos humanos no campo está associada a retrocessos na esfera legislativa. “Como vemos, por exemplo, a PEC 215 [proposta de emenda à Constituição], que altera completamente a demarcação de terras, com grande perda para as populações indígenas e quilombolas e tradicionais”.
A PEC transfere do Executivo para o Congresso Nacional a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. Além disso, a proposta proíbe a ampliação de áreas já demarcadas, entre outros.
LEIA O RELATÓRIO COMPLETO DA ANISTIA INTERNACIONAL, CLICANDO AQUI

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Violência e crise


Desde 2013, presenciamos, não somente no Brasil, mas em várias partes do mundo, sinais de uma crise que, a rigor, pode apontar algo muito mais profundo, ou seja, o esgotamento do modelo capitalista. Esse esgotamento pode ser percebido em várias dimensões: colapsos do ecossistema, da política institucional, da economia baseada na especulação e no rentismo, das instituições tradicionais (família, escola, religiões)...

Quando analisamos a realidade sociopolítica brasileira nos últimos anos observamos que o modelo de desenvolvimento iniciado no governo Lula (baseado na exportação de commodities, no acesso facilitado ao crédito - e consequente endividamento popular em grande escala -, no consumo de massa - puxado por uma descomunal e caótica expansão urbana) só foi possível pelo poder de compra do mercado chinês, que subverteu todo o metabolismo do capitalismo global. Dito de outra forma, a circulação desenfreada e sem lastro de dinheiro foi a tábua de salvação do capitalismo na última década.

O lulismo teve o mérito de ampliar a cidadania, sempre altamente regulada no Brasil. Mas, apresentou algumas desventuras: por exemplo, não convidou a classe média para o banquete. Paradoxalmente, os mais ricos e os pobres foram os grandes beneficiários das políticas nos últimos anos. Nunca os bancos lucraram tanto; nunca os pobres tiveram tantas oportunidades.

Thomas Piketty, autor de “O capital no século XXI”, numa entrevista recente, demostrou que o foco das tensões sociais mundo afora está relacionado com a perda patrimonial da classe média, o que pode explicar, também, o crescimento da direita e do egoísmo social (não somente no Brasil). Segundo Piketty, na década de 1970, a classe média possuía cerca de 30% do patrimônio total. Hoje está mais próximo de 25%. Ao mesmo tempo, observa-se um aumento na concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos. (Segundo o IBGE, os 10% mais ricos no Brasil concentram 42% da renda nacional). Essa perda de posição da classe média, diz Piketty, poderia levar esse segmento para a extrema-direita: “quando não conseguimos resolver os problemas sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro: trabalhadores, imigrantes, gregos preguiçosos, etc.”.

É importante analisar o fato de parte da classe média brasileira, historicamente acostumada com privilégios e não com direitos, bandeou para um discurso e prática que beiram o radicalismo.  Ao invés de usar seu poderio político para lutar por justiça social e equidade, ou seja, contra a concentração de renda nas mãos de poucos, segmentos da classe média direcionam seu discurso odioso para atacar as conquistas sociais dos últimos anos; ou para agredir os pobres e aqueles políticos e partidos que representariam tais extratos sociais.


A violência, que sempre determinou a “ordem” das relações sociais no Brasil, tornou-se o recurso utilizado em doses cavalares por setores da classe média e da elite conservadora que tentam reposicionar-se num cenário de disputas reais e simbólicas.  Não nos enganemos: a paz dos túmulos não existe mais. Dito de outra maneira, não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios historicamente acumulados por parcelas pequenas da sociedade brasileira. Não é possível alcançar a paz sem perder nada.

Outro problema político vergonhoso, camuflado nesse cenário de crise, é a intolerância, o racismo, o preconceito – principalmente de matriz socioeconômica -, o fascismo disfarçado de nacionalismo. Esses "demônios" saíram do armário (porque lá sempre estiveram) e seus adeptos querem se impor, afrontando a democracia.


O processo civilizatório não deixa dúvidas: a conquista e ampliação de direitos, mesmo lenta e gradual, são irreversíveis em qualquer sociedade minimamente democrática e plural.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A banalização da vida no Brasil

Nossa cultura punitiva, repressiva e pouco vocacionada para a proteção da vida, principalmente da vida dos grupos mais vulneráveis, invisibiliza e naturaliza essa carnificina. E, quando esporadicamente o problema aparece na agenda pública, principalmente em ocasiões propícias para a exploração seletiva do fenômeno, buscam-se soluções draconianas: recrudescimento da legislação penal; mais aparato repressivo; adensamento das prisões. Se essas medidas resolvessem, o Brasil seria um oásis de paz e prosperidade.


Fonte:
Título: A sociedade incapaz
Veículo: O Tempo - Belo Horizonte - MG - Tiragem:49273
Caderno: 1º Caderno - Página: 19
Data Publicação: 24-02-2016 - 382cm²
Link direto: http://clipping.ideiafixa.com.br/site/clippingDiario.php?clienteId=81&noticiaId=406514&access=e43d7b3ff848e20552ae6992c2d62f9e 

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A VIAGEM DO PAPA AO MÉXICO E O SILÊNCIO DA MÍDIA E DOS PODEROSOS

Nesta semana, pouco vimos e ouvimos falar da viagem do Papa Francisco ao México. Francisco tem incomodado por demais os poderosos, com gestos, palavras e ações. E a mídia, serviçal dos "donos do mundo", começa a boicotar, de variadas formas, o Papa que prega, sem temor, que um mundo melhor só é possível se superarmos os abismos que separam os poucos ricos e opulentos dos bilhões de pobres, excluídos; "os descartáveis" do capitalismo concentrador de renda e riqueza. 

Nessa viagem, a começar pela passagem por Cuba para o encontro com o Patriarca de Moscou, Francisco explicitou mais uma vez, com palavras e gestos, o desejo de uma Igreja pobre com os pobres.

Centenas de pessoas juntam-se na fronteira do lado norte-americano do Rio Grande para ver o papa em Ciudad Juarez, do lado mexicanoForam muitos os momentos cheios de afeto vividos pelo e com o Papa. Num hospital, Francisco se emocionou com o canto da "Ave Maria", em latim, por uma menina com câncer. Noutro momento marcante, acolheu no altar portadores de deficiências. Foi numa prisão e presidiu uma missa com migrantes. 

O último compromisso papal, a vista a Ciudad Juarez, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, o grande Império, foi um gesto profético, uma denúncia e, em boa medida, um desafio às potestades e seus líderes. Francisco, silenciosa e firmemente, abençoou as cruzes que simbolizam os milhares de mexicanos e outros latinos mortos à busca de uma suposta vida melhor na terra de Tio Sam. Suposta, porque os imigrantes nos Estados Unidos, se descobertos, são tratados como escória humana. Imaginem se Trump for eleito presidente!

Também no México, Francisco, não por acaso, proferiu a mais dura condenação aos ricos e poderosos. Disse, repetindo as palavras de Jesus, que eles prestarão contas sobre as fortunas construídas sobre o sangue e o suor e as lágrimas das pessoas.

Toda vez que buscamos o caminho do privilégio ou o benefício de poucos em detrimento do bem comum, cedo ou tarde a vida em sociedade se torna terreno fértil para a corrupção, o narcotráfico, a exclusão, a violência e até o tráfico de pessoas, o sequestro e a morte”. 

De volta ao Vaticano, em entrevista aos jornalistas, no avião, Francisco não titubeou em relação ao suprassumo da imbecilidade, opulência, arrogância e ostentação norte-americana, o bilionário Donald Trump, candidato republicano à presidência. Disse que ele não pode ser qualificado como cristão, porque é um sujeito que só tem projetos para construir muros a separar. Clara referência ao muro estadunidense; ao muro israelense e a tantos outros muros que segregam e discriminam o outro; o diferente: são muros de concreto e de ódio.

Francisco é uma bênção para a humanidade!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Cidadania nas Ruas e nas Redes: o fim dos autos de resistência

Uma resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil, publicada em 04 de janeiro de 2016, no Diário Oficial da União, aboliu o uso dos termos "auto de resistência" e "resistência seguida de morte" nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais em todo o território nacional. 



Segundo o professor Robson Sávio, o fim dos autos de resistência é uma reivindicação antiga de grupos de defesa de direitos humanos. Ele faz uma reflexão sobre esta conquista que, ainda pequena, sinaliza para uma mudança de realidade, pois é grande o número de mortes de pessoas vítimas de ações policiais no Brasil.

Ouça o áudio na Rádio Sinpro, clicando AQUI.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

João Paulo Cunha: Com medo de gente

O prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda (PSB-MG), por palavras e atitudes, tem demonstrado ao longo dos anos uma incapacidade de entender o cidadão comum.
Por João Paulo Cunha*

O prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda (PSB), por palavras e atitudes, tem demonstrado ao longo dos anos uma incapacidade de entender o cidadão comum. Já aconselhou ao usuário do transporte público que evite ônibus cheio, esperando a próxima condução, que certamente circulará mais vazia. Na sua lógica de administrador, quem se aperta a outros trabalhadores para voltar para casa é apressado ou imbecil. Em outro incontido jorro de insensibilidade, ironizou as vítimas de enchentes em BH dizendo que a “prefeitura deveria ter sido um pouco mais babá dos cidadãos”.

A última medida emanada na burrice afetiva do alcaide foi anunciar a proibição de isopor para venda de bebidas nas ruas da cidade. O ato de Lacerda evidencia outra faceta de seu caráter, o desprazer da convivência. Essas e outras medidas de fundo eugênico ecoam a mais atávica das inspirações do fascismo: a dificuldade de conviver com outro em sua diferença. O fascista não se contenta em existir de acordo com seus valores, ele precisa convencer o outro a seguir a mesma trilha. Se não for por bem, pela norma, pela força, pelo constrangimento. Para um fascista, das duas uma: ou somos todos como ele ou se aniquila a diferença pela exclusão. 

Em BH, esse comportamento antipopular só não foi adiante pela capacidade de organização dos cidadãos em oferecer um misto de desobediência civil e ocupação criativa da cidade. As forças do atraso tentaram sepultar o carnaval e receberem em troca uma das mais alegres resistências, na forma de blocos independentes, de canções deliciosamente críticas e da derrubada do mito alimentado por décadas de que o mineiro era “bom de Semana Santa, não de carnaval”. Hoje, a festa na cidade é um patrimônio inegociável. Faz bem para o corpo e lava a alma. E ainda movimenta a economia.

Outra reação à altura foi dada pela ocupação das praças e espaços deteriorados do Centro da cidade, que operou o milagre de criar uma animada praia no cimento e um concurso de dança de repercussão nacional embaixo de um viaduto. A valer o desejo da administração pública, os espaços não seriam utilizados para a cultura, manifestações políticas, sociais ou religiosas. Havia preconceito contra a beleza, a alegria, a esquerda e até contra os deuses. Nada que não fosse sanado por um cipoal de regras, grades e taxas.

A regulação de classe, em BH, é o outro nome da proibição pura e simples. Por isso o processo de faxina urbanística começou na Praça do Papa – perto do céu da burguesia encastelada –, para chegar à Praça da Estação, no mais chão dos espaços da capital. O lugar é uma espécie de senha que liga a cidade com seu entorno desvalorizado. Numa cidade cercada de montanhas, há uma hierarquia descensional dos espaços públicos.

O mais recente atentado à ocupação da cidade pelas pessoas chegou embalado de defesa de mercado formal e argumentos sanitários furados. Por trás da proibição do isopor e do churrasquinho o que se defendia era uma cidade vazia, um horizonte triste, um corte no gregarismo e na amizade pública, que é outro nome de cidadania. Água no chope da alegria. A medida parte de uma visão egoísta da cidade, incapaz de ir além do individualismo. Como lembrava o pensador Horkheimer, em outro contexto igualmente repressor: “A emancipação do indivíduo não é a emancipação da sociedade, mas a superação, pela sociedade, do risco de atomização”. Em outras palavras, só somos indivíduos de verdade à medida que nos identificamos com nossa turma.

Entender a dinâmica entre o individual e o social talvez seja a mais desafiadora lição para os políticos de todos os matizes. Uma sociedade só é verdadeiramente humana quando reconhece seus sujeitos no exercício de sua liberdade. Uma pessoa só é capaz de se realizar plenamente quando estabelece vínculos com projetos coletivos e, assim, se sente igual a todos os outros. O egoísmo não purifica a vida social; o coletivismo não cala os desejos do indivíduo.

Por isso o isopor, a cerveja com os amigos, a festa e o sentido de convivência são definidores do nosso estágio de avanço humano e social. Algo que dificilmente será compreendido por quem não pega ônibus, a não ser pelo espúrio propósito do marketing.

O carnaval é uma espécie de prova ética da boa política. Não é possível ser solidário na solidão.

*João Paulo Cunha é jornalista e colunista do Brasil de Fato MG.

Fonte: BRASIL DE FATO MG: http://brasildefato.com.br/node/33927

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

SOBRE A IMPOSTERGÁVEL REFORMA DO SISTEMA DE JUSTIÇA DA CASA GRANDE




Agora que o ano novo começou - depois de passadas as festas momescas a comprovarem que a grande crise é fabricação dos abutres de sempre -, podemos tratar de algo substantivo.

Estruturada durante a ditadura militar, foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que consolidou-se, paulatinamente, uma casta jurídica no Brasil, formada por parte significativa de juízes, promotores, tabeliães, delegados de polícia, outros operadores do direito e bancas de advogados associados a essas estruturas de poder. E não é por acaso (ou desejo de melhoria institucional), que muitas polícias militares, nos últimos anos, determinam que seus oficiais façam, obrigatoriamente, o curso de direito. Os militares perceberam que para manter alguns de seus privilégios no atual contexto do fantasioso “estado democrático de direito”, o mais inteligente seria integrar a famosa "carreira jurídica de estado".

O fortalecimento dos privilégios de classe, sua legalidade e institucionalidade, robusteceu justamente no contexto da vigência e consolidação de uma constituição dita cidadã, que equiparou, formalmente, todos os cidadãos (direitos e deveres) perante a lei.

Um estado paralelo dentro do "estado de direito"
Entre os operadores de direito, juízes e membros do Ministério Público e seus serviçais formam quase que um ESTADO PARALELO, porque conseguiram, de variadas formas, legalizar uma série de regalias e privilégios, vedadas aos mortais comuns, os demais cidadãos. Recebem salários integrais e vitalícios; aposentadorias nababescas - inclusive acima do teto constitucional (em evidente afronta à Constituição) - e transmissíveis a herdeiros; variados tipos de penduricalhos absorvidos como remuneração (auxílio moradia, terno, mudança, transporte); bolsas para estudos, inclusive de seus rebentos etc... Uma farra, sem controle e pudor, com o dinheiro público.

Exemplificando: segundo o jornal O Dia, edição de 12 de novembro de 2015, “oitocentos e quarenta e três juízes e desembargadores do Rio de Janeiro receberam vencimentos superiores ao teto constitucional no mês de março (do ano passado). Trinta e quatro ganharam mais de R$ 80 mil. O salário mais alto foi da diretora de um Fórum, que faturou R$ 129.253 mil. Dois meses antes, em janeiro, o contracheque de um juiz chegou a registrar R$ 241 mil. Ao todo, dos 871 magistrados do estado, apenas 28 não ultrapassaram, em março (de 2015), o limite de R$ 33.763, valor determinado pela Constituição Federal para o pagamento da categoria e que corresponde a cerca de 90% dos rendimentos de cada. ” (Leia a reportagem completa AQUI ).
Outra matéria da revista Época, de 12 de junho de 2015, junto aos 27 Tribunais de Justiça e aos 27 MPs estaduais, demonstrou que os reais vencimentos “de juízes e promotores ultrapassam, e muito, o teto constitucional de R$ 33 mil. A média de rendimentos de juízes e desembargadores nos Estados é de R$ 41.802 mensais; a de promotores e procuradores de justiça, R$ 40.853. Os valores próximos mostram a equivalência quase perfeita das carreiras. Os presidentes dos Tribunais de Justiça apresentam média ainda maior: quase R$ 60 mil (R$ 59.992). Os procuradores-gerais de justiça, chefes dos MPs, recebem, também em média, R$ 53.971. Fura-se o teto em 50 dos 54 órgãos pesquisados. Eles abrigam os funcionários públicos mais bem pagos do Brasil.” Veja, AQUI a reportagem completa.

É verdade que esse grupo de privilegiados sempre fez parte da história nacional, como se pode perceber no excelente artigo do jurista Fábio Konder Comparado. Em estudo especial, veja neste link, o grande jurista brasileiro traça a história de um poder submisso às elites, corrupto em sua essência e comprometido secularmente com a Injustiça

A casta jurídica
Em relação aos outros funcionários públicos, aos demais cidadãos e até mesmo em relação a outras classes profissionais de privilegiados (como os médicos), uma parte dos operadores do direito age como uma casta jurídica. É muito comum casarem-se entre si; frequentarem clubes e associações privativas; formarem seus herdeiros no mesmo “ramo” e evocarem para si a condição discricionária de intérpretes exclusivos da lei e da legalidade. 

É patético, perante um juiz, a condição subalterna do cidadão que, não tendo voz (e nem vez), é obrigado a se manifestar através de um terceiro, um advogado. Justiça hermética, que caça a palavra e o direito elementar de expressão para garantir a fama e, muitas vezes, a fortuna de alguns eleitos! Uma aberração inominável ao fundamento constitucional de "igualdade de todos perante a lei."

Ressalve-se, a bem da verdade, que muitos operadores do direito honram os artigos 3º (“o advogado deve ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos”) e 5º (“o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”) do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil. Portanto, a crítica aqui não tem pretensões generalistas e universalistas. 

Macarthismo  judiciário
Mas, não é à toa que, muitas vezes, promotores, juízes, delegados de polícia postam-se acima das leis com a mais absoluta certeza da impunidade. E, excepcionalmente, muito excepcionalmente mesmo, quando recebem alguma reprimenda devido a alguma ilegalidade aberrante e publicizada que comentem, o castigo é, por exemplo, a aposentadoria compulsória, integral e vitalícia. UM ESCÁRNIO!

Lembremos que em nosso país, aqueles que deveriam ser os primeiros a respeitar, defender e lutar pelo direito são, muitas vezes, os primazes em destruir midiaticamente as reputações de indivíduos com ou sem provas. São muitos os "torquemadas justiceiros" que, impunemente, destroem a vida e a honra alheia para aplacar seus instintos persecutórios ou para atender à produção do gozo perverso da espetacularização midiática. Exercem seu ministério com base numa paranoia de acusação sem direito à defesa, facilitando a "perseguição" ou "delação", ao gosto do freguês. Infelizmente, o reducionismo judicial e jurídico, transformado em ativismo persecutório, tem produzido uma justiça ainda mais seletiva e corroborado um pensamento torto, simplista, odioso e infantil Brasil afora.

Ademais, a aliança espúria e virulenta entre judiciário e imprensa, a tramar jogadas midiáticas ultrapopulistas com traços fascistas, é um perigo inominável para todos os cidadãos e as instituições democráticas. Quando a acusação em doses cavalares é transformada em evidências de culpa, chantagem e difusão do medo, mesmo não havendo investigações suficientes e apresentação do contraditório de forma isonômica, com o objetivo de destruir carreiras e promover caça às bruxas flertamos com o estado totalitário dos togados.

A caixa-preta do Judiciário
Em relação especificamente ao Poder Judiciário, em 2010, o então conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Jefferson Kravchychyn descobriu que o Brasil tinha mais cursos de Direito (1.240) do que todo o resto do planeta junto (1.100). Êta país que gosta de "andar direito"!

Segundo pesquisa de julho de 2015, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o bacharel em Direito tem o maior rendimento por hora entre todos os trabalhadores com curso superior.  Portanto, pode-se falar, ainda, numa próspera indústria em torno do Poder Judiciário no Brasil.

Por falar em CNJ, todos devem se recordar do furor das variadas associações de magistrados brasileiros quando a então corregedora Eliana Calmon começou com a devassa na folha de pagamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo e a divulgação de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que revelaram que 3.426 servidores do Judiciário e magistrados movimentaram, de forma suspeita, em torno de R$ 855,7 milhões de 2000 a 2010. Em dinheiro vivo, foram R$ 274,9 milhões movimentados de forma atípica entre 2003 e 2010. Corrupção explícita. E daí? Em tempos de “caça às bruxas”, alguém sabe de um magistrado ou serviçal da justiça frequentando o xilindró?

A bem da verdade, o mal-estar entre a então corregedora Eliana Calmon e os juízes, particularmente de São Paulo, começou antes, a partir de declarações contundentes da ministra ao afirmar que "a magistratura hoje está com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga" e "sabe o dia que eu vou inspecionar São Paulo? No dia em que o sargento Garcia prender o Zorro. É um Tribunal de Justiça fechado, refratário a qualquer ação do CNJ". Dito de maneira clara: há bandidos na caixa-preta intocável do judiciário.

Como dito anteriormente, o distanciamento do judiciário para com a sociedade, a sua propensão ao autoritarismo e o seu elitismo é resultante da formação da sociedade brasileira. A origem do judiciário brasileiro é patrimonialista, idealizado e estruturado pelos de “cima” para e em defesa dos interesses das classes privilegiadas. Essa caracterização é claramente evidenciada nas dificuldades de acesso à justiça pelos mais pobres e nas sentenças condenatórias que punem largamente os pobres e inocenta os ricos. Quem conhece o perfil dos presos brasileiros sabe da seletividade, ineficiente, parcialidade e injustiça da justiça brasileira.

Ademais, o caráter patrimonialista, elitista, hermético e autoritário do judiciário brasileiro fez com que se tornasse o poder menos transparente da República, avesso a investigações de toda ordem, impedindo, desde sempre, que as inúmeras denúncias de corrupção e favorecimento de seus quadros fossem conhecidas pelo grande público. Ao contrário, passa-se, em parceria com a mídia (serviçal dos interesses das elites e, simultaneamente, o tribunal da santa inquisição da contemporaneidade) uma falsa imagem de austeridade e idoneidade moral do judiciário.

Como disse certa feita Rui Barbosa, "a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer."


Afinal, todos são iguais perante a lei? Ou, trata-se de outro conto de carochinha?

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Macarthismo é a prática de formular acusações e fazer insinuações sem provas, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond McCarthy (1909-1957), durante os anos 1950, nos E.U.A.