domingo, 25 de novembro de 2018

Bancada evangélica substituirá presidencialismo de coalizão


Num país profundamente marcado pela mistura entre religião, cultura e poder, um fenômeno que precisa ser melhor estudado no Brasil é a ascensão política dos evangélicos. O crescimento e o fortalecimento do neopentecostalismo, o grupo mais aguerrido do universo evangélico, se expressam não somente no aumento quantitativo, na expansão geográfica e no decréscimo do catolicismo, mas, fundamentalmente, na ocupação do poder do estado por esse segmento religioso.

Inicialmente, o pentecostalismo no Brasil se caracterizava pela ostensiva ocupação dos meios de comunicação de massa. A partir da atual década, seus líderes foram avançando nos espaços públicos de poder: primeiramente no Legislativo, através das chamadas “bancadas evangélicas” (nas câmaras municipais, assembleias e, principalmente, na Câmara Federal), assim como no Executivo. A eleição de Marcelo Crivella, prefeito do Rio, em 2016, é sintomática. Ademais a chefia de ministérios por pastores, nos governos petistas, apontava esse alargamento da ocupação do poder.

Observa-se também que, quando começaram a disputar os espaços de poder, as bancadas evangélicas estavam mais preocupadas na obtenção de benefícios tributários e benesses do Estado. Porém, numa guinada, políticos evangélicos passaram a defender uma agenda moralista e conservadora, de cunho fundamentalista. Essa agenda foi se reverberando num contexto sociopolítico marcado por disputas reais e simbólicas: de um lado, narrativas e modos de governança que propunham a superação de um passado autoritário, patriarcal, excludente e racista. Doutro, narrativas que defendem os valores familiares e cristãos conservadores.

Há que se considerar, ainda, a gradual perda de poder da Igreja Católica. Como se não bastasse a “emigração” de católicos para os segmentos evangélicos, o afastamento da hierarquia católica das questões sociopolíticas foi marcante durante os papados de João Paulo II (1978 – 2005) e Bento XVI (2005 – 2013), com profunda repercussão nos movimentos de base e nas pastorais da igreja católica brasileira.

Os planos de ocupação político-institucional do poder pelos evangélicos não é novo. Resumindo um movimento mais recente: primeiro, aproximaram-se dos governos petistas, alargando seus espaços de poder. Simultaneamente, passaram a disputar eleições em vários partidos: hoje, há evangélicos em mais de 20 agremiações. Surfaram na onda da criminalização da política e dos partidos pela mídia. Articularam-se com think tanks norte-americanos na difusão e defesa intransigente de ideologias ultraliberais, utilizando-se da teologia da prosperidade. E, com Bolsonaro, chegaram à “crista da onda” com a distorção e a corrupção do debate político nas eleições, que deixou de lado os problemas reais do país para focar na pauta moralista e de costumes, tendo nas redes sociais o principal meio para entreter incautos e arregimentar um exército de combatentes raivosos e fundamentalistas. Afinal, combater fantasmas é mais fácil que enfrentar e resolver os problemas reais. Ademais, serve para distrair a população dos debates relevantes nas redes sociais e atiçar a ira "santa" de fundamentalistas religiosos e analfabetos políticos.

É nesse contexto que a coalizão encabeçada pela bancada evangélica (em associação com as bancadas ruralista e da bala), ao que tudo indica, será a base de sustentação do futuro governo de Jair Bolsonaro, a substituir o modelo de governança conhecido como presidencialismo de coalizão, que se organizava a partir dos partidos políticos.

A implosão do sistema partidário, a ostensiva criminalização da política e a desarticulação do campo de centro-esquerda corroboram o protagonismo dessa nova forma de sustentação do futuro chefe do executivo.

Certamente, as pautas morais (ou de costumes) cimentarão a agenda política dessa nova coalizão que está cada vez mais vitaminada, a surfar na onda ultraconservadora que espraia por amplos segmentos sociais.

Os movimentos do presidente eleito nas indicações do seu chanceler e do futuro ministro da educação, abençoados por Olavo de Carvalho (católico) e Silas Malafaia (neopentecostal), indicam que o debate de ordem moral será o núcleo do programa político do futuro governo, amparado pela bancada evangélica.

Com expoentes também no Judiciário e no Ministério Público, os evangélicos poderão auxiliar na sustentação de Bolsonaro para além do Congresso, cuja bancada evangélica na próxima legislatura será composta por 199 deputados e 4 senadores. Dois nomes desses segmentos já fazem história: o juiz Marcelo Bretas e o promotor Deltan Dallagnol. Um documento assinado por quase duzentos promotores favoráveis ao esdrúxulo projeto “escola sem partido” corroboram essa hipótese.

Registre-se a união da bancada evangélica com parlamentares católicos conservadores e outros grupos neopentecostais do catolicismo nessa coalizão. Além da pauta de costumes, essa ampla coalizão religiosa comunga de dois outros ideais: (a) o combate ao fantasmagórico “marxismo cultural” e a eliminação do Partido dos Trabalhadores.

Em relação ao PT, como o partido não foi destruído via eleitoral (dado que elegeu a maior bancada na Câmara Federal e 4 governadores), a estratégia será o uso de lawfare para a sua criminalização e de suas lideranças. Nesse sentido, há uma fusão dos três poderes da república em torno de objetivos comuns, a indicar que movimentos persecutórios e antidemocráticos se avizinham. Ademais, pela ação persecutória contra as esquerdas, os movimentos sociais e os campos progressistas, o governo Bolsonaro gozará de toda a paciência e conivência das elites e da mídia, mesmo se cometer grandes deslizes éticos, morais e de gestão (como, aliás, já se pode perceber).

Os neopentecostais têm uma imensa capilaridade no país. Como uma espécie de MDB religioso, estão em todos os rincões, com ações diretas de evangelismo marcado por pregações ultraliberais e conservadoras e pautas moralistas. Certamente, agregarão ao governo eleito o necessário apoio popular, dado que serão capazes de articular as bases sociais em torno de pautas periféricas, enquanto o núcleo duro do governo Bolsonaro atenderá seus verdadeiros credores: os militares, os pastores, as castas judiciárias, os Estados Unidos e, principalmente, os rentistas nacionais e internacionais.

Por tudo isso, a “profecia” de Silas Malafaia segundo o qual “a guinada à direita vai ser longa” não deve ser desprezada. E as análises que apontam para a formação de teocracia fundamentalista nessas bandas dos trópicos não são fake news.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Bem-vindos à novíssima república do século XIX



Um olhar comparativo no evento que originou a república brasileira, no final do século XIX, nos ajuda a entender nossa situação atual e como essa arquitetura político-institucional mal-ajambrada e elitista ressurge potente nos dias atuais.

Naquele período, a antiga nobreza, os ricos (latifundiários e empresários) e a classe média (profissionais liberais brancos) estavam amedrontados: perda de prestígio da monarquia, crise econômica do império e, principalmente, o terror advindo com a pseudolibertação dos escravizados. As alites temiam que os afrodescendentes ocupassem os espaços de privilégios desses segmentos.

Ademais, revoltas populares eclodiam em várias partes do país. As lutas por direitos das classes populares não eram interpretadas como lutas políticas legítimas de um país que excluía pobres, pretos, trabalhadores. Todos os movimentos populares organizados eram tratados como tentativas de rebelião contra “a lei e a ordem”. Por isso, contidos e reprimidos com políticas autoritárias e higienistas. 

Tudo o que era popular, até mesmo no plano da cultura, era criminalizado como algo perigoso no aspecto político e demoníaco, no plano religioso.

Em 15 de novembro de 1889, um golpe de estado liderado por um militar, o marechal Deodoro da Fonseca, e apoiado por latifundiários, maçons, ilustrados da classe média e setores descontentes com a monarquia e da cúpula do catolicismo derrubaram o imperador.

Para justificar o golpe, a república se instalava a propagar a ideia de um país moderno e independente. Os republicanos conservadores aderiram ao positivismo, que era apresentado pelos letrados das casernas e das classes médias como a teoria social capaz de justificar a abissal desigualdade social e a aplicação de políticas públicas higienistas, segregadoras, excludentes. Até mesmo uma política de embranquecimento da população foi colocada em prática.

Para os católicos conservadores se erigia um regime político capaz de garantir aos homens e mulheres de bem seus privilégios e, simultaneamente, a criminalização dos setores populares que começavam a incomodar aquela ordem social baseada na violência. Tudo sob o falso manto da laicidade do estado.

Naquele momento, a república era fundada sem o povo. E os militares eram a melhor solução para essa nova ordem elitista e segregadora, paradoxalmente apresentada como moderna e democrática. 

A espada era a única forma de conter, pela força, as insurreições populares. Aliás, mais uma vez a união da espada com uma ajudazinha da cruz, como ocorrera no processo de colonização e a dizimação dos povos originários.

Note-se que durante todo o século XX, diga-se de passagem, o país foi tutelado por militares que voltaram ao poder em 1930, dividindo-o com Getúlio Vargas; ficaram mais poderosos aderindo ao golpe do Estado Novo, com Vargas; tiraram Vargas de cena em 1946, num golpe encomendado pelos Estados Unidos; ameaçaram virar a mesa em 1961 se o vice-presidente João Goulart assumisse o lugar de Jânio e três anos depois, mais uma vez, sob a batuta do "império do norte", tiraram João Goulart do Palácio da Alvorada, dando início à segunda ditadura militar que durou 21 anos. Em todos esses momentos os segmentos de elite (empresários, latifundiários, banqueiros, donos da mídia e setores conservadores da classe média apoiaram os militares).

Agora, em 15 de novembro de 2018, parece que retrocedemos a 1889, a velha república apresentada como novíssima. O presidente eleito, um capitão reformado que sempre exaltou os militares, inclusive seus métodos lesivos aos direitos humanos durante a última ditadura, demonstra que seu futuro governo será tocado em parceria com a caserna. Seu vice, até bem pouco tempo na ativa, e os vários generais que serão nomeados para postos-chave do futuro governo não deixam nenhuma dúvida dessa estratégia.

Como em 1889, os ricos, as elites e as classes médias conservadoras e de mentalidade escravocrata estão respirando aliviados porque a ameaça da igualdade de direitos e oportunidades para os pobres, os pretos e as minorias será estancada pelo governo da força e da espada, ao que tudo indica “com o Supremo, com tudo”. Até um xerife justiceiro – que atuou politicamente quando usava toga para favorecer a Casa Grande - já foi indicado para o posto de policiamento e repressão de todos indesejáveis que, no momento atual, são os “consumidores falhos” (para se adequar ao ultraliberalismo) e os inimigos seletivamente eleitos pelos homens bons e de bem(s).

Também no campo religioso, a novíssima religião ultraliberal e excludente - que congrega católicos e evangélicos, a chamada "teologia da prosperidade" do neopentecostalismo -, garantirá a paz dos túmulos e das consciências dos bons cristãos que odeiam justiça e igualdade social nessa banda dos trópicos. Cruz e espada juntas e misturadas, novamente: "deus acima de tudo".

Tio Sam volta a ter o Brasil como seu quintal predileto nas Américas, graças ao trabalho eficiente dos think tanks que atuaram nos últimos tempos na formação dos influenciadores ultraliberais no sistema de justiça, na mídia, na academia e na classe média propagando o deus-mercado, o estado mínimo, a meritocracia, entre outros modismos que enfeitiçam mentes e corações no Brasil.

No campo educacional, o positivismo se traveste de “escola sem partido”, a pregar, como doutrina, uma ciência perfeita e pretensamente isenta que esconde toda uma ideologia a justificar a subserviência do povo às elites, como outrora.

A novíssima república, alicerçada no discurso mentiroso das fake news do mudancismo, via WhatsApp - que começou a ser alicerçada com o golpe de 2016 e se consolida com a eleição do capitão -, enterra de vez a nova república inaugurada com a Constituição Federal de 1988 e associa-se à irmã siamesa, a velha república dos coronéis, fundada por um golpe de homens brancos, ricos, ilustrados, cristãos e de bem.

Bem-vindos a 1889.