Em plena pandemia ressurgem fantasmas
insepultos, não enfrentados no período pós-ditadura e que habitavam o pântano brasileiro.
Há uma profusão de eventos a revelarem que um lodaçal autoritário, moralista e
hipócrita sustenta nossa sociedade (estruturalmente injusta, desigual, racista
e homofóbica).
Nesse atoleiro, o bolsonarismo
tenta avançar e fia-se em dois pilares: a caserna, a garantir o controle das
instituições da República, apesar de regurgitações do Congresso e do Supremo e
as igrejas, principalmente poderosas agremiações religiosas neopentecostais, a garantirem
a base social. E como, ocasionalmente, parte da sociedade está entorpecida por
migalhas de auxílios financeiros pandêmicos (que foram direcionados por Paulo
Guedes e equipe em doses cavalares aos bancos[1],
empresas[2] e
setores rentistas - a garantirem o apoio as elites ao governo de plantão), as
condições objetivas para o avanço do autoritarismo de viés moralista parecem
promissoras, nessa empreitada dos novos cruzados do século XXI.
Surfando nessa onda conservadora
e confiando no apoio de instituições religiosas obscurantistas e no
autoritarismo de caserna, Bolsonaro e seu grupo palaciano resolveram avançar no
charco movediço das chamadas pautas de costumes, conforme revelou reportagem do
domingo (13/09) da Folha de S. Paulo[3].
Armamento da população, criminalização da educação, da cultura e da ciência
(com incentivo à educação familiar) e a transformação de veículos automotores
em armamento para agradar brucutus da classe média são alguns dos projetos que
serão tocados no Congresso Nacional. Nada mais belicoso e ultrajante à dignidade
humana e, portanto, anticristão.
E por mais paradoxal que isso possa parecer, a base social para esse tipo de empreitada usa da religião. Aliás, o uso da religião tem caracterizado a nova extrema-direita global, como revelou recentemente o vaticanista Iacopo Scaramuzzi em um livro recém-publicado, intitulado “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), cuja capa estampa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin.
Em entrevista a Lucas Ferraz, no Intercept Brasil em julho deste ano[4], o estudioso do Vaticano argumenta que a exploração do cristianismo, católico e evangélico, tem como objetivo “louvar um passado supostamente glorioso, além de ter um forte apelo a todos aqueles perdidos com as crises econômica, política, cultural, da globalização etc.”. “O fenômeno opera atualmente numa rede global e é um dos pilares de projetos como o de Viktor Orbán e sua democracia cristã iliberal na Hungria, do recém-reeleito Andrzej Duda e sua tradição sacra na Polônia, de Matteo Salvini, que tentou se tornar homem forte do governo da Itália brandindo rosários e falando em nome de Maria, além de ter pavimentado a vitória de Jair Bolsonaro e seu ‘Deus acima de todos’”.
No Brasil, grupos religiosos
estão à postos para servirem de escudo à empreita moralista, justamente quando
se avizinha o pleito municipal. A estratégia, não por acaso, é que os dois
principais grupos que buscam ampliar o sucesso eleitoral (policiais e
religiosos), pretendem engrossar ainda mais as bases de cruzados moralistas[5]. Outro
não acaso: os dois grupos são as principais bases de apoio do bolsonarismo.
Enquanto isso, Damares, sua
equipe e grupos localizados estrategicamente em ministérios como o do meio
ambiente, educação e secretaria da cultura já agem há algum tempo arrancando
cercas jurídicas e até constitucionais, nas barbas dos “poderes que funcionam”,
para a boiada ultraconservadora passar. Vida de gado.
Nos últimos dias, lideranças
religiosas alinhadas à teologia da prosperidade (de um deus que abençoa aqueles
que gostam e têm dinheiro) e à teologia do domínio (assentada no pressuposto de
que o domínio da terra foi usurpado pelo diabo que, no delírio obscurantista de grupos
religiosos, são os comunistas, esquerdistas, socialdemocratas, cientistas,
progressistas, feministas, movimento LGBT+ etc.) apareceram com destaque na mídia
destilando veneno homofóbico[6], ou
seja, usurpando da pauta moral e de costumes para suscitar engajamento e adesão
nas redes sociais conservadoras.
Noutra frente de disputas reais e
simbólicas persiste a discussão das isenções fiscais a instituições religiosas
(apesar do veto presidencial de mentirinha)[7]. O controle
público das movimentações financeiras de igrejas é relevante porque muitas das agremiações
religiosas se transformaram em verdadeiras lavandeiras financeiras, como
afirmou a antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz em entrevista à
Revista Fórum: “Lavanderias do dinheiro do crime passa por agremiações
religiosas. Onde é que você vai lavar o dinheiro do crime, você vai usar as
agremiações religiosas porque cada uma delas tem um CNPJ. Então você pode criar
uma casa de oração ali na esquina, lavar o dinheiro do crime e com isso também
produzir intolerância religiosa, destruição de terreiros nas comunidades populares”,
disse a especialista em segurança pública[8]. Isso
sem contar a falta de transparência e eventual desvio de recursos financeiros,
como denunciou o Ministério Público de Goiás em relação à construção da nova Basílica
de Trindade. [9]
Uma reportagem da Agência Pública
de agosto de 2020, intitulada “como o crime organizado tem explorado benefícios
concedidos a igrejas para operar seus negócios ilegais”, informa que “uma investigação
realizada por veículos de comunicação de dez países descobriu que, amparados
nas leis de liberdade de culto, algumas igrejas e líderes religiosos nas
Américas abusam da confiança de seus fiéis e cometem crimes como lavagem de
dinheiro e fraude”.[10]
Não é de se estranhar a notícia
do Portal G1, de 12/09, segundo a qual movimentações atípicas realizadas pela
Igreja Universal do Reino de Deus, totalizando quase R$ 6 bilhões[11]. A
Universal é uma dessas igrejas que mais ocupam cargos e espaços públicos.
Inclusive patrocinou a criação de um partido político, o PRB, que mudou de nome
(Republicanos) para surfar na onda da direita e extrema-direita[12].
Noutra reportagem da Agência
Pública, comprova-se que uma aliança de Edir Macedo com Bolsonaro envolve
presidência da Câmara, cargos no governo e perdão de dívidas às igrejas.[13]
Portanto, as relações entre
igrejas, grupos ultraconservadores na política (nos três poderes, diga-se de
passagem) e a utilização de dinheiro público e privado (dízimos e outras contribuições)
para fins ilícitos é algo que merece toda a atenção.
Por outro lado, alianças entre o
neopentecostalismo e o militarismo se dão em outras frentes. Reportagem da Revista
Fórum de janeiro de 2020 intitulada “Igreja Universal cria seu exército
particular com recrutamento de PMs” apresenta um vídeo institucional da “Universal
nas Forças Policiais (UFP)”, braço da igreja de Edir Macedo nas “Forças de
Segurança Pública, Forças Armadas e órgãos governamentais”. Segundo o vídeo, a Universal
atingiu 983.441 policiais e familiares no ano de 2019, em 73.526 palestras, eventos
e cafés realizados, e doado 439.471 “Bíblias e literaturas”.[14]
Esses são alguns dos sinais a
demonstrarem que a nova onda de ataques de grupos bolsonaristas, nesse novo
front de batalha, não se dará contra o Supremo ou o Congresso, mas contra os
poucos avanços no campo de direitos dos chamados grupos minoritários (mulheres,
negros, gênero), advindos com a Constituição Federal de 1988. Em artigo de maio
deste ano intitulado “armar o país: a guerra santa bolsonarista” já prevíamos
essa batalha político-religiosa. E a bancada BBB (bala, bíblia, boi) que não é
nova (e conta com o apoio do “Novo”), parece oferecer o armamento de ocasião ao
bolsonarismo.
O amálgama entre ultraconservadorismo
religioso e militarismo autoritário merece atenção nessa quadra da nossa história.
Portanto, os democratas precisam
olhar com bastante atenção para essa coalizão que une algumas igrejas e setores
militares (ressalvando que há militares e igrejas democratas e republicanos) e,
em muitas ocasiões, se associa às milícias, a revelar um perigoso pântano para
o pouco que resta de democracia e a recordar tempos pouco memoráveis já vividos
pela sociedade brasileira num passado recente.
[1]
Leia em: https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2020/08/325-bilhoes-bc-governo-prioriza-bancos-pandemia/
[2]
Veja em: https://economia.ig.com.br/2020-05-22/vamos-perder-dinheiro-salvando-empresas-pequenininhas-diz-guedes.html
[3]
Aqui: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/09/com-popularidade-em-alta-bolsonaro-tenta-emplacar-pautas-de-costumes-no-congresso.shtml
[4]
Veja em: https://theintercept.com/2020/07/27/entrevista-direita-populista-usa-cristianismo-para-criar-sentido-comum-e-respeitabilidade/
[5]
Veja em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/partidos-buscam-evangelicos-e-policiais-para-disputarem-capitais.ghtml
[6]
Aqui: https://catracalivre.com.br/cidadania/ana-paula-valadao-faz-fala-homofobica-e-culpa-gays-por-aids/
e aqui: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/na-igreja-nao-da-diz-pastor-andre-valadao-sobre-casais-homossexuais/
[7]
Veja aqui: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/bolsonaro-veta-anistia-em-tributos-a-igrejas.shtml
[8]
Veja em: http://www.ineac.uff.br/index.php/noticias/item/427-igrejas-tornaram-se-lavanderias-para-o-dinheiro-das-milicias
[9]
Veja em: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2020/08/21/mp-go-deflagra-operacao-que-apura-suspeita-de-irregularidades-na-afipe-responsavel-pela-basilica-de-trindade.ghtml
[10]
Aqui: https://apublica.org/2020/08/como-o-crime-organizado-tem-explorado-beneficios-concedidos-a-igrejas-para-operar-seus-negocios-ilegais/
[11]
Veja em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/09/12/mp-diz-que-igreja-universal-foi-usada-para-lavar-dinheiro-de-corrupcao-na-prefeitura-do-rio.ghtml
[12]
Acesse em: https://veja.abril.com.br/politica/prb-anuncia-mudanca-para-republicanos-e-sera-8o-partido-a-trocar-de-nome/.