quarta-feira, 30 de setembro de 2015

9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta: nas capitais brasileiras, quase duas pessoas são assassinadas por hora



·     Pela primeira vez, Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresenta estatísticas de violência com análise das capitais do País

·           Gasto com Segurança Pública, em 2014, cresce mais de R$ 10 bi mesmo frente a crise econômica, aponta FBSP

·           Anuário Brasileiro de Segurança Pública destaca, contudo, que os gastos da união com a pasta recuaram pelo segundo ano consecutivo

São Paulo, 30 de setembro de 2015 - A cada hora, quase duas pessoas morreram nas capitais brasileiras em 2014 vítimas de crimes violentos letais intencionais (homicídios dolosos, lesão corporal seguida de morte e latrocínio). Foram 15.932 mortes nas 27 capitais, o que equivale a 1,81 assassinato por hora, praticamente o mesmo número em comparação ao ano anterior, de 15.804 óbitos registrados por essas mesmas causas (variação de 0,8% no número de casos). Os dados inéditos fazem parte da primeira série de levantamentos estatísticos do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que acaba de ser tabulada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O Fórum apresenta pela primeira vez, em nove anos, dados analíticos sobre a crimes violentos em capitais brasileiras. O levantamento foi realizado a partir requisições às secretariais estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social com base na Lei de Acesso à Informação (LAI) e também por meio de cruzamento de informações disponibilizadas pelas mesmas secretarias em seus respectivos websites.

“Os resultados mostram um quadro extremamente preocupante”, avalia Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e uma das responsáveis técnicas pelo Anuário. Ela comenta que a taxa média nacional, que contempla todo o território nacional, em 2013, atingiu 25,2 mortes a cada 100 mil habitantes; já nas capitais, a taxa chegou a 33 por grupo de 100 mil habitantes. “O que podemos concluir é que as capitais impulsionam a violência em uma proporção maior do que era possível imaginar. Em 2013, o Brasil registrou 50.241 assassinatos e, portanto, as 27 capitais responderam por 31,45% desses crimes”, analisa Samira. “Os dados nacionais de 2014 ainda estão em fase de tabulação mas, em princípio, acreditamos que não houve mudança desse quadro.”

Foi constatado que, em 2014, os crimes violentos letais intencionais atingiram a taxa de 33 vítimas para cada 100 mil habitantes, exatamente a mesma registrada em 2013.

Pelo levantamento, Fortaleza foi a capital que registrou em 2014 a maior quantidade de assassinatos em números absolutos: 1.989. Houve, em relação ao ano anterior, queda de 1%. Na capital cearense, a taxa para cada 100 mil habitantes foi de 77,3, também a maior do País. Outra capital do Nordeste, Salvador, ficou com o segundo posto em números absolutos: 1.397 mortes, queda de 6,5% em comparação ao ano anterior e com taxa de 48,1 óbitos por 100 mil habitantes.

São Paulo registrou, em números absolutos, 1.360 mortes por crimes violentos, a terceira maior do País. Entretanto, a taxa da capital paulista, de 11,4 a cada 100 mil habitantes, é a menor de todo o Brasil. A cidade obteve em 2014 ante 2013 uma redução de 4,3% no total desses crimes. Com uma taxa de 20,2 assassinatos a cada 100 mil habitantes, uma diminuição de 6,4% em relação a 2013, o Rio de Janeiro registrou 1.305 crimes violentos letais intencionais em 2014.

Na avaliação do vice-presidente do Conselho de Administração do Fórum, Renato Sérgio de Lima, apesar de altos, os resultados do Ceará traduziriam o pico alcançado no ano passado. “Sabemos que, agora em 2015, os índices da capital cearense estão caindo, em muito fruto da ação coordenada entre diferentes áreas do governo”, analisa.

Para ele, São Paulo é outro caso que merece atenção. “Mesmo com a menor taxa de mortes por 100 mil habitantes, São Paulo ainda registrou queda nos assassinatos. Esse é um modelo que deve ser estudado a fundo e que pode ser uma referência interessante aos demais estados”, sugere.

Campo Grande, Teresina e Porto Alegre, são as capitais que apresentam os maiores crescimentos de mortes ocasionadas por violência com intenção de matar. A capital sul-mato-grossense, com 159 casos, registrou alta de 36,5%, obtendo taxa de 18,9. Teresina, com taxa de 53,1 e um total de 446 óbitos, apresentou alta de 33,7%.

Porto Alegre se mostra, em termos proporcionais, a capital mais violenta da Região Sul do Brasil. A cidade gaúcha registrou 598 casos, uma alta de 23,2% em relação ao ano anterior e taxa de 40,6 mortes a cada 100 mil habitantes. Florianópolis, com taxa de 16,9, é proporcionalmente a cidade menos violenta e teve 78 mortes registradas em 2014. Já Curitiba contou com taxa de 32,4, aumento de 6,4% em relação a 2014, o que representou 604 casos em 2014.

Gastos com segurança pública

A 9ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública também analisa de forma inédita os gastos com segurança pública no Brasil. No total, foram R$ 71,2 bilhões em 2014, um incremento de 16,6% em relação ao ano anterior mesmo frente a crise econômica pela qual o Brasil passa. Em 2013, os gastos com a pasta totalizaram R$ 61,1 bilhões.

O levantamento, realizado a partir do cruzamento e da consolidação das informações da Secretaria do Tesouro Nacional, do Ministério da Fazenda e das secretarias estaduais e municipais de Fazenda, indica que São Paulo foi o Estado que mais gastou com segurança pública em 2014: R$ 10,4 bilhões. O montante é 12% superior ao do ano anterior e 28,8% superior aos gastos da União com a pasta, que foram de R$ 8,1 bilhões. Em 2013, o governo federal havia gastado R$ 8,7 bilhões. A retração, de 2,6% ante o ano anterior, representa a segunda redução consecutiva dos gastos da gestão Dilma Rousseff com a pasta.

O segundo ente federativo que mais despesas teve em segurança pública (logo após o Estado de São Paulo e antes da União) foi o Estado de Minas Gerais, que destinou R$ 10,1 bilhões para a pasta. Em relação ao ano anterior, foi constatado um incremento de 69,5%. Contudo, o FBSP destaca que Minas Gerais, diferentemente dos outros estados, somou os gastos com previdência dos aposentados do setor aos gastos da pasta de segurança pública. Sem considerar os gastos previdenciários, o Estado gastou R$ 7 bilhões com Segurança Pública, um aumento de 18,5% em relação a 2013. O Estado do Rio de Janeiro gastou R$ 7,7 bilhões com segurança pública em 2014, sendo o quarto ente federativo que mais gastou com a pasta naquele ano. Em relação ao ano anterior, os gastos do Rio de Janeiro aumentaram 9,7%.

Os gastos dos municípios com a pasta totalizaram R$ 3,9 bilhões. Somadas todas as despesas com a área, os municípios brasileiros entrariam em quinto lugar no ranking dos entes federativos que mais gastaram com Segurança Pública, atrás de São Paulo, Minas Gerais, União e Rio de Janeiro.

Sobre o FBSP
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública foi constituído em março de 2006 como uma organização não-governamental, apartidária, e sem fins lucrativos, cujo objetivo é construir um ambiente de referência e cooperação técnica na área de atividade policial e na gestão de segurança pública em todo o País. O foco do FBSP é o aprimoramento técnico da atividade policial e da gestão de segurança pública. Por isso, avalia o planejamento e as políticas para o setor; a gestão da informação; os sistemas de comunicação e tecnologia; as práticas e procedimentos de ação; as políticas locais de prevenção; e os meios de controle interno e externo, dentre outras; sempre adotando como princípio o respeito à democracia, à legalidade e aos direitos humanos. O FBSP faz uma aposta radical na transparência enquanto ferramentas de prestação de contas e de modernização da segurança pública.

Fonte: FBSP (divulgação)

Breves notas sobre lei e ordem


A noção de lei e ordem incrustrada na cultura sociopolítica brasileira apontam estritamente, e de forma intencional, para uma tendência autoritária desse conceito. O discurso e a prática das agências encarregadas de implementação da lei e da ordem (polícias, Ministério Público, Judiciário) utilizam o conceito (e o transforma em práticas), comumente, enfatizando e sobrevalorizando o caráter punitivo do Estado (influenciando, assim, políticas penais), em detrimento do caráter mais amplo da noção de lei e ordem que está relacionada com o controle da ordem pública numa perspectiva democrática.



Por isso é necessário problematizar as demandas por ordem, como nos alerta o sociólogo do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Sérgio Adorno (1995):

Trata-se de problematizar a “demanda por ordem” que se encontra presentemente nas falas do cidadão comum e das autoridades, falas frequentemente veiculadas pela imprensa escrita e pela mídia eletrônica e que inclusive não se encontram ausentes do debate acadêmico e da produção de conhecimento científico. Ao problematizá-la está-se, em verdade, liberando-as de suas raízes conservadoras e liberais que de regra inspiram e influenciam políticas públicas penais. Um propósito dessa ordem reclama uma perspectiva teórico-metodológica que amplie o escopo da análise para além dos estreitos limites ditados pelas instituições de controle social  e seu modo de funcionamento. Um empreendimento dessa natureza supõe como objetivo: pensar o estatuto do controle social na contemporaneidade. O controle social, algo mais amplo do que o controle da ordem pública, parece ter esgotado, na contemporaneidade, suas funções e modelos tradicionais. (Adorno, 1995, grifo nosso).

Ainda segundo Adorno (1995), o tratamento acerca da lei e da ordem a partir de uma nova perspectiva de abordagem enseja pensar o estatuto do Estado no controle da ordem pública. O papel do Estado no controle dos comportamentos sociais e no controle da ordem pública não pode mais ser examinado, apenas, em termos de eficácia e fracasso.
Neste sentido, para compreender os dilemas da segurança pública na contemporaneidade, é preciso refletir para além das funções convencionais do modelo contratual de organização societária, num Estado que é cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurídico e pela coexistência de mais de uma ordem jurídica no mesmo espaço geopolítico.
Acrescente-se, ainda, nesta breve análise as relações imbricadas e muitas vezes “promíscuas” entre as esferas públicas e privadas no provimento e na definição das políticas de controle social, via ampliação do mercado de segurança privada.

Neste tópico, o “paradigma” de análise será representado pelo exame de um processo em curso: a privatização dos serviços de segurança, seja dos serviços de vigilância policial, seja a das prisões cujo debate marcha com certa intensidade. Sob essa ética, acrescenta-se à análise um dado novo: a tradicional indistinção entre as esferas pública e privada da existência social, uma das mais destacadas características da sociedade brasileira, é acentuada por um progressivo processo de privatização dos serviços públicos de segurança. (Adorno, 1995).

Esses elementos apresentados por Adorno (1995) são fundamentais para a compreensão de alguns dos traços de nossa cultura sociopolítica sobre a segurança pública, no que diz respeito à utilização inadequada da noção de lei e ordem para justificar a violência do Estado contra o cidadão, notadamente aqueles que, limitados pela condição socioeconômica, não têm meios de acesso à Justiça.
Ademais, mostra que a demanda por proteção individual privada, diferentemente de segurança pública (para todos) é uma estratégia que favorece os segmentos socioeconômicos que, historicamente, defendem e se beneficiam das soluções privadas para problemas de foro público. Em outras palavras, a fragilização do segurança pública, respaldada no discurso do medo, da ineficiência do Estado e da eficiência da segurança privada, é um jogo de interesses nada democráticos e republicanos.
O fato é que o autoritarismo - que tradicionalmente atravessa e define as relações sociais e a cultura política no Brasil – ainda consolida muitas das ações de segurança pública, a partir das demandas por lei e ordem.
A construção histórico-cultural na sociedade brasileira acerca do que vem a ser lei e ordem evidencia, portanto, uma tendência de minimizar os problemas da segurança pública, reduzindo-os a uma questão estritamente policial, voltada para o controle das chamadas “classes perigosas”, possibilitando a “emergência de propostas, provenientes de distintos grupos, classes e categorias sociais, favoráveis a um rigoroso, rígido e mesmo autoritário controle repressivo da ordem pública” (ADORNO, 1995).
A partir dos conceitos apresentados por Adorno (1995) percebemos que as noções de lei e ordem ultrapassam a compreensão segundo a qual o Estado, detentor legítimo do monopólio do uso da violência, deve, unilateralmente, ampliar os mecanismos de controle social tendo em vista a garantia da paz e da segurança. Pergunta-se, então: paz e segurança para quem? A qual custo?
Apesar de aparente incompatibilidade entre respeito aos direitos humanos com lei e ordem, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares (2000) afirma ser possível construir uma "terceira via entre a truculência seletiva da direita e o denuncismo abúlico da esquerda". Para tanto, no campo da segurança pública, é preciso alcançar, entre outros objetivos, um modelo de polícia que alie eficiência com o respeito às leis que protegem os direitos do cidadão, em particular o direito à segurança. Daí o imperativo de "valorização das instituições policiais, como protetoras da vida e da liberdade e promotoras do direito de todos a uma vida pacífica, que é, afinal de contas, o significado último da segurança pública num contexto verdadeiramente democrático" (SOARES, 2000, p.48-49).
O fato: é preciso erradicar, da segurança pública, suas heranças autoritárias e conservadoras. Isso só será possível com uma ampla reforma de todo o sistema de justiça criminal brasileiro.


Bibliografia:
ADORNO, S. Criminalidade violenta, Estado de Direito e controle social. Relatório de pesquisa. Programa de Pós-Doutorado, Paris/França, 1994-1995. São Paulo, 1995, mimeo. 72p. (CNPq).

SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.