A noção de lei e ordem incrustrada na cultura
sociopolítica brasileira apontam estritamente, e de forma intencional, para uma
tendência autoritária desse conceito. O discurso e a prática das agências
encarregadas de implementação da lei e da ordem (polícias, Ministério Público,
Judiciário) utilizam o conceito (e o transforma em práticas), comumente,
enfatizando e sobrevalorizando o caráter punitivo do Estado (influenciando,
assim, políticas penais), em detrimento do caráter mais amplo da noção de lei e
ordem que está relacionada com o controle da ordem pública numa perspectiva
democrática.
Por isso é necessário problematizar as demandas
por ordem, como nos alerta o sociólogo do Núcleo de Estudos da Violência da
USP, Sérgio Adorno (1995):
Trata-se de problematizar a “demanda por ordem” que se
encontra presentemente nas falas do cidadão comum e das autoridades, falas
frequentemente veiculadas pela imprensa escrita e pela mídia eletrônica e que
inclusive não se encontram ausentes do debate acadêmico e da produção de
conhecimento científico. Ao problematizá-la está-se, em verdade, liberando-as de suas raízes conservadoras e
liberais que de regra inspiram e influenciam políticas públicas penais. Um
propósito dessa ordem reclama uma perspectiva teórico-metodológica que amplie o
escopo da análise para além dos estreitos limites ditados pelas instituições de
controle social e seu modo de funcionamento. Um empreendimento dessa
natureza supõe como objetivo: pensar o estatuto do controle social na
contemporaneidade. O controle social, algo mais amplo do que o controle da
ordem pública, parece ter esgotado, na contemporaneidade, suas funções e
modelos tradicionais. (Adorno,
1995, grifo nosso).
Ainda segundo Adorno (1995), o tratamento acerca
da lei e da ordem a partir de uma nova perspectiva de abordagem enseja pensar o
estatuto do Estado no controle da ordem pública. O papel do Estado no controle
dos comportamentos sociais e no controle da ordem pública não pode mais ser
examinado, apenas, em termos de eficácia e fracasso.
Neste sentido, para compreender os dilemas da
segurança pública na contemporaneidade, é preciso refletir para além das
funções convencionais do modelo contratual de organização societária, num
Estado que é cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurídico e pela
coexistência de mais de uma ordem jurídica no mesmo espaço geopolítico.
Acrescente-se, ainda, nesta breve análise as
relações imbricadas e muitas vezes “promíscuas” entre as esferas públicas e
privadas no provimento e na definição das políticas de controle social, via
ampliação do mercado de segurança privada.
Neste tópico, o “paradigma” de análise será representado pelo
exame de um processo em curso: a privatização dos serviços de segurança, seja
dos serviços de vigilância policial, seja a das prisões cujo debate marcha com
certa intensidade. Sob essa ética, acrescenta-se à análise um dado novo: a
tradicional indistinção entre as esferas pública e privada da existência
social, uma das mais destacadas características da sociedade brasileira, é
acentuada por um progressivo processo de privatização dos serviços públicos de
segurança. (Adorno, 1995).
Esses elementos apresentados por Adorno (1995)
são fundamentais para a compreensão de alguns dos traços de nossa cultura
sociopolítica sobre a segurança pública, no que diz respeito à utilização
inadequada da noção de lei e ordem para justificar a violência do Estado contra
o cidadão, notadamente aqueles que, limitados pela condição socioeconômica, não
têm meios de acesso à Justiça.
Ademais, mostra que a demanda por proteção
individual privada, diferentemente de segurança pública (para todos) é uma
estratégia que favorece os segmentos socioeconômicos que, historicamente,
defendem e se beneficiam das soluções privadas para problemas de foro público.
Em outras palavras, a fragilização do segurança pública, respaldada no discurso
do medo, da ineficiência do Estado e da eficiência da segurança privada, é um
jogo de interesses nada democráticos e republicanos.
O fato é que o autoritarismo - que
tradicionalmente atravessa e define as relações sociais e a cultura política no
Brasil – ainda consolida muitas das ações de segurança pública, a partir das
demandas por lei e ordem.
A construção histórico-cultural na sociedade
brasileira acerca do que vem a ser lei e ordem evidencia, portanto, uma
tendência de minimizar os problemas da segurança pública, reduzindo-os a uma
questão estritamente policial, voltada para o controle das chamadas “classes
perigosas”, possibilitando a “emergência de propostas, provenientes de
distintos grupos, classes e categorias sociais, favoráveis a um rigoroso,
rígido e mesmo autoritário controle repressivo da ordem pública” (ADORNO,
1995).
A partir dos conceitos apresentados por Adorno
(1995) percebemos que as noções de lei e ordem ultrapassam a compreensão
segundo a qual o Estado, detentor legítimo do monopólio do uso da violência,
deve, unilateralmente, ampliar os mecanismos de controle social tendo em vista
a garantia da paz e da segurança. Pergunta-se, então: paz e segurança para
quem? A qual custo?
Apesar de aparente incompatibilidade entre respeito
aos direitos humanos com lei e ordem, o antropólogo e cientista político Luiz
Eduardo Soares (2000) afirma ser possível construir uma "terceira via
entre a truculência seletiva da direita e o denuncismo abúlico da
esquerda". Para tanto, no campo da segurança pública, é preciso alcançar, entre outros
objetivos, um modelo de polícia que alie eficiência com o respeito às leis que
protegem os direitos do cidadão, em particular o direito à segurança.
Daí o imperativo de "valorização das instituições policiais, como
protetoras da vida e da liberdade e promotoras do direito de todos a uma vida
pacífica, que é, afinal de contas, o significado último da segurança pública
num contexto verdadeiramente democrático" (SOARES, 2000, p.48-49).
O fato: é preciso erradicar, da segurança
pública, suas heranças autoritárias e conservadoras. Isso só será possível com
uma ampla reforma de todo o sistema de justiça criminal brasileiro.
Bibliografia:
ADORNO, S. Criminalidade
violenta, Estado de Direito e controle social. Relatório de pesquisa.
Programa de Pós-Doutorado, Paris/França, 1994-1995. São Paulo, 1995, mimeo.
72p. (CNPq).
SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Rio de
Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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