segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Religião, política e poder nas eleições 2020: uma pandemia, num imenso pandemônio


Há uma série de variáveis que devem ser consideradas nas eleições deste ano. A primeira, e mais importante, é o efeito da pandemia no pleito. A mudança do calendário eleitoral é a face visível da influência pandêmica. Porém, o debate sobre a efetividade das administrações municipais no enfrentamento da doença, associado com o comportamento das lideranças dos municípios em relação às posições dos governos estadual e federal durante a crise sanitária certamente mobilizarão parte das pautas e debates eleitorais.

Mas, não nos enganemos: o resultado das eleições tende a ser definido por questões objetivas que estão relacionadas ao contexto de cada município (as políticas públicas de saúde, educação, transporte, moradia, etc.), mas, também e não menos importante, com os apelos emotivos, relacionados a crenças, percepções e sentimentos que candidatos e partidos costumam utilizar, em doses cavalares, nos pleitos municipais.

Por isso, é muito importante observarmos alguns elementos que podem caracterizar essa eleição como uma disputa a reconfigurar não somente a política municipal, mas a política nacional.

1. A participação de lideranças ligadas às igrejas, principalmente neopentecostais: há claramente uma disputa eleitoral que se consolida no campo religioso. As pautas morais se constituem no principal instrumento de alavancagem de candidaturas e de políticos eleitos ligados ao chamado neopentecostalismo. Estudos e depoimentos apontam um projeto político de tomada de poder do Estado por algumas igrejas evangélicas.[1]

Tendo como base dados iniciais divulgados pelo TSE, o portal UOL identificou pelo menos 5.555 candidatos que usam alguma referência religiosa no nome da urna. Contudo esse número despreza candidatos que não declararam sua filiação religiosa em seu registro eleitoral.

Evangélicos têm disputado vários postos na política nacional e também na política municipal. Nas eleições para conselheiros tutelares, no ano passado, por exemplo, chamou a atenção o interesse de religiosos e membros de igrejas na ocupação de lugares estratégicos na arena política: dezenas de igrejas inscreveram seus representantes nas eleições para os Conselhos Tutelares. Os temas morais, importantes na pauta da defesa de criança e adolescentes, mobilizaram os candidatos dessas igrejas. 

Na avaliação da mídia empresarial, a disputa se dava entre católicos e evangélicos, e espelhava o crescimento de igrejas protestantes no Brasil[2]. A eleição para conselheiros tutelares explicitou uma “batalha religiosa” em curso no Brasil. Nos últimos 20 anos, a bancada evangélica no Congresso Nacional triplicou: a atual legislatura conta com 195 dos 513 deputados, o equivalente a 38% do total de parlamentares. “A atual bancada evangélica é a mais governista dos últimos cinco mandatos presidenciais. 90% dos votos registrados pelos evangélicos foram a favor do governo (Bolsonaro)”.[3] E como se percebe, cada vez mais líderes, deputados e ministros ligados às igrejas evangélicas ocupam espaço nas áreas estratégicas do governo.

A utilização da religião, notadamente do cristianismo, tem caracterizado a nova extrema-direita global, como revelou recentemente o vaticanista Iacopo Scaramuzzi em um livro recém-publicado, intitulado Dio? In fondo a destra – perché i populismi sfruttano il cristianesimo (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), cuja capa estampa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin.[4]

Não sem motivos, em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro usou o polêmico termo “cristofobia” que sinaliza uma estratégia eleitoral voltada ao público evangélico. Segundo Ronilso Pacheco, pastor evangélico e estudioso das religiões, o termo cristofobia vai ser usado como estratégia eleitoral decisiva nas próximas eleições.[5]

Mais recentemente, Bolsonaro evocou um lema do integralismo, “Deus, pátria e família”, num discurso para mobilizar sua base de apoio ultraconservadora e fundamentalista. O integralismo, diga-se de passagem, se constituiu no Brasil a partir da década de 1930 como uma espécie de “fascismo à brasileira”, com movimentos de viés religioso, e foi fundamental na construção de uma base social para o golpe militar de 1964. Portanto, manipulação da religião parece se constituir numa das tônicas dessas eleições.

Há uma pequena reação de candidaturas religiosas progressistas articuladas por coletivos evangélicos. É preciso acompanhar esse movimento.

2. Outro grupo não menos importante que está bastante coeso na disputa eleitoral deste ano, também associado a questões religiosas, é ligado ao militarismo. Segundo o portal G1, “a eleição de 2020 já é a disputa municipal com o maior número de candidatos policiais e militares dos últimos 16 anos. Em números absolutos, são 6,7 mil postulantes aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador em todo país, superior ao total registrado em 2012. O aumento dessas candidaturas também é de 12,5% em relação à eleição de 2016.” Esses números podem ser ainda maiores porque há casos de policiais ou militares que se autodeclaram apenas servidores públicos.[6]

Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que o segmento militar está muito associado ao bolsonarismo.[7]

Há que se observar que alianças entre o neopentecostalismo e o militarismo se dão em várias frentes. A bancada intitulada BBB (Bala, Bíblia e Boi) é o caso mais emblemático. Mas, não é somente isso. Reportagem da Revista Fórum, de janeiro de 2020, intitulada “Igreja Universal cria seu exército particular com recrutamento de PMs” apresenta um vídeo institucional da “Universal nas Forças Policiais (UFP)”, braço da igreja de Edir Macedo nas “Forças de Segurança Pública, Forças Armadas e órgãos governamentais”. Segundo o vídeo, a Universal atingiu 983.441 policiais e familiares no ano de 2019, em 73.526 palestras, eventos e cafés realizados, e doado 439.471 “Bíblias e literaturas”.[8]

Observemos que o governo Bolsonaro é claramente um governo militarizado. Como informou recentemente o El País, o Brasil de Jair Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder[9]. Isso sem contar os militares colocados em milhares postos-chave do governo brasileiro. Portanto, militarismo e religião são duas bases sociais importantes na disputa eleitoral deste ano que podem ajudar na reconfiguração a composição de forças política mais amplas. Não à toa, a guinada bolsonarista para o chamado “centrão” que acolhe boa parte dessas candidaturas aponta uma estratégia ambiciosa da extrema-direita no Brasil.

3. Um outro ponto importante a gerar prejuízos no processo eleitoral será, certamente, a utilização ampla das chamadas fake news. Não por acaso, notícias falsas são muito utilizadas por lideranças religiosas apelando para o universo simbólico que envolve a fé, crença e a religião.

Apesar de o TSE ter agido preventivamente com uma série de parcerias com redes sociais e aplicativos de mensagem com vistas a identificação e punição de propagadores de notícias falsas, os especialistas têm alertado que esse “submundo” altamente apelativo dificilmente será controlado nas eleições. E, como se sabe por uma série de estudos nacionais e internacionais relativos a pleitos ocorridos na última década, a utilização de notícias falsas tem o poder de interferir no debate democrático, alterando resultados eleitorais.[10]

4. O discurso que combina criminalização da política com a ideia de renovação política é bem presente no imaginário do eleitor. Neste sentido, há que se observar que partidos do espectro da direita e da extrema-direita, principalmente novos partidos surgidos na última década, têm sido exitosos nas eleições justamente pela capacidade de apresentarem “novos” candidatos ou outsiders da política.

Em contrapartida, há pouca renovação de lideranças políticas a disputarem o pleito nos partidos de esquerda. Tais partidos ainda são muito apegados em candidaturas já experimentadas e que muitas vezes têm pouca possibilidade de sucesso eleitoral num ambiente tão polarizado ou já foram rejeitadas nas urnas. Além da pouca capacidade de renovação e do distanciamento das bases sociais, em geral, a preservação de quadros históricos parece orientar as burocracias partidárias da esquerda. Ou seja, a esquerda apresenta-se pouco criativa frente ao movimento ultraconservador que se organiza no Brasil desde 2013.

5. É importante registrar, por fim, um elemento novo nessas eleições municipais:  as chamadas candidaturas coletivas, majoritariamente no campo progressista, que merecem toda atenção. Porém, há que se verificar, depois do pleito, a viabilidade desse tipo de candidatura.

Estes são alguns pontos que merecem atenção dos setores democráticos e progressistas neste pleito de 2020. Apesar de as eleições municipais, ordinariamente, focarem nos debates acerca dos temas municipais, há uma série de elementos que indicam articulações com o objetivo de ampliação das bases políticas de partidos do espectro conservador e ultraconservador. Não à toa, a aliança de ocasião com o “centrão” reposicionou o governo Bolsonaro no Congresso Nacional, arrefeceu os atritos com o Supremo e, sob o ponto de vista eleitoral, poderá significar um adensamento dessa base partidária com vistas às articulações para 2020.

Enquanto isso, há um “bate-cabeça” entre os setores progressistas e de esquerda.  Portanto, essas eleições na pandemia apresentam-se como verdadeiro pandemônio. Sempre na esperança de que dias melhores virão...



[1] Neopentecostais e o projeto de poder. Veja em:  https://diplomatique.org.br/neopentecostais-e-o-projeto-de-poder/ ; Para entender o projeto de poder de políticos e igrejas neopentecostais. Veja em:  https://jornalggn.com.br/politica/para-entender-o-projeto-de-poder-de-politicos-e-igrejas-neopentecostais/País terrivelmente evangélico é projeto de poder ou preconceito da elite. Veja em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/07/pais-terrivelmente-evangelico-e-projeto-de-poder-ou-preconceito-da-elite.htm

[2] A batalha entre católicos e evangélicos pelo domínio dos conselhos tutelares.    Veja em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/10/01/a-batalha-entre-catolicos-e-evangelicos-pelo-dominio-dos-conselhos-tutelares.ghtml

[4] Extrema-direita: pautas moralistas unem religião e militarismo. Veja em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/602840-extrema-direita-pautas-moralistas-unem-religiao-e-militarismo

[5] Debate sobre cristofobia é estratégico para candidatura ultraconservadoras, avalia pesquisador. Veja em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-28/debate-sobre-cristofobia-e-estrategico-para-candidaturas-ultraconservadoras-avalia-pesquisador.html

[9] Brasil de Bolsonaro tem maior proporção de militares como ministros do que Venezuela. Veja em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51646346

[10] Notícias falsas ameaçam processos eleitorais na América Latina. Veja em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/14/internacional/1521060611_975112.html

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Extrema direita: pautas moralistas unem religião e militarismo

Em plena pandemia ressurgem fantasmas insepultos, não enfrentados no período pós-ditadura e que habitavam o pântano brasileiro. Há uma profusão de eventos a revelarem que um lodaçal autoritário, moralista e hipócrita sustenta nossa sociedade (estruturalmente injusta, desigual, racista e homofóbica).

Nesse atoleiro, o bolsonarismo tenta avançar e fia-se em dois pilares: a caserna, a garantir o controle das instituições da República, apesar de regurgitações do Congresso e do Supremo e as igrejas, principalmente poderosas agremiações religiosas neopentecostais, a garantirem a base social. E como, ocasionalmente, parte da sociedade está entorpecida por migalhas de auxílios financeiros pandêmicos (que foram direcionados por Paulo Guedes e equipe em doses cavalares aos bancos[1], empresas[2] e setores rentistas - a garantirem o apoio as elites ao governo de plantão), as condições objetivas para o avanço do autoritarismo de viés moralista parecem promissoras, nessa empreitada dos novos cruzados do século XXI.

Surfando nessa onda conservadora e confiando no apoio de instituições religiosas obscurantistas e no autoritarismo de caserna, Bolsonaro e seu grupo palaciano resolveram avançar no charco movediço das chamadas pautas de costumes, conforme revelou reportagem do domingo (13/09) da Folha de S. Paulo[3]. Armamento da população, criminalização da educação, da cultura e da ciência (com incentivo à educação familiar) e a transformação de veículos automotores em armamento para agradar brucutus da classe média são alguns dos projetos que serão tocados no Congresso Nacional. Nada mais belicoso e ultrajante à dignidade humana e, portanto, anticristão.

E por mais paradoxal que isso possa parecer, a base social para esse tipo de empreitada usa da religião. Aliás, o uso da religião tem caracterizado a nova extrema-direita global, como revelou recentemente o vaticanista Iacopo Scaramuzzi em um livro recém-publicado, intitulado “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), cuja capa estampa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin.

Em entrevista a Lucas Ferraz, no Intercept Brasil em julho deste ano[4], o estudioso do Vaticano argumenta que a exploração do cristianismo, católico e evangélico, tem como objetivo “louvar um passado supostamente glorioso, além de ter um forte apelo a todos aqueles perdidos com as crises econômica, política, cultural, da globalização etc.”. “O fenômeno opera atualmente numa rede global e é um dos pilares de projetos como o de Viktor Orbán e sua democracia cristã iliberal na Hungria, do recém-reeleito Andrzej Duda e sua tradição sacra na Polônia, de Matteo Salvini, que tentou se tornar homem forte do governo da Itália brandindo rosários e falando em nome de Maria, além de ter pavimentado a vitória de Jair Bolsonaro e seu ‘Deus acima de todos’”.

No Brasil, grupos religiosos estão à postos para servirem de escudo à empreita moralista, justamente quando se avizinha o pleito municipal. A estratégia, não por acaso, é que os dois principais grupos que buscam ampliar o sucesso eleitoral (policiais e religiosos), pretendem engrossar ainda mais as bases de cruzados moralistas[5]. Outro não acaso: os dois grupos são as principais bases de apoio do bolsonarismo.

Enquanto isso, Damares, sua equipe e grupos localizados estrategicamente em ministérios como o do meio ambiente, educação e secretaria da cultura já agem há algum tempo arrancando cercas jurídicas e até constitucionais, nas barbas dos “poderes que funcionam”, para a boiada ultraconservadora passar. Vida de gado.

Nos últimos dias, lideranças religiosas alinhadas à teologia da prosperidade (de um deus que abençoa aqueles que gostam e têm dinheiro) e à teologia do domínio (assentada no pressuposto de que o domínio da terra foi usurpado pelo diabo  que, no delírio obscurantista de grupos religiosos, são os comunistas, esquerdistas, socialdemocratas, cientistas, progressistas, feministas, movimento LGBT+ etc.) apareceram com destaque na mídia destilando veneno homofóbico[6], ou seja, usurpando da pauta moral e de costumes para suscitar engajamento e adesão nas redes sociais conservadoras.

Noutra frente de disputas reais e simbólicas persiste a discussão das isenções fiscais a instituições religiosas (apesar do veto presidencial de mentirinha)[7]. O controle público das movimentações financeiras de igrejas é relevante porque muitas das agremiações religiosas se transformaram em verdadeiras lavandeiras financeiras, como afirmou a antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz em entrevista à Revista Fórum: “Lavanderias do dinheiro do crime passa por agremiações religiosas. Onde é que você vai lavar o dinheiro do crime, você vai usar as agremiações religiosas porque cada uma delas tem um CNPJ. Então você pode criar uma casa de oração ali na esquina, lavar o dinheiro do crime e com isso também produzir intolerância religiosa, destruição de terreiros nas comunidades populares”, disse a especialista em segurança pública[8]. Isso sem contar a falta de transparência e eventual desvio de recursos financeiros, como denunciou o Ministério Público de Goiás em relação à construção da nova Basílica de Trindade. [9]

Uma reportagem da Agência Pública de agosto de 2020, intitulada “como o crime organizado tem explorado benefícios concedidos a igrejas para operar seus negócios ilegais”, informa que “uma investigação realizada por veículos de comunicação de dez países descobriu que, amparados nas leis de liberdade de culto, algumas igrejas e líderes religiosos nas Américas abusam da confiança de seus fiéis e cometem crimes como lavagem de dinheiro e fraude”.[10]

Não é de se estranhar a notícia do Portal G1, de 12/09, segundo a qual movimentações atípicas realizadas pela Igreja Universal do Reino de Deus, totalizando quase R$ 6 bilhões[11]. A Universal é uma dessas igrejas que mais ocupam cargos e espaços públicos. Inclusive patrocinou a criação de um partido político, o PRB, que mudou de nome (Republicanos) para surfar na onda da direita e extrema-direita[12].

Noutra reportagem da Agência Pública, comprova-se que uma aliança de Edir Macedo com Bolsonaro envolve presidência da Câmara, cargos no governo e perdão de dívidas às igrejas.[13]

Portanto, as relações entre igrejas, grupos ultraconservadores na política (nos três poderes, diga-se de passagem) e a utilização de dinheiro público e privado (dízimos e outras contribuições) para fins ilícitos é algo que merece toda a atenção.

Por outro lado, alianças entre o neopentecostalismo e o militarismo se dão em outras frentes. Reportagem da Revista Fórum de janeiro de 2020 intitulada “Igreja Universal cria seu exército particular com recrutamento de PMs” apresenta um vídeo institucional da “Universal nas Forças Policiais (UFP)”, braço da igreja de Edir Macedo nas “Forças de Segurança Pública, Forças Armadas e órgãos governamentais”. Segundo o vídeo, a Universal atingiu 983.441 policiais e familiares no ano de 2019, em 73.526 palestras, eventos e cafés realizados, e doado 439.471 “Bíblias e literaturas”.[14]

Esses são alguns dos sinais a demonstrarem que a nova onda de ataques de grupos bolsonaristas, nesse novo front de batalha, não se dará contra o Supremo ou o Congresso, mas contra os poucos avanços no campo de direitos dos chamados grupos minoritários (mulheres, negros, gênero), advindos com a Constituição Federal de 1988. Em artigo de maio deste ano intitulado “armar o país: a guerra santa bolsonarista” já prevíamos essa batalha político-religiosa. E a bancada BBB (bala, bíblia, boi) que não é nova (e conta com o apoio do “Novo”), parece oferecer o armamento de ocasião ao bolsonarismo.

O amálgama entre ultraconservadorismo religioso e militarismo autoritário merece atenção nessa quadra da nossa história.

Portanto, os democratas precisam olhar com bastante atenção para essa coalizão que une algumas igrejas e setores militares (ressalvando que há militares e igrejas democratas e republicanos) e, em muitas ocasiões, se associa às milícias, a revelar um perigoso pântano para o pouco que resta de democracia e a recordar tempos pouco memoráveis já vividos pela sociedade brasileira num passado recente.

 



terça-feira, 1 de setembro de 2020

Fascismo galopante: Bolsonaro é bode que repele e agrada

Observando o cenário sociopolítico e religioso no Brasil, nos últimos tempos, deparamos frontalmente com fatos que demonstram a urgência de se questionar o modelo que articula visceralmente o capitalismo (poder econômico) e uma democracia iliberal (poder político) com uma sociedade patriarcal-cristã-elitista.

No campo político-institucional, um governo militar-miliciano coligado com o que há de pior dos setores do cristianismo, empresariado, agronegócio e rentismo. Impulsionado por usurpadores de bens públicos e arrombadores, sem escrúpulos, das cercas e porteiras da Constituição e das leis, com forte apoio em segmentos moralistas e de mentalidade escravocrata da classe média privilegiada, em lideranças e instituições religiosas que depõem contra a ética cristã, em corporações judiciárias e outras semi-castas (profissionais liberais que se julgam elite), a coalizão no poder central soma-se ao fenômeno global da rearticulação da extrema-direita que, como uma ideologia autoritária sempre à espreita, ganha fôlego toda vez que são acentuadas as tensões e fragilidades sociais, notadamente num contexto de crise estrutural do capitalismo. 

Como analisa Robert Kurz, a direita radical é filha legítima da democracia, porque “toda democracia produz como reação imanente ao fim do processo de modernização, com regularidade lógica, o novo radicalismo de direita em qualquer de suas variações”. (A democracia devora seus filhos. Robert Kurz. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2020, 172 pp). Assim, o extremismo de direita no centro do capitalismo, neste momento histórico, corresponde ao aprofundamento da crise estrutural do capitalismo, sendo o novo radicalismo de direita filho legítimo da democracia de mercado, não uma excrescência.

Portanto, para além das questões conjunturais, trata-se de um processo histórico que se agudiza em sociedades periféricas marcadas por desigualdades e violências estruturais sempre maquiadas, naturalizadas e ratificadas pelas elites e setores conservadores da sociedade (como é o caso do Brasil).

É preciso superar o velho maniqueísmo que opõe o bem versus o mal e elege bodes expiatórios para purgar fenômenos sistêmicos, ao invés de enfrentá-los. Assim, Bolsonaro, em certa medida, não passa de um “bode malcheiroso na sala” que por um lado aponta à podridão de estruturas carcomidas por vícios históricos tolerados e compartilhados socialmente e que, mesmo assim, a exalar o odor putrefato, continua a mobilizar vários setores da sociedade, da política e da religião a comprovar que o “bode” não está sozinho. Ele, simplesmente, é o amálgama do velho (travestido de novo) que insiste em não morrer. Ou seja, Bolsonaro encarna o que parte significativa da sociedade, da política, da religião e da cultura sempre foi e continua sendo. Autoritarismo, racismo, misoginia, violência, vingança estão no ethos da nossa cultura; de todos os segmentos e classes. E esse é o monstro a ser enfrentado.

Isto posto, poderíamos apresentar, e não o faremos, um rosário de perguntas acerca dos limites do nosso modelo de sociedade, democracia, cultura política e religiosa.

Cidadãos e instituições poderiam fazer um esforço e pensar sobre isso...

sábado, 27 de junho de 2020

Acordão no horizonte sinaliza nova tentativa de pacto entre elites


Não é a primeira vez que isso ocorre nos últimos meses. Basta ler os editorais dos jornalões (dos barões da mídia), observar as análises econômicas de banqueiros e rentistas, acompanhar as manifestações de empresários (muitos de mentalidade escravocrata), verificar as manobras dúbias de coronéis da política e do judiciário para se levantar uma hipótese: parece que se costura, ou se tenta costurar, um grande acordão, com o Supremo com tudo, para -- fazendo vistas grossas aos muitos absurdos, crimes, violência à democracia e suas instituições protagonizados por Bolsonaro -- manter o bode malcheiroso na sala.

Para os segmentos elitistas da sociedade brasileira (e seus líderes) tudo pode ser relativizado, inclusive a civilidade, desde que o projeto neoliberal, conservador e excludente não seja ameaçado.
Discursos limpinhos e cheirosos, decantados em prosa e verso, sobre o “valor da democracia”, a “defesa da vida”, a “importância de se respeitar a Constituição” são como palavras ao vento para os tradicionais defensores de uma democracia de baixíssima intensidade, geradora de exclusão e garantidora de benesses. Tais slogans agradam a todos, gregos e troianos e interessam profundamente o 1% (os ricos) e os 30% da classe média (privilegiada) que, majoritariamente, desejam manter o Brasil na sua histórica posição entre os líderes mundiais de privilégios (para esses) e de desigualdade, violência e exclusão para os outros 70% da população. O que vale é uma democracia formal. Nunca, uma democracia real; substantiva.

Há que se perguntar aos arautos da “pátria mãe gentil” que aparecem nesses tempos sombrios: democracia para quem? Vida para quem? Liberdade para quem? Constituição para quem? Direitos ou privilégios?

Para os velhos e novos privilegiados do Brasil, que controlam “com lei e ordem”, ou “ordem e progresso” -- para agradar os positivistas --, um modelo de sociedade estruturada na violência, no racismo, na segregação socio-econômica-étnico-espacial, subserviente aos interesses de fora (primeiro da Europa, depois dos Estados Unidos da América), o importante é que Bolsonaro “se comporte” para atender aos seus interesses. E não atrapalhe Guedes e sua tropa neoliberal e rentista -- prepostos dos verdadeiros donos do poder.

Não interessa ao grupo do 1% e dos privilegiados:

- Se milhares de brasileiros, a maioria pobre e preta, morrerá na pandemia vítimas da incúria do governo central e sua tropa negacionista;

- Se populações indígenas estão sendo, mais uma vez, vítimas de genocídio -- com as vistas grossas desse mesmo governo;

- Se o povo é tratado como massa de manobra para atender aos interesses mais escusos das máfias e milícias incrustradas nos poderes econômico e político (e também religioso), com a complacência do governo;

- Se o estado está sendo militarizado para agradar os velhos intentos corporativos dos pretorianos das elites;

- Se no plano internacional o país se torna um pária, ignorado e gradativamente excluído, simbólica e objetivamente, no concerto das nações;

- Se o que resta do nossa soberania e meio-ambiente são negociados com quem der mais, de portas abertas para a boiada passar;

- Se o moralismo religioso (dos sepulcros caiados, obscurantistas e fundamentalistas) se impõe como política pública, estuprando o estado laico;

- Se o sistema de justiça continua um dos mais seletivos, elitistas e vingativos do planeta;

- Se o desmonte do Estado -- com a dilapidação de suas riquezas e patrimônio e a destruição das políticas públicas e sociais -- levará o país a bancarrota em pouco tempo...

Interessa para esses grupos de privilegiados a defesa de um modelo de sociedade que mantenha os lugares sociais historicamente pré-determinados (dos pobres, pretos, vulneráveis; enfim, dos descartáveis). E que a apropriação dos bens públicos, a expropriação das riquezas nacionais e a exploração do trabalho continuem monopólios garantidos às famílias dos coronéis de sempre.

O discurso de defesa da democracia e da Constituição, entre outros, muitas vezes é usado como um artigo de perfumaria, manobrado estrategicamente por esses privilegiados quando percebem que seus interesses estão ameaçados.

Mais uma vez, parece se construir um pacto entre elites, inclusive com alguns dos burocratizados setores das esquerdas. Um acordão que vira as costas para o povo, a soberania nacional, a possibilidade de construção de um país onde caibam todas e todos, mantendo-se um governo claramente neofascista.

Se não é possível disfarçar o malcheiroso bode que esses setores colocaram na sala, nem com colossal quantidade de perfume importado, parece que se pactuará para que o bode continue, desde que não estrague os planos dos capitães do mato de sempre.

Amém!

terça-feira, 16 de junho de 2020

AUTORITARISMO E OBSCURANTISMO: A POLÍTICA DO GOVERNO BOLSONARO



A decisão de excluir dados sobre violência policial de relatório sobre violação de direitos humanos é mais um capítulo da inclinação antidemocrática da atual gestão federal


Causou perplexidade à sociedade brasileira a decisão do governo Bolsonaro de excluir a violência policial do balanço anual sobre violações de direitos humanos no Brasil, divulgado anualmente no relatório do Disque 100 (o disque direitos humanos). Apesar de uma nota ambígua do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos negar que esconde tais dados, o fato concreto é que o relatório omitiu por completo as informações sobre violência policial.

Como se sabe, o Brasil é um dos campeões mundiais em violência e letalidade policial. Segundo o Monitor da Violência, elaborado em parceria pelo site G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da Universiadde de São Paulo, pelo menos 5.804 pessoas foram mortas por policiais em 2019. No Rio de Janeiro, segundo o Observatório da Segurança, ligado ao Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), a letalidade da polícia fluminense aumentou 92% em 2019 em relação a 2018.

O relatório “Direitos Humanos nas Américas: retrospectiva 2019”, da Anistia Internacional, não deixa dúvidas: “as autoridades federais e estatais adotaram um discurso de linha dura que alimentava a crescente violência contra a população em geral e contra as pessoas defensoras dos direitos humanos em particular” (p. 24); “o ano também foi cenário de um aumento do número de homicídios cometidos por polícias em serviço ativo.” (p.22).

No momento em que se discute globalmente a violência policial, depois do covarde assassinato de George Floyd nos Estados Unidos – que desmascarou a truculência e o racismo de departamentos de polícias naquele país --, o governo brasileiro opta por políticas de maquiagem e sonegação de dados justamente de um segmento estatal que, histórica e sistematicamente, dificulta a transparência das informações, obstaculizando o acesso a dados de interesse público que são fundamentais para a gestão estatal da segurança pública, além de corroborarem as legítimas demandas sociais por políticas correcionais, de aperfeiçoamento e de controle da atividade policial. 

Aliás, é importante registrar que a sonegação de dados sobre violência policial se inscreve numa série de medidas obscurantistas e autoritárias do atual governo que “tenta tapar o sol com a peneira” em termos de transparência e accountability. Recordemos, sumariamente, que estratégias similares são observadas nas tentativas de manipulação e/ou sonegação de dados sobre a pandemia, o desmatamento na Amazônia e outras informações públicas sobre meio ambiente, desigualdades sociais, drogas, racismo, dados demográficos, gastos presidenciais com cartão corporativo, entre outras áreas e políticas públicas. Um governo que oculta e/ou dificulta o acesso a dados públicos não pode ser considerado democrático.

No caso específico da violência policial, o governo Bolsonaro já sinalizou, repetidas vezes, seu projeto político baseado no incentivo à arbitrariedade de agentes do Estado. A posição dúbia no motim policial do Ceará, as reiteradas tentativas de institucionalizar o “excludente de ilicitude”, as manifestações públicas de aplauso e congratulações a policiais que praticam violência, o incentivo explícito ao armamento (sem controle estatal) da população e as denúncias que ligam o mandatário e sua família às milícias são sinais nada republicanos das tentativas do presidente em cooptar as polícias, alinhando-as ao seu projeto político autoritário.

O Brasil, na esteira dos acontecimentos mundiais, precisa urgentemente discutir a questão da violência policial. Mais que isso, precisamos debater sobre o mandato policial, tão obscuro, e retomar um debate nacional, sempre interrompido, sobre a função das polícias na nossa democracia.

Nesta quadra da vida sociopolítica, marcada por profunda instabilidade democrática, com um Executivo que constantemente flerta com o autoritarismo, o papel das instituições de segurança pública é crucial. Não é possível, nos marcos da democracia, que instituições policiais e as Forças Armadas sirvam a projetos de poder de grupos políticos, contra os interesses do povo e da Nação.

A tentativa de maquiar e esconder dados de violência policial só serve a interesses escusos, que devem ser rechaçados por todos aqueles que defendem os cânones do Estado Democrático de Direito.


Fonte: “Fonte Segura” – informativo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 16 a 22 de junho de 2020 – Edição 42.


segunda-feira, 25 de maio de 2020

Armar o país: a “guerra santa” bolsonarista


(Montagem: Brasil 247)

Uma das partes mais chocantes da famigerada reunião ministerial de 22 de abril de 2020 é a confirmação de Bolsonaro que pretende armar o Brasil e impor uma ditadura: "Olha como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Por isso eu quero que o povo se arme, a garantia de que não vai aparecer um filho da puta e impor uma ditadura aqui”.

Bolsonaro (e sua família) é um presidente visceralmente ligado às milícias; tem como principais bases de apoio o militarismo autoritário (mobilizado em segmentos das Forças Armadas e nas polícias estaduais) e um grupo considerável de fascistas (estimado em cerca de 15% da população) que já está armado (nas redes sociais e nas ruas). Sua eleição selou a aliança mais perversa da história republicana: dos setores ultraconservadores da sociedade brasileira (os radicais da extrema-direita) com o que há de pior no submundo da política (as redes de corrupção sistêmica que operam nos esgotos das negociatas público-privadas e que movimenta as relações mais espúrias desse país).

A tradicional falta de controle de armas, responsável por uma guerra que produz cerca de 60 mil homicídios por ano tende, com o projeto armamentista ditatorial de Bolsonaro, a se desaguar numa carnificina de proporções incalculáveis. Como lembra Janio de Freitas nesse domingo, “Bolsonaro sabe que o povão maltratado, humilhado, explorado e roubado em todos os seus direitos, no dia em que também tivesse ou tiver armas, não teria dúvida sobre o alvo do fogo de sua dor secular. Adeus ricos, adeus classe média alta”. Portanto, abram os olhos os privilegiados que pensam que a guerra bolsonarista é somente contra os pobres.

O bolsonarismo está amalgamado, entre outras, na seguinte coalizão: armamentistas, militaristas e obscurantistas religiosos. Esses novos cruzados se apoiam em ideologias toscas, cujo principal expoente é o astrólogo Olavo de Carvalho e o articulador midiático Steven Bannon (via gabinete do ódio no Brasil). No campo religioso duas teologias sustentam os “cavaleiros do apocalipse”.

A teologia da prosperidade, um bálsamo para o neoliberalismo, prega um deus que abençoa aqueles que tem dinheiro; que o pobre é pobre por sua falta de fé, ou seja, a vítima se transforma no algoz. Seus adeptos acreditam que a solução para as mazelas sociopolíticas é individual, baseada na meritocracia e que desigualdade e justiça são discursos “vitimistas”.

Por outro lado, a chamada “teologia do domínio”, derivação do teonomismo (teocracia cristã), se baseia no pressuposto de que o domínio da terra foi usurpado pelo diabo (no delírio obscurantista dos bolsonaristas religiosos, os comunistas, esquerdistas, socialdemocratas, cientistas, progressistas, feministas, movimento LGBT+ etc). Assim, é tarefa da “igreja dos bons cristãos” tomar esse domínio de volta. A estratégia para essa retomada é dominar todas as áreas de influência da sociedade (política, educação, cultura, judiciário), a fim de estabelecer o domínio de Jesus na terra. Isso explica a aliança geopolítica entre Trump (e os seus financiadores estadunidenses -- que também financiam alguns dos setores do neopentecostalismo ultraconservador em toda a América Latina), Netanyahu (porque  muitas lideranças evangélicas creem que a promessa bíblica da Terra Santa ao povo judeu é literal e eterna, portanto os adeptos do "dispensacionalismo", o retorno dos Judeus à Terra Santa - ou seja, o estabelecimento de Israel - é necessário para a volta de Cristo) e Bolsonaro (com os seus religiosos do “deus acima de tudo”). Vejam, não por acaso, que o triunvirato (Trump, Netanyahu e Bolsonaro) é armamentista e apoiado no militarismo e no discurso religioso ultraconservador.

Qualquer estudioso sabe: a aliança entre militarismo e religião nunca produziu bons resultados na história da humanidade. Mas, caminhamos a passos largos para um arremedo de neocristandade. Os três líderes, colocando-se como legítimos representantes de deus (certamente de Mamom) – porque estão seguros do apoio dos poderes econômico, militar e religioso – não contam com derrotas e, como numa guerra, agem como comandantes dispostos a arrebentar com todas as porteiras. Por isso, precisam armar seus exércitos.

Algumas frases de Bolsonaro na dita reunião confirmam seu propósito como o “messias” dessa nova cruzada: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã. Combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. (...) Com a benção de Deus, o apoio da minha família e a força do povo brasileiro trabalharei incansavelmente para que o Brasil se encontre com seu destino e se torne a nação que todos queremos."

É dentro desse contexto que devemos compreender a explicitação de Bolsonaro em relação a armar a população para esse “bom combate” do bem contra o mal. Trata-se, na sua visão e de sua principal base de apoio (militares e religiosos), de uma guerra santa que precisa de um exército armado. Empreitada que, na visão de Bolsonaro, seus ideólogos e parte de seus adeptos, surtiria resultados positivos com a união entre milicianos, militares e religiosos, armados até os dentes.