quinta-feira, 27 de agosto de 2015

As diferentes cidades dentro de uma cidade: segregação socioespacial, políticas públicas e melhoria das condições de vida dos pobres



Segregação socioespacial é um conceito que investiga a relação entre as posições que os agrupamentos humanos ocupam no espaço social e sua localização no espaço físico das cidades. O conceito articula os estudos sobre desigualdades socioeconômicas e sua relação com a distribuição das pessoas no espaço urbano.
Há que se considerar que os agentes sociais, nos dizeres de Bourdieu (1999), se constituem como tais em relação e pela relação com o espaço social, mas também com as coisas que são apropriadas por esses agentes (propriedades) e estão situadas num determinado lugar no espaço social (posição relativa abaixo, acima, entre) e pela distância entre eles.

Como o espaço físico é definido pela exterioridade mútua das partes, o espaço social é definido pela exclusão mútua (ou distinção) das posições que o constituem, isto é, como estrutura de justaposição de posições sociais (Bourdieu, 1999, p. 160).

           Para Sorokin (1980) é possível que um homem, no universo, apesar de estar perto do outro não tenha nenhuma relação com ele, pois a proximidade pode se dar somente no espaço geométrico, mas não no social. Ou seja, as pessoas podem se movimentar no espaço físico sem alterar sua posição no espaço social e, da mesma forma, podem ter sua posição social alterada permanecendo num mesmo espaço físico. Em outras palavras, pessoas próximas no espaço físico podem estar socialmente distantes, assim como pessoas distantes espacialmente podem compartilhar de um mesmo espaço social.

Assim, descobrir a posição de um homem ou de um fenômeno social no espaço social significa definir suas relações com um outro homem ou outro fenômeno social escolhido como “ponto de referência” (Sorokin, 1980, p. 225).

            Ainda discutindo o conceito de segregação, é possível identificar dimensões que caracterizem esse fenômeno. Sabatini e Sierralta (s/d) citando os estudos de Massey e Denton (1988) tratam de cinco dimensões que classificam os diferentes índices existentes de segregação quanto a uniformidade, exposição, concentração, centralização  e agrupamento.

Assim, um grupo social segregado seria aquele que não está uniformemente distribuído no espaço urbano; está minimamente exposto ao contato físico com membros de outros grupos; está espacialmente concentrado (em termos de uma alta densidade demográfica); é fortemente centralizado (no sentido de viver próximo à área central da cidade); e apresenta um marcado agrupamento territorial (Sabatini e Sierralta, s/d, p. 173).

            Martins (s/d, p. 04) respondendo a pergunta “se o conceito de segregação é pertinente para entender a realidade metropolitana” (brasileira) apresenta uma série de barreiras que segregam as pessoas: religiosas, de língua, culturais de diversos tipos, simbólicas e físicas. Segundo este autor, as cidades brasileiras pluriculturais (referia-se notadamente a São Paulo) nunca desenvolveram uma “cultura e mentalidade propriamente urbanas, referidas a um pluralismo democrático na concepção e no uso da cidade, em particular de seus espaços públicos e de seus novos espaços, suas áreas de expansão” (p. 01). Por isso, haveria diferentes modalidades de segregação,

Eu as veria [essas diferentes modalidades de segregação] como diferentes modalidades de construção de identidades coletivas parciais de base territorial e vicinal, formas positivas de elaboração de um modo de vida urbano num cenário de grandes adversidades: falta de equipamentos urbanos apropriados ao encontro social e à construção de identidades libertas de constrangimentos e agressões físicas e mesmo simbólicas; e renda territorial urbana muito alta, que nos últimos tempos tem estimulado a partilha condominial do preço da terra, justamente em condomínios e vilas fechadas (Martins, s/d, p. 04).

            Pode-se notar que nem toda separação no espaço caracteriza situações de segregação. Os autores fazem distinções entre a “diferenciação” que se relaciona à crescente especialização das tarefas, gerada pela divisão do trabalho (diferenciação dos grupos sociais) e “segmentação”, que ocorre quando há barreiras que impedem a mobilidade das pessoas entre categorias, o que implica na redução de oportunidades e das interações entre grupos sociais. Torres e outros (2003, p. 23) chamam a atenção para o fato de que “as consequências da segregação não são necessariamente consideradas negativas na literatura da área, mesmo no que diz respeito à segregação étnica. [...] O isolamento pode forjar a cooperação, mas também pode gerar corrupção política, crime e violência”.


            Fica evidente que a segregação socioespacial tem múltiplas causas: diferença de renda (entre grupos sociais e pessoas); é resultado de fatores econômicos, sociais e culturais; sinaliza a busca de status de determinados grupos; tem a ver, principalmente nas grandes cidades, com a influência e certas determinações do mercado imobiliário; com a distribuição de equipamentos de bem-estar coletivos; com diferenças de renda; com as intervenções e os investimentos públicos e as políticas urbanas.
            Sendo assim, cabe discutir qual o papel do Estado e, portanto, das políticas públicas no sentido de melhorar as condições de vida de grupos segregados (aqui referimo-nos aos pobres), dado que o ideal de igualdade das democracias supõe uma concepção de cidade como o lugar das interações entre os diferentes.

[...] o aumento da segregação residencial é contraditório com o ideário igualitário e democrático presente na ideologia republicana que fundamenta a dinâmica política dessas sociedades desde a segunda guerra mundial. Por outro lado, o tema da segregação residencial assume importância também em razão de outros estudos sobre a pobreza urbana destacarem os seus mecanismos de reprodução no contexto urbano. Tais estudos têm indicado a crescente correlação entre os fenômenos da destituição social e a concentração dos grupos em situação de vulnerabilidade em territórios crescentemente homogêneos, na medida em que neles cria-se uma dinâmica de causação circular da pobreza (Ribeiro, 2003, p. 157).

            Os estudos sobre segregação socioespacial têm apontado as desigualdades como fator que diminui as oportunidades de mobilidade social, acesso ao emprego, estreitamento dos horizontes de oportunidades para os pobres. Portanto, o estudo do tema é de grande utilidade para o planejamento e implementação de políticas públicas que atuariam na distribuição de renda, no provimento de moradias populares em diferentes áreas das cidades, com políticas focalizadas para os grupos mais vulneráveis que, por exemplo, legalizem os espaços urbanos das favelas com melhorias de infraestrutura e provimento de equipamentos públicos, entre outras ações.


            Cabe aqui, mesmo que sucintamente, introduzir o conceito de vulnerabilidade social que está associado às desvantagens sociais que são produtos e reflexos da pobreza. Essas desvantagens afetam negativamente as pessoas, grupos sociais, espaços urbanos, com efeitos perversos no exercício da cidadania desses grupos. Portanto, há uma relação entre segregação socioespacial, vulnerabilidade social e vulnerabilização da cidadania.

Esta vulnerabilidade se expressa, portanto, no cerceamento dos direitos, sejam eles econômicos, políticos e culturais. Aqui, conectam-se a discussão da pobreza e da exclusão: o cerceamento do direito de ter dignidade, de ter saúde, de ter habilitação digna, de ser respeitado, de ter participação política, de ser representado, de ser ouvido, de poder falar (Hogan e Marandola Jr, s/d, p. 29).


Segundo Torres e outros (2003, p. 21) “é muito importante entender que, se a segregação pode ser gerada por ações governamentais; também é verdade que o Estado tem condições de mitigar esse efeito, criando políticas públicas de integração social e espacial.” Estes autores apresentam dois grupos de ações governamentais que podem se constituir como estratégias de intervenção sobre o espaço urbano. São elas:
(a) políticas governamentais relativas ao espaço construído (regulação urbana, investimento em infraestrutura urbana nas partes da cidade habitadas pelos pobres). Essas políticas podem

incentivar processos de mobilidade espacial que operam na direção oposta dos padrões de segregação, misturando as pessoas; também podem dirigir as futuras ações governamentais para determinadas regiões da cidade que são consideradas prioridades sociais, melhorando as condições das periferias, favelas e cortiços e, assim, reduzindo a diferença entre os grupos sociais (Fernandes, 1998; apud Torres e outros, 2003, p. 21).

(b) políticas sociais “espacialmente organizadas”- incluem um conjunto de políticas públicas (educação, saúde, assistência social, esportes, cultura e lazer), “criando e transformando o espaço social, pois a localização de seus equipamentos (e suas diferentes características de inserções no espaço) definem as condições de acesso dos vários grupos sociais que habitam na cidade. (Torres e outros, 2003, p. 22).
Por fim, Kaztman (2001), num estudo sobre recentes transformações na estrutura social de países latinoamericanos, aponta para a questão do isolamento social dos pobres urbanos. Para este autor, o resultado dessas transformações

debilitam os vínculos dos pobres urbanos com o mercado de trabalho e se estreitam os âmbitos de sociabilidade informal com pessoas de outras classes sociais, o que conduziria a seu progressivo isolamento (Kaztman, 2001, p. 171, tradução nossa).

            Kaztman (2001) afirma neste estudo que “a pobreza urbana socialmente isolada se constitui no caso paradigmático da exclusão social”. Há um tripé que propicia o isolamento social dos pobres urbanos: segregação residencial, do trabalho e educacional. A exclusão dos pobres fica patente na segmentação do trabalho (precarização do emprego); segmentação educativa: “se os ricos vão aos colégios dos ricos, se a classe média vai aos colégios da classe média e os pobres aos colégios dos pobres, parece claro que o sistema educativo pouco pode fazer para promover a integração social e evitar a marginalidade, pese os seus esforços para melhorar as oportunidades educativas dos que têm menos recursos” (p. 177). Ademais, “crer unicamente que os méritos vão ajudar a mobilidade social é um ficção que só se cumpre em situações extraordinárias” (p. 177). Há, ainda, a segregação residencial “que se refere ao processo pelo qual a população das cidades vão se localizando em espaços de composição homogênea”, com verificável “concentração dos pobres em determinados bairros das cidades” (p. 178).


            Assim, o Estado tem o poder de intervir no espaço urbano com obras públicas, como investimentos na construção e melhoria das habitações populares o que poderia atuar fortemente sobre a formação de guetos urbanos (tanto os condomínios que segregam os ricos, quanto as favelas, que segregam e marginalizam os pobres).

O Estado também pode incentivar ou não incentivar a universalidade no uso de serviços básicos como o transporte, a segurança pública, a saúde e a educação, fazendo maiores ou menores esforços para manter sua qualidade e deixando mais ou menos liberado ao jogo da oferta e da demanda a possibilidade de adquirir esses serviços no mercado, opções que têm óbvias implicações sobre a probabilidade de deserção das classes médias e altas do âmbito público. (Kaztman, 2001, p. 183).
           
Este autor apresenta como conclusão de suas investigações um rol de experiências bem sucedidas que podem intervir na tendência segregacionista das grandes cidades. São iniciativas de integração social, desenhadas para este fim com elaboração de políticas publicas setoriais que

afetam as medidas do ordenamento urbano, a seleção de beneficiários de conjuntos habitacionais subsidiados, a defesa da qualidade dos serviços públicos e a promoção de espaços que estimulem os contatos informais entre as classes. Seu exame minucioso permitirá selecionar aquelas que melhor se ajustem aos recursos e as características singulares de cada sociedade. (Kaztman, 2001, p. 188).



Referências bibliográficas:
BOURDIEU, P. Efeitos de lugar. IN: BOURDIEU, P. (coord.) A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, 1999.
HOGAN, D. N e MARANDOLA JR, E.  Para uma conceituação interdisciplinar da vulnerabilidade. (S/D). Texto xerocado, distribuído pelos professores da disciplina, sem outras referências bibliográficas.
KAZTMAN, R. Seducidos y abandonados: el aislamento social de los pobres urbanos. Revista de La Cepal, 75, dezembro, 2001.
MARTINS, José de Souza. Em fuga? Notas sobre a “segregação” no modo de vida da metrópole. S/D. Texto xerocado, distribuído pelos professores da disciplina, sem outras referências bibliográficas.
RIBEIRO, L. C. Q. Segregação residencial e políticas públicas: análise do espaço social da cidade na região do território. IN: NETO, E. R. e BÓGUS, C. M. (orgs)Saúde nos aglomerados urbanos: uma visão integrada. Brasília, Organização Panamericana de Saúde, 2003.
SABATINI, F e SIERRALTA, C. Medições da segregação residencial: meandros teóricos e metodológicos e especificidade latino-americana. S/D. Texto xerocado, distribuído pelos professores da disciplina, sem outras referências bibliográficas.
SOROKINA, P. Espaço social, distância social e posição social. IN: CARDOSO, F. H. e IANNI, O. Homem e Sociedade: leituras básicas de sociologia geral. São Paulo, Ed. Nacional, 1980.
TORRES, H. G.; MARQUES, E.; FERREIRA, M. P.; BITAR, S. Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo. São Paulo, Estudos Avançados, 17 (47): 1 – 32, 2003.