quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Novo cenário político brasileiro: para onde o país pode ir?


O grande embate político contemporâneo se resume na seguinte questão: se ainda há democracia no Brasil, ela pode conviver com um ultraliberalismo populista, moralista e autoritário a partir da eleição e da posse de Bolsonaro, Witzel, Doria, Zema, entre outros e de um Congresso majoritariamente moralista e conservador?
Dois projetos de sociedade estão no centro da disputa política e econômica. De um lado, articularam-se partidos políticos identificados com grupos, movimentos e as lutas políticas emancipatórias, cujos programas focam na continuidade do processo de construção de uma sociedade mais democrática, inclusiva e igualitária, cujo marco histórico foi a Constituição Federal de 1988.
Doutro, partidos e políticos (vitaminados pela mídia empresarial) que participam de um amplo espectro ideológico conservador, a representarem os interesses do poder econômico, em sua fase rentista e especulativa, e que defendem um estado mínimo, garantidor de privilégios para as elites (e parcelas da classe média conservadora), a contenção e o controle penal para a classe trabalhadora e os pobres e a volta uma moralidade de base religiosa que implica da negação das diversidades.
Uma rápida visão histórica torna-se imprescindível nessa análise. Em sociedades verdadeiramente democráticas, os governos estão a serviço dos interesses públicos e coletivos, atuando para o provimento e a consolidação de políticas públicas capazes de mitigar os efeitos avassaladores de uma economia que, cada vez mais, precede e domina a política.
Historicamente, o Brasil nunca foi um país inteiramente democrático. A violência multifacetada - gerada pela exclusão social, pela justiça seletiva, por uma elite de mentalidade escravocrata e pelo patriarcalismo indutor de múltiplas formas de opressão - sempre impediu a efetivação de direitos para todos, por um lado e, por outro, desequilibra as disputas sociopolíticas à medida que a maioria do povo é sistematicamente esmagada por essa ordem social elitista.
As relações de mando e obediência, características da hierarquização da sociedade brasileira, estão presentes no cotidiano das famílias, das igrejas, das relações de trabalho, nas escolas e em quase todos os espaços da vida, a definir uma cidadania marcada por privilégios de uns pouco e uma subcidadania - caracterizada pela não efetivação dos direitos - à maioria da população.
A criação e efetivação de direitos é recente, no Brasil. A Constituição Federal de 1988 e os governos seguintes deram alguns passos importantes para a construção de uma sociedade minimamente igualitária e justa. Mas, quando estávamos no caminho civilizatório, a sair de uma democracia meramente formal e de baixíssima intensidade para uma democracia de fato veio, mais uma vez, de forma violenta e avassaladora, uma ruptura institucional, em 2016, com o processo de impeachment de Dilma Rousseff que consolidou um período de assunção de demandas conservadoras e elitistas iniciadas mais explicitamente com as chamadas jornadas de junho de 2013.
Os históricos segmentos refratários e violentos da sociedade brasileira (as elites econômicas do empresariado, dos bancos e do agronegócio; os setores retrógrados da classe média, representados no Congresso pela bancada da Bala, da Bíblia e do Boi no Congresso; a mídia empresarial antidemocrática e segmentos privilegiados do sistema de justiça) se uniram para golpear a trajetória de construção gradual de uma sociedade verdadeiramente democrática. Isso no contexto de uma gravíssima crise econômica que se abateu sobre o país, fragilizando ainda mais o governo central - já desgastado pelo processo eleitoral belicoso de 2014, as jornadas de junho de 2013 e as várias operações policiais-judiciais seletivas que traziam à baila processos endêmicos de corrupção política no Brasil.
O importante é perceber que por trás do conjunto de atores sociais e políticos conservadores que comandaram o processo de impeachment estão os interesses do poder econômico. Para aniquilar a democracia de fato, o poder econômico atua com esses segmentos, na sociedade e na política, a criarem condições para um modelo de governança que retira do povo a soberania e a transfere para o deus-mercado.
O quadro mundial também deve ser considerado. A subalternidade da política à economia, característica do neoliberalismo, ajuda a explicar a crise de legitimidade das instituições públicas, a centralidade do deus-mercado e a guerra midiático-judicial contra os governos populares.
Assim, podemos falar de um estado de exceção - uma exigência do neoliberalismo -, que reconfigura as estruturas do poder e do Estado a partir de uma lógica de exceção, corroendo até mesmo os pressupostos da democracia liberal.
Trata-se de um estado de exceção porque convivemos com uma democracia sem povo, a serviço do mercado, e sustentada por medidas autoritárias dos três poderes amalgamados num só sistema contra o povo e a Nação.
Portanto, a ruptura havida em 2016 se baseou numa ideologia segundo a qual o poder público, portanto o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos. O político, nesses termos, deixa de ser um representante eleito a mediar os vários e legítimos interesses e conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos da maioria dos cidadãos.
No estado neoliberal, o espaço privado dos interesses dos poderosos é alargado e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido. Nos termos do neoliberalismo é impossível uma democracia de fato. Só serve uma democracia tutelada pelos donos do capital ou por seus prepostos nos poderes do Estado.
Com as eleições de 2018 encerrou-se m ciclo de ampliação de direitos e tentativa de consolidação de um estado de bem-estar social no Brasil, inaugurado com a Constituição Federal de 1988 e abriu-se um novo ciclo, que será marcado pela voracidade no desmonte do estado social, restrição de direitos, controle e perseguição a movimentos e lideranças sociais, eclesiais e culturais e implementação de políticas que visarão o incremento da “economia que mata”, nos dizeres do Papa Francisco.
Três grupos do governo Bolsonaro se encarregarão dessas pautas: no plano econômico, o grupo ultraliberal, liderado por Paulo Guedes, que conta com a empatia do vice-presidente Mourão; no plano legal, o grupo punitivista, liderado por Sérgio Moro, que, paradoxalmente, é a “cereja do bolo” do presidente e seu clã; e no plano dos costumes, o grupo moralista e conservador de base religiosa, liderado por Damares Alves, Ricardo Velez e pelo chanceler Ernesto Araújo, inspirados no ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o guru do governo de plantão.
É preciso registrar que o governo Bolsonaro surge, também, como uma ameaça totalitária. Além de Bolsonaro personificar, em certa medida, os estereótipos que lembram um ditador (que se comunica diretamente com o povo, desprezando a institucionalidade e se impondo como dono da verdade), o mais assustador é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições sociais e políticas quando (elas) se tornam homogêneas. E o alinhamento dos demais poderes da República a ideais autoritários do novo presidente, como se percebe no atual Congresso e em parte do Judiciário, podem indicar a tenebrosa perspectiva totalitária.
Registre-se, também, que as políticas anunciadas pelo governo Bolsonaro no âmbito da economia são ultraliberais e o ultraliberalismo é uma forma contemporânea do totalitarismo: tudo é pensado como se fosse uma empresa privada, inclusive o Estado. Elegem-se gestores como governantes e prima-se pela meritocracia. Ora, se o Estado e as instituições públicas são empresas, como será possível lidar com os conflitos, a diversidade e a exclusão social, por exemplo?  
Interessante observar o “novo” governo e suas disputas no campo religioso. De maneira bastante breve, é preciso anotar que os segmentos neopentecostais dentro do protestantismo e do catolicismo continuam ativos e usam sem constrangimento a estratégia de guerrilha para a defesa de uma cosmovisão fundamentada em valores conservadores e reacionários. Continuarão atacando os segmentos identificados com ações sociopolíticas transformadoras e disputarão, cada vez mais, as narrativas sobre o significado do cristianismo em tempo de adensamento da exclusão, das fakes News, dos discursos de ódio e da violência - em nome da moral e dos bons costumes da família tradicional cristã. São visões de mundo e valores que não podem ser desprezados, porque significam, para esses segmentos, o fundamento de sua fé.
Por fim, no espectro político-institucional há imensos desafios para o campo democrático e popular pela frente. Entre os principais, a formação de uma ampla aliança de centro-esquerda democrática; a reaproximação dos partidos de inspiração socialdemocrata e socialista com as bases da sociedade e a refundação das esquerdas para enfrentarem, com uma oposição consistente, um governo de viés nitidamente autoritário.
A curto prazo, o Brasil caminha a passos largos para a desconstrução das políticas de bem-estar social advindas com a Constituição Federal de 1988, a começar pela chamada “reforma da previdência”. Medidas punitivistas e de recrudescimento de um estado penal seletivo foram escancaradas no “pacote anticrime” de Moro. No plano moral e de costumes, as investidas do ministro Velez e da ministra Damares não deixam dúvidas da pauta moralista e conservadora que se espraiará sobre múltiplos setores da sociedade. E no plano das relações internacionais o chanceler Araújo, apesar de tutelado por militares das Forças Armadas, continua acreditando que Trump é o salvador da civilização ocidental, a sinalizar que conflitos de múltiplas ordens poderão isolar o país da concertação internacional.
Isso sem contabilizar as disputas viscerais intragoverno:  do presidente e seu clã com o vice; dos grupos  que querem se sobressair, liderados por Paulo Guedes, Moro, Onix, entre outros; da política rasteira que se inaugura nas duas casas do Congresso e na ação ou inação do sistema de justiça diante de acusações gravíssimas que pesam sobre o clã presidencial, ministros de seu governo e aloprados com se comportam como donos do poder. Noves fora a participação (ação, conivência e/ou omissão) das Forças Armadas nessa verdadeira maionese.
Aguardemos...