O grande embate político contemporâneo se resume na
seguinte questão: se ainda há democracia no Brasil, ela pode conviver com um
ultraliberalismo populista, moralista e autoritário a partir da eleição e da posse de
Bolsonaro, Witzel, Doria, Zema, entre outros e de um Congresso majoritariamente
moralista e conservador?
Dois projetos de sociedade estão no centro da disputa
política e econômica. De um lado, articularam-se partidos políticos
identificados com grupos, movimentos e as lutas políticas emancipatórias, cujos
programas focam na continuidade do processo de construção de uma sociedade mais
democrática, inclusiva e igualitária, cujo marco histórico foi a Constituição Federal
de 1988.
Doutro, partidos e políticos (vitaminados pela mídia
empresarial) que participam de um amplo espectro ideológico conservador, a representarem
os interesses do poder econômico, em sua fase rentista e especulativa, e que defendem
um estado mínimo, garantidor de privilégios para as elites (e parcelas da
classe média conservadora), a contenção e o controle penal para a classe
trabalhadora e os pobres e a volta uma moralidade de base religiosa que implica
da negação das diversidades.
Uma rápida visão histórica torna-se imprescindível
nessa análise. Em sociedades verdadeiramente democráticas, os governos estão a
serviço dos interesses públicos e coletivos, atuando para o provimento e a
consolidação de políticas públicas capazes de mitigar os efeitos avassaladores
de uma economia que, cada vez mais, precede e domina a política.
Historicamente, o Brasil nunca foi um país inteiramente
democrático. A violência multifacetada - gerada pela exclusão social, pela
justiça seletiva, por uma elite de mentalidade escravocrata e pelo patriarcalismo
indutor de múltiplas formas de opressão - sempre impediu a efetivação de
direitos para todos, por um lado e, por outro, desequilibra as disputas
sociopolíticas à medida que a maioria do povo é sistematicamente esmagada por
essa ordem social elitista.
As relações de mando e obediência, características da
hierarquização da sociedade brasileira, estão presentes no cotidiano das
famílias, das igrejas, das relações de trabalho, nas escolas e em quase todos
os espaços da vida, a definir uma cidadania marcada por privilégios de uns
pouco e uma subcidadania - caracterizada pela não efetivação dos direitos - à
maioria da população.
A criação e efetivação de direitos é recente, no
Brasil. A Constituição Federal de 1988 e os governos seguintes deram alguns
passos importantes para a construção de uma sociedade minimamente igualitária e
justa. Mas, quando estávamos no caminho civilizatório, a sair de uma democracia
meramente formal e de baixíssima intensidade para uma democracia de fato veio,
mais uma vez, de forma violenta e avassaladora, uma ruptura institucional, em
2016, com o processo de impeachment
de Dilma Rousseff que consolidou um período de assunção de demandas conservadoras
e elitistas iniciadas mais explicitamente com as chamadas jornadas de junho de
2013.
Os históricos segmentos refratários e violentos da
sociedade brasileira (as elites econômicas do empresariado, dos bancos e do
agronegócio; os setores retrógrados da classe média, representados no Congresso
pela bancada da Bala, da Bíblia e do Boi no Congresso; a mídia empresarial
antidemocrática e segmentos privilegiados do sistema de justiça) se uniram para
golpear a trajetória de construção gradual de uma sociedade verdadeiramente
democrática. Isso no contexto de uma gravíssima crise econômica que se abateu
sobre o país, fragilizando ainda mais o governo central - já desgastado pelo
processo eleitoral belicoso de 2014, as jornadas de junho de 2013 e as várias
operações policiais-judiciais seletivas que traziam à baila processos endêmicos
de corrupção política no Brasil.
O importante é perceber que por trás do conjunto de
atores sociais e políticos conservadores que comandaram o processo de impeachment estão os interesses do poder
econômico. Para aniquilar a democracia de fato, o poder econômico atua com esses
segmentos, na sociedade e na política, a criarem condições para um modelo de
governança que retira do povo a soberania e a transfere para o deus-mercado.
O quadro mundial também deve ser considerado. A
subalternidade da política à economia, característica do neoliberalismo, ajuda
a explicar a crise de legitimidade das instituições públicas, a centralidade do
deus-mercado e a guerra midiático-judicial contra os governos populares.
Assim, podemos falar de um estado de exceção - uma
exigência do neoliberalismo -, que reconfigura as estruturas do poder e do
Estado a partir de uma lógica de exceção, corroendo até mesmo os pressupostos
da democracia liberal.
Trata-se de um estado de exceção porque convivemos com
uma democracia sem povo, a serviço do mercado, e sustentada por medidas
autoritárias dos três poderes amalgamados num só sistema contra o povo e a
Nação.
Portanto, a ruptura havida em 2016 se baseou numa ideologia
segundo a qual o poder público, portanto o Estado, deve ser administrado como
uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter
como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para
se preocupar e garantir os interesses de uns poucos. O político, nesses termos,
deixa de ser um representante eleito a mediar os vários e legítimos interesses
e conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor,
ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no
neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e
financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos da
maioria dos cidadãos.
No estado neoliberal, o espaço privado dos interesses
dos poderosos é alargado e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos dos
cidadãos é encolhido. Nos termos do neoliberalismo é impossível uma democracia
de fato. Só serve uma democracia tutelada pelos donos do capital ou por seus
prepostos nos poderes do Estado.
Com as eleições de 2018 encerrou-se m ciclo de
ampliação de direitos e tentativa de consolidação de um estado de bem-estar
social no Brasil, inaugurado com a Constituição Federal de 1988 e abriu-se um
novo ciclo, que será marcado pela voracidade no desmonte do estado social,
restrição de direitos, controle e perseguição a movimentos e lideranças
sociais, eclesiais e culturais e implementação de políticas que visarão o
incremento da “economia que mata”, nos dizeres do Papa Francisco.
Três grupos do governo Bolsonaro se encarregarão
dessas pautas: no plano econômico, o grupo ultraliberal, liderado por Paulo
Guedes, que conta com a empatia do vice-presidente Mourão; no plano legal, o
grupo punitivista, liderado por Sérgio Moro, que, paradoxalmente, é a “cereja
do bolo” do presidente e seu clã; e no plano dos costumes, o grupo moralista e
conservador de base religiosa, liderado por Damares Alves, Ricardo Velez e pelo
chanceler Ernesto Araújo, inspirados no ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o guru
do governo de plantão.
É preciso registrar que o governo Bolsonaro surge,
também, como uma ameaça totalitária. Além de Bolsonaro personificar, em certa
medida, os estereótipos que lembram um ditador (que se comunica diretamente com
o povo, desprezando a institucionalidade e se impondo como dono da verdade), o
mais assustador é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições sociais e
políticas quando (elas) se tornam homogêneas. E o alinhamento dos demais
poderes da República a ideais autoritários do novo presidente, como se percebe
no atual Congresso e em parte do Judiciário, podem indicar a tenebrosa perspectiva
totalitária.
Registre-se, também, que as políticas anunciadas pelo
governo Bolsonaro no âmbito da economia são ultraliberais e o ultraliberalismo
é uma forma contemporânea do totalitarismo: tudo é pensado como se fosse uma
empresa privada, inclusive o Estado. Elegem-se gestores como governantes e prima-se
pela meritocracia. Ora, se o Estado e as instituições públicas são empresas, como
será possível lidar com os conflitos, a diversidade e a exclusão social, por
exemplo?
Interessante observar o “novo” governo e suas disputas
no campo religioso. De maneira bastante breve, é preciso anotar que os
segmentos neopentecostais dentro do protestantismo e do catolicismo continuam
ativos e usam sem constrangimento a estratégia de guerrilha para a defesa de
uma cosmovisão fundamentada em valores conservadores e reacionários. Continuarão
atacando os segmentos identificados com ações sociopolíticas transformadoras e
disputarão, cada vez mais, as narrativas sobre o significado do cristianismo em
tempo de adensamento da exclusão, das fakes News, dos discursos de ódio e da
violência - em nome da moral e dos bons costumes da família tradicional cristã.
São visões de mundo e valores que não podem ser desprezados, porque significam,
para esses segmentos, o fundamento de sua fé.
Por fim, no espectro político-institucional há imensos
desafios para o campo democrático e popular pela frente. Entre os principais, a
formação de uma ampla aliança de centro-esquerda democrática; a reaproximação
dos partidos de inspiração socialdemocrata e socialista com as bases da sociedade
e a refundação das esquerdas para enfrentarem, com uma oposição consistente, um
governo de viés nitidamente autoritário.
A curto prazo, o Brasil caminha a passos largos para a
desconstrução das políticas de bem-estar social advindas com a Constituição Federal
de 1988, a começar pela chamada “reforma da previdência”. Medidas punitivistas
e de recrudescimento de um estado penal seletivo foram escancaradas no “pacote
anticrime” de Moro. No plano moral e de costumes, as investidas do ministro Velez
e da ministra Damares não deixam dúvidas da pauta moralista e conservadora que
se espraiará sobre múltiplos setores da sociedade. E no plano das relações
internacionais o chanceler Araújo, apesar de tutelado por militares das Forças
Armadas, continua acreditando que Trump é o salvador da civilização ocidental, a
sinalizar que conflitos de múltiplas ordens poderão isolar o país da
concertação internacional.
Isso sem contabilizar as disputas viscerais intragoverno:
do presidente e seu clã com o vice; dos
grupos que querem se sobressair,
liderados por Paulo Guedes, Moro, Onix, entre outros; da política rasteira que
se inaugura nas duas casas do Congresso e na ação ou inação do sistema de
justiça diante de acusações gravíssimas que pesam sobre o clã presidencial,
ministros de seu governo e aloprados com se comportam como donos do poder. Noves
fora a participação (ação, conivência e/ou omissão) das Forças Armadas nessa
verdadeira maionese.
Aguardemos...
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