sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Campanha da Fraternidade: Superação da Violência


Campanha da Fraternidade de 2018, organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem como tema “Fraternidade e Superação da Violência”.

Do Carnaval até a Semana Santa os cristãos são convidados a refletirem sobre formas de superação da violência no âmbito individual, comunitário, social e institucional.

Reproduzo, abaixo, uma entrevista que concedi à Revista “Bote Fé”, de Edições CNBB, sobre o tema. As respostas estão baseadas no texto produzido pelo Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas que colaborou com a CNBB na produção do diagnóstico da violência, para o texto-base.

SUPERAÇÃO DA VIOLÊNCIA
“Não há solução para a violência fora das discussões que ocorrem no âmbito da política”, esta é a opinião de Robson Sávio Reis Souza, doutor em Ciências Sociais, integrante da Rede de Assessores do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep/CNBB) e que trabalhou como colaborador do Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2018. Ele também é professor da PUC Minas, onde coordena o Núcleo de Estudos Sociopolíticos, especialista em Segurança Pública e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O professor – que também é autor do livro “Quem comanda a segurança pública no Brasil: atores, crenças e coalizões que dominam a política nacional de segurança pública” (Editora Letramento, 2015, 336 p.) – ajuda a compreender a natureza da violência no Brasil e os possíveis caminhos para a sua superação.

A ideia de que o povo brasileiro é ordeiro e de que há uma sociabilidade pacífica é um mito nacional? 
A experiência do viver em paz fundamenta a autoimagem de um povo que se concebe como pacífico, ordeiro e inimigo da violência. Contudo, essa ideia não apaga as contradições. Ao mesmo tempo em que se ostenta a vida pacífica, produz-se e promove-se a violência, tanto no espaço público como no ambiente privado de casas e empresas; nas interações pessoais diretas ou mediadas pela tecnologia. Constata-se que, até mesmo nas relações sociais cotidianas, o equilíbrio necessário à existência pacífica tem aparecido frágil e suscetível a abalos, inflamados frequentemente por razões banais. Nesse movimento de transformação social, tem emergido uma sociabilidade que vai se concretizando em ações cotidianas violentas. A cordialidade parece ceder lugar à intolerância. O compartilhamento negociado de espaços e recursos parece, então, correr o risco de ser substituído pela imposição autoritária de pontos de vista e a subjugação do outro pelo uso da força, seja ela simbólica ou, em certos casos, até mesmo física. Em razão de fenômenos como esses, é possível suspeitar que a sociedade brasileira possa estar consolidando modos de vida referenciados no uso da força e da violência.
A violência se torna o fio condutor da forma como se realiza a sociabilidade, isto é, a forma como uma pessoa interage com as demais em um certo grupo social.
Por vezes, para combater a violência, escolhem-se condutas violentas. A concepção punitiva da justiça feita pelas próprias mãos, o incremento dos equipamentos de segurança pela população em busca de autoproteção, a exigência do maior rigor nas leis e do aumento dos presídios são exemplos de como o discurso contra a violência às vezes se converte em práticas que podem vir a aumentar ainda mais a sociabilidade violenta. Isso ocorre quando se pretender fazer o combate da violência pelo recurso a instrumentos potencialmente geradores de mais violência.


No texto base da CF 2018 vocês falam de uma violência multifacetada e epidêmica que faz parte da história do país. Multifacetada e epidêmica? O que estas expressões dizem sobre a natureza da violência em nosso país?
O Brasil é uma sociedade injusta, excludente e extremamente desigual que exibe uma democracia sem cidadania. Injustiça, exclusão e desigualdade são fatores que geram múltiplas formas de violência. A fome, o desemprego, a falta de moradia, de políticas públicas de proteção e promoção de direitos são tipos de violência que afetam a dignidade humana.
Apesar de ser a oitava maior economia mundial, é o décimo país mais desigual do mundo, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano, de 2016, elaborado pela Organização das Nações Unidas. 
Em relação à violência letal, por exemplo, os números apontados pelo Mapa da Violência 2016, mostram que, no Brasil, cinco pessoas são mortas por arma de fogo a cada hora. A cada único dia são 123 pessoas assassinadas dessa forma.
Por ano, quase 60 mil brasileiros são assassinados. A maioria pobres, negros, jovens e moradores da periferia. É uma violência seletiva. Não atinge a todos. No Brasil, há locais mais seguros que a Europa e mais violentos que a Síria.  Talvez, por isso, a violência letal não apareça como um escândalo que clama aos céus, para muitos segmentos da sociedade e dos governos.
Essas cifras revelam que, no Brasil, ocorrem mais mortes por arma de fogo do que nas chacinas e atentados que acontecem em todo o mundo. Contam-se mais homicídios aqui do que em diversas das guerras recentes.

Os episódios de violência intensificaram-se e, ao que parece, tornaram-se comuns também em médios e pequenos centros urbanos, deixando de ser um fenômeno típico das grandes metrópoles. O que explica esta realidade?
Se antes a violência era um problema relativo às grandes cidades, em tempos recentes, numerosos fatores fizeram com que a violência chegasse também aos médios e pequenos municípios. Além disso, ela se disseminou por todo o território nacional, de modo que – apesar das variações regional ou local em sua intensidade – a violência é hoje um problema em todo o país.
O incremento da violência pelo interior do país é determinado por múltiplos fatores, dificilmente redutíveis a uma causalidade única. Entretanto, não há como ignorar a influência do contexto socioeconômico na geração da violência.
Os dados disponíveis permitem afirmar que o sistema de segurança pública e de justiça criminal é ineficaz. Com o aumento da criminalidade a partir da década de 1980 foi-se consolidando um contexto em que a impunidade, a maior procura por drogas ilícitas e a maior disponibilidade de armas de fogo formaram o ambiente no qual se deu o crescimento dos homicídios e de outros crimes contra a pessoa e contra o patrimônio. Ao invés de se rediscutirem o funcionamento e os objetivos do aparato estatal de segurança e justiça criminal para lidarem com a prevenção e o combate à violência urbana, assistiu-se ao incremento da indústria de armas de fogo, a medidas paliativas oi pontuais na gestão da segurança pública e à ascensão da indústria da segurança privada. É nesse contexto que se espraiou para todo o país a criminalidade violenta.

Numa mesma cidade, encontramos oásis de paz e tranquilidade e territórios marcados por extrema violência. Que fatores definem estes espaços de paz e de guerra?
Pelo menos três fatores são fundamentais para definir esses espaços de paz e de guerra. O primeiro deles é a ação (ou omissão) do poder público. Nos locais onde o Estado deveria estar mais presente, como nas periferias das grandes cidades, observa-se uma quase ausência das políticas de proteção, promoção e defesa de direitos deixando tais territórios e seus moradores, muitas vezes, entregues a grupos armados e a toda a sorte de violência e desordem social. Por outro lado, em áreas nobres, a presença do poder público se faz de múltiplas formas, garantindo direitos dos cidadãos e protegendo o patrimônio das elites. O segundo ponto que demarca a ocorrência da paz ou da guerra está relacionado ao poder do dinheiro. Quem pode pagar por segurança privada tem uma série de privilégios dentro do espaço urbano negados à maioria dos cidadãos que não possuem recursos financeiros. É dessa forma que a segurança deixa de ser direito e torna-se privilégio. Um terceiro ponto diz respeito ao tratamento seletivo dado pelos órgãos públicos, dos três poderes, em relação à garantia de direitos, como o acesso à Justiça. Quem tem condições de pagar “bons” advogados, por exemplo, tem tratamento diferenciado. Nesse sentido, o viés étnico-racial e socioeconômico é fator preponderante para proteção ou exposição à violência.
Também as interações sociais que acontecem no espaço público da política e do aparato de Estado, por vezes, tornam-se violentas. Isso ocorre quando, ao invés de se pautarem pela equidade e a observância universal das leis consensualmente estabelecidas, as relações se pautam pela dissimetria de poder. Determinadas pessoas tiram benefício privado a partir de recursos que deveriam ser, por definição, públicos. Esse modo de funcionamento privatista das instituições da sociedade torna-se um forte gerador de diversas formas de violência.

Como se manifesta a violência institucional no Brasil?
Diferentemente das formas de violência direta, existem outras que não se configuram como um fato ou evento remissíveis a um ou mais agressores que causem um dano claramente definido a outra pessoa ou a outras pessoas. Nesse caso, embora não se possa isolar e identificar claramente o agressor, persiste a agressão ainda que perceptível somente de forma indireta. Não se trata de um evento isolado, mas de um processo que acaba gerando dano a um segmento social, mesmo que, eventualmente, não se possa discernir explicitamente a intenção de produzir tal dano.
Apesar de ser mais difícil caracterizá-la, a violência no Brasil está relacionada a modelos de organização e a práticas sociais que alcançam um nível institucional e sistemático de produção e perpetuação de modos de vida violentos. Não é, portanto, apenas nas interações cotidianas que a violência transparece. Ela permeia também as instituições sociais. De fato, historicamente, o próprio Estado brasileiro age, através dos séculos, de modo a reiterar situações geradoras de violência, sobretudo no que tange à desigualdade e à exclusão.
Exemplificando a correlação entre violência e contexto social, econômico e político, vários estudos associam o aumento da violência letal – ou seja, a violência que gera morte – ocorrido na década de 1980, com a crise socioeconômica vivida naquele período. O processo inflacionário e a consequente corrosão dos salários implicaram perda de rendimentos principalmente para os mais pobres. Como resultado, aumentou expressivamente a desigualdade social.
Não se trata de uma relação linear de causa e efeito. O incremento da violência é determinado por múltiplos fatores, dificilmente redutíveis a uma causalidade única. Entretanto, não há como ignorar a influência do contexto socioeconômico na geração da violência.

Como a questão da violência vem sendo enfrentada no âmbito das políticas públicas e práticas governamentais e da legislação brasileiras? Há alguma luz no fim do túnel?
A sociabilidade violenta é uma construção. Faz-se de escolhas políticas que a cada dia se renovam. Cada escolha ou decisão política em favor da manutenção da atual (des)ordem das relações contribui para a perpetuação do modelo. Em razão disso, parece coerente afirmar que o possível enfrentamento da violência depende intrinsecamente das relações políticas.
Entendem-se, com o termo “política”, as negociações que se estabelecem para que pessoas – com interesses tão numerosos e, por vezes, antagônicos – possam dividir pacificamente um mesmo espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que não há solução para a violência fora das discussões que ocorrem no âmbito da política. Por outro lado, esse raciocínio conduz a reconhecer que cabe às decisões políticas uma parcela na responsabilidade pela perpetuação de estruturas geradoras de violência no Brasil.
Existem hoje, no Congresso Nacional, parlamentares identificados com segmentos econômicos e sociais fortemente interessados em propostas potencialmente geradoras de violência. Defendem o uso de armas de fogo pela população civil, sustentando tratar-se de um direito natural o da autopreservação. Tramitam propostas de alteração do “Estatuto do desarmamento”, não obstante o fato de este haver representado um importante passo na redução do número de mortes por arma de fogo. Há várias propostas de recrudescimento da legislação penal e de ampliação da ação discricionária das polícias, do Ministério Público e do Judiciário.
No entanto, para além deste aspecto mais visivelmente ligado à questão da segurança pública, existem inúmeras outras questões, estreitamente ligadas a interesses econômicos, que são hoje debatidas no Legislativo, não obstante o potencial motivador de mais violência de tais medidas. Destacam-se as propostas que dificultam ou impedem a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e outros povos tradicionais; as que restringem a legislação ambiental; e as que facilitam a liberação do uso de agrotóxicos. Nessas e em diversas outras medidas prevalece o interesse do ganho econômico para pequenos grupos, em detrimento do benefício de toda a população.
Quando praticada de modo a transformar o acúmulo de riquezas num fim em si mesmo ao invés de assegurar a dignidade das vidas humanas, a política gera violência. Produzindo exclusão e desigualdade social, tal forma de se fazer política faz da lei do mais forte a regra e pessoas tornam-se descartáveis.
O Papa Francisco tem se colocado firmemente contra essa cultura do descartável, “criada pelas potências que controlam as políticas econômicas e financeiras do mundo globalizado”. Em um discurso para a Associação de Movimentos Cooperativos Italianos, em fevereiro de 2015, ele ressaltou o “crescimento vertiginoso do desemprego” e os problemas que os sistemas de assistência social existentes tiveram para atender às necessidades da saúde pública. Para aqueles que vivem “nas margens existenciais” o sistema atual político e social “parece estar fatalmente destinado a sufocar a esperança e aumentar os riscos e ameaças”, afirmou o Pontífice.
O Papa tem frequentemente criticado a economia de mercado ortodoxa por estimular a injustiça e a desigualdade. Tem denunciado o fato de as pessoas serem forçadas a trabalhar longas horas, às vezes na economia paralela, em troca de um salário mensal ínfimo, porque elas são vistas como facilmente substituíveis. Segundo Francisco, quando o dinheiro se torna um ídolo, ele comanda as escolhas

Há experiências de práticas sociais que apontam para o caminho da superação da violência?
Na busca pela paz, muito frequentemente, há uma ênfase ao combate à violência direta que, se eliminada, promoveria a paz. Disso resulta uma concepção entendida por alguns estudiosos como uma paz negativa (que, per si, pode inclusive ocultar injustiças que, muitas vezes, geram novos conflitos). Destaca-se aqui, portanto, a importância do enfrentamento não somente da violência direta, mas das violências estruturais e culturais, em busca de uma paz positiva e sustentável.
Por certo, a paz não será alcançada pela mera obediência e submissão a normas, pelo medo das sanções a determinados comportamentos coletivamente rechaçados, ou pela segregação de pessoas e grupos.  Há que construir uma sociedade que, pautada na justiça, deseje a paz.
Assim, reconhecendo que a paz não se caracteriza apenas pela ausência de conflito — condição inerente à vida humana em sociedade — a concepção de “cultura de paz” está aqui entendida no sentido do “cultivo da paz”, portanto, não como algo dado, mas resultado de ações e processos multidimensionais, individuais e coletivos, claramente intencionados a produzir modos de ser e de viver que tenham a paz como valor coletivo e horizonte a ser alcançado. Em outras palavras, trata-se de construir estilos de vida voltados para a promoção da paz.
O enfrentamento de diferentes formas de violência requer o agenciamento de estratégias distintas, porém concertadas. E o entendimento de que a paz é possível e desejada deve andar pari passu com a disseminação e concretização de ações que resultem na abolição de todas as situações que a impedem.
Assim sendo, a construção da paz submete-se a diversos condicionantes, somente se podendo realizar na ação de muitos atores sociais — individuais e coletivos—, via micro e macro práticas democráticas que promovam o fortalecimento do Estado de Direito, a promoção dos direitos humanos, a participação e o controle sociais.
Portanto, o desenvolvimento de uma cultura de paz implica a ampla ação institucional, sobretudo no que tange ao Estado — e tem-se aí o papel importantíssimo dos governos e o envolvimento das instituições jurídicas — e, paralela e igualmente importante, a ação da sociedade civil, dos grupos e dos indivíduos, de modo a que instaure uma radical mudança nas relações sociais e políticas.
Em outras palavras, a construção de uma Cultura de Paz está intimamente relacionada à promoção da democracia e ao fortalecimento das instituições democráticas; ao desenvolvimento econômico e social sustentável, com garantia da participação de todos; à erradicação da pobreza e das desigualdades; à eliminação de toda forma de discriminação; ao respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; à promoção da tolerância, da diversidade e da solidariedade.



Fonte: Revista Bote Fé, ano 6, n. 21, out - dez.2017.