A Campanha da Fraternidade de 2018, organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem como tema “Fraternidade e Superação da Violência”.
Do Carnaval até a Semana Santa os
cristãos são convidados a refletirem sobre formas de superação da violência no
âmbito individual, comunitário, social e institucional.
Reproduzo, abaixo, uma entrevista
que concedi à Revista “Bote Fé”, de
Edições CNBB, sobre o tema. As respostas estão baseadas no texto produzido pelo Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas que colaborou com a CNBB na produção do diagnóstico da violência, para o texto-base.
SUPERAÇÃO DA VIOLÊNCIA
“Não há solução para a violência
fora das discussões que ocorrem no âmbito da política”, esta é a opinião de
Robson Sávio Reis Souza, doutor em Ciências Sociais, integrante da Rede de
Assessores do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep/CNBB) e
que trabalhou como colaborador do Texto-Base da Campanha da Fraternidade de
2018. Ele também é professor da PUC Minas, onde coordena o Núcleo de Estudos
Sociopolíticos, especialista em Segurança Pública e associado do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. O professor – que também é autor do livro
“Quem comanda a segurança pública no Brasil: atores, crenças e coalizões que
dominam a política nacional de segurança pública” (Editora Letramento, 2015,
336 p.) – ajuda a compreender a natureza da violência no Brasil e os possíveis
caminhos para a sua superação.
A
ideia de que o povo brasileiro é ordeiro e de que há uma sociabilidade pacífica
é um mito nacional?
A experiência do viver em paz
fundamenta a autoimagem de um povo que se concebe como pacífico, ordeiro e
inimigo da violência. Contudo, essa ideia não apaga as contradições. Ao mesmo
tempo em que se ostenta a vida pacífica, produz-se e promove-se a violência,
tanto no espaço público como no ambiente privado de casas e empresas; nas
interações pessoais diretas ou mediadas pela tecnologia. Constata-se que, até mesmo nas
relações sociais cotidianas, o equilíbrio necessário à existência pacífica tem
aparecido frágil e suscetível a abalos, inflamados frequentemente por razões
banais. Nesse movimento de transformação social, tem emergido uma sociabilidade
que vai se concretizando em ações cotidianas violentas. A cordialidade parece
ceder lugar à intolerância. O compartilhamento negociado de espaços e recursos
parece, então, correr o risco de ser substituído pela imposição autoritária de
pontos de vista e a subjugação do outro pelo uso da força, seja ela simbólica
ou, em certos casos, até mesmo física. Em razão de fenômenos como esses, é
possível suspeitar que a sociedade brasileira possa estar consolidando modos de
vida referenciados no uso da força e da violência.
A violência se torna o fio condutor
da forma como se realiza a sociabilidade, isto é, a forma como uma pessoa
interage com as demais em um certo grupo social.
Por vezes, para combater a
violência, escolhem-se condutas violentas. A concepção punitiva da justiça
feita pelas próprias mãos, o incremento dos equipamentos de segurança pela
população em busca de autoproteção, a exigência do maior rigor nas leis e do
aumento dos presídios são exemplos de como o discurso contra a violência às
vezes se converte em práticas que podem vir a aumentar ainda mais a
sociabilidade violenta. Isso ocorre quando se pretender fazer o combate da
violência pelo recurso a instrumentos potencialmente geradores de mais
violência.
No texto base da CF 2018 vocês falam de uma violência multifacetada e epidêmica que faz parte da história do país. Multifacetada e epidêmica? O que estas expressões dizem sobre a natureza da violência em nosso país?
O Brasil é uma sociedade injusta,
excludente e extremamente desigual que exibe uma democracia sem cidadania.
Injustiça, exclusão e desigualdade são fatores que geram múltiplas formas de
violência. A fome, o desemprego, a falta de moradia, de políticas públicas de
proteção e promoção de direitos são tipos de violência que afetam a dignidade
humana.
Apesar de ser a oitava maior economia
mundial, é o décimo país mais desigual do mundo, segundo o Relatório de
Desenvolvimento Humano, de 2016, elaborado pela Organização das Nações
Unidas.
Em relação à violência letal, por
exemplo, os números apontados pelo Mapa da Violência 2016, mostram que, no
Brasil, cinco pessoas são mortas por arma de fogo a cada hora. A cada único dia
são 123 pessoas assassinadas dessa forma.
Por ano, quase 60 mil brasileiros
são assassinados. A maioria pobres, negros, jovens e moradores da periferia. É
uma violência seletiva. Não atinge a todos. No Brasil, há locais mais seguros
que a Europa e mais violentos que a Síria. Talvez, por isso, a
violência letal não apareça como um escândalo que clama aos céus, para muitos
segmentos da sociedade e dos governos.
Essas cifras revelam que, no
Brasil, ocorrem mais mortes por arma de fogo do que nas chacinas e atentados
que acontecem em todo o mundo. Contam-se mais homicídios aqui do que em
diversas das guerras recentes.
Os
episódios de violência intensificaram-se e, ao que parece, tornaram-se comuns
também em médios e pequenos centros urbanos, deixando de ser um fenômeno típico
das grandes metrópoles. O que explica esta realidade?
Se antes a violência era um
problema relativo às grandes cidades, em tempos recentes, numerosos fatores
fizeram com que a violência chegasse também aos médios e pequenos municípios.
Além disso, ela se disseminou por todo o território nacional, de modo que –
apesar das variações regional ou local em sua intensidade – a violência é hoje
um problema em todo o país.
O incremento da violência pelo
interior do país é determinado por múltiplos fatores, dificilmente redutíveis a
uma causalidade única. Entretanto, não há como ignorar a influência do contexto
socioeconômico na geração da violência.
Os dados disponíveis permitem
afirmar que o sistema de segurança pública e de justiça criminal é ineficaz.
Com o aumento da criminalidade a partir da década de 1980 foi-se consolidando
um contexto em que a impunidade, a maior procura por drogas ilícitas e a maior
disponibilidade de armas de fogo formaram o ambiente no qual se deu o
crescimento dos homicídios e de outros crimes contra a pessoa e contra o
patrimônio. Ao invés de se rediscutirem o funcionamento e os objetivos do
aparato estatal de segurança e justiça criminal para lidarem com a prevenção e
o combate à violência urbana, assistiu-se ao incremento da indústria de armas
de fogo, a medidas paliativas oi pontuais na gestão da segurança pública e à
ascensão da indústria da segurança privada. É nesse contexto que
se espraiou para todo o país a criminalidade violenta.
Numa
mesma cidade, encontramos oásis de paz e tranquilidade e territórios marcados
por extrema violência. Que fatores definem estes espaços de paz e de guerra?
Pelo menos três fatores são
fundamentais para definir esses espaços de paz e de guerra. O primeiro deles é
a ação (ou omissão) do poder público. Nos locais onde o Estado deveria estar
mais presente, como nas periferias das grandes cidades, observa-se uma quase
ausência das políticas de proteção, promoção e defesa de direitos deixando tais
territórios e seus moradores, muitas vezes, entregues a grupos armados e a toda
a sorte de violência e desordem social. Por outro lado, em áreas nobres, a
presença do poder público se faz de múltiplas formas, garantindo direitos dos
cidadãos e protegendo o patrimônio das elites. O segundo ponto que demarca a
ocorrência da paz ou da guerra está relacionado ao poder do dinheiro. Quem pode
pagar por segurança privada tem uma série de privilégios dentro do espaço
urbano negados à maioria dos cidadãos que não possuem recursos financeiros. É
dessa forma que a segurança deixa de ser direito e torna-se privilégio. Um terceiro ponto diz respeito
ao tratamento seletivo dado pelos órgãos públicos, dos três poderes, em relação
à garantia de direitos, como o acesso à Justiça. Quem tem condições de pagar
“bons” advogados, por exemplo, tem tratamento diferenciado. Nesse sentido, o
viés étnico-racial e socioeconômico é fator preponderante para proteção ou
exposição à violência.
Também as interações sociais que
acontecem no espaço público da política e do aparato de Estado, por vezes,
tornam-se violentas. Isso ocorre quando, ao invés de se pautarem pela equidade
e a observância universal das leis consensualmente estabelecidas, as relações
se pautam pela dissimetria de poder. Determinadas pessoas tiram benefício
privado a partir de recursos que deveriam ser, por definição, públicos. Esse
modo de funcionamento privatista das instituições da sociedade torna-se um
forte gerador de diversas formas de violência.
Como
se manifesta a violência institucional no Brasil?
Diferentemente das formas de
violência direta, existem outras que não se configuram como um fato ou evento
remissíveis a um ou mais agressores que causem um dano claramente definido a
outra pessoa ou a outras pessoas. Nesse caso, embora não se possa isolar e
identificar claramente o agressor, persiste a agressão ainda que perceptível
somente de forma indireta. Não se trata de um evento isolado, mas de um
processo que acaba gerando dano a um segmento social, mesmo que, eventualmente,
não se possa discernir explicitamente a intenção de produzir tal dano.
Apesar de ser mais difícil
caracterizá-la, a violência no Brasil está relacionada a modelos de organização
e a práticas sociais que alcançam um nível institucional e sistemático de
produção e perpetuação de modos de vida violentos. Não é, portanto, apenas nas
interações cotidianas que a violência transparece. Ela permeia também as
instituições sociais. De fato, historicamente, o próprio Estado brasileiro age,
através dos séculos, de modo a reiterar situações geradoras de violência,
sobretudo no que tange à desigualdade e à exclusão.
Exemplificando a correlação entre
violência e contexto social, econômico e político, vários estudos associam o
aumento da violência letal – ou seja, a violência que gera morte – ocorrido na
década de 1980, com a crise socioeconômica vivida naquele período. O processo
inflacionário e a consequente corrosão dos salários implicaram perda de
rendimentos principalmente para os mais pobres. Como resultado, aumentou
expressivamente a desigualdade social.
Não se trata de uma relação
linear de causa e efeito. O incremento da violência é determinado por múltiplos
fatores, dificilmente redutíveis a uma causalidade única. Entretanto, não há
como ignorar a influência do contexto socioeconômico na geração da violência.
Como
a questão da violência vem sendo enfrentada no âmbito das políticas públicas e
práticas governamentais e da legislação brasileiras? Há alguma luz no fim do
túnel?
A sociabilidade violenta é uma
construção. Faz-se de escolhas políticas que a cada dia se renovam. Cada
escolha ou decisão política em favor da manutenção da atual (des)ordem das
relações contribui para a perpetuação do modelo. Em razão disso, parece
coerente afirmar que o possível enfrentamento da violência depende
intrinsecamente das relações políticas.
Entendem-se, com o termo
“política”, as negociações que se estabelecem para que pessoas – com interesses
tão numerosos e, por vezes, antagônicos – possam dividir pacificamente um mesmo
espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que não há solução para a violência fora
das discussões que ocorrem no âmbito da política. Por outro lado, esse
raciocínio conduz a reconhecer que cabe às decisões políticas uma parcela na
responsabilidade pela perpetuação de estruturas geradoras de violência no
Brasil.
Existem hoje, no Congresso
Nacional, parlamentares identificados com segmentos econômicos e sociais
fortemente interessados em propostas potencialmente geradoras de violência.
Defendem o uso de armas de fogo pela população civil, sustentando tratar-se de
um direito natural o da autopreservação. Tramitam propostas de alteração do
“Estatuto do desarmamento”, não obstante o fato de este haver representado um importante
passo na redução do número de mortes por arma de fogo. Há várias propostas de
recrudescimento da legislação penal e de ampliação da ação discricionária das
polícias, do Ministério Público e do Judiciário.
No entanto, para além deste
aspecto mais visivelmente ligado à questão da segurança pública, existem
inúmeras outras questões, estreitamente ligadas a interesses econômicos, que
são hoje debatidas no Legislativo, não obstante o potencial motivador de mais
violência de tais medidas. Destacam-se as propostas que dificultam ou impedem a
reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e outros povos tradicionais;
as que restringem a legislação ambiental; e as que facilitam a liberação do uso
de agrotóxicos. Nessas e em diversas outras medidas prevalece o interesse do
ganho econômico para pequenos grupos, em detrimento do benefício de toda a
população.
Quando praticada de modo a
transformar o acúmulo de riquezas num fim em si mesmo ao invés de assegurar a
dignidade das vidas humanas, a política gera violência. Produzindo exclusão e
desigualdade social, tal forma de se fazer política faz da lei do mais forte a
regra e pessoas tornam-se descartáveis.
O Papa Francisco tem se colocado
firmemente contra essa cultura do descartável, “criada pelas potências que
controlam as políticas econômicas e financeiras do mundo globalizado”. Em um
discurso para a Associação de Movimentos Cooperativos Italianos, em fevereiro
de 2015, ele ressaltou o “crescimento vertiginoso do desemprego” e os problemas
que os sistemas de assistência social existentes tiveram para atender às
necessidades da saúde pública. Para aqueles que vivem “nas margens
existenciais” o sistema atual político e social “parece estar fatalmente
destinado a sufocar a esperança e aumentar os riscos e ameaças”, afirmou o
Pontífice.
O Papa tem frequentemente
criticado a economia de mercado ortodoxa por estimular a injustiça e a
desigualdade. Tem denunciado o fato de as pessoas serem forçadas a trabalhar
longas horas, às vezes na economia paralela, em troca de um salário mensal
ínfimo, porque elas são vistas como facilmente substituíveis. Segundo
Francisco, quando o dinheiro se torna um ídolo, ele comanda as escolhas
Há
experiências de práticas sociais que apontam para o caminho da superação da
violência?
Na busca pela paz, muito
frequentemente, há uma ênfase ao combate à violência direta que, se eliminada,
promoveria a paz. Disso resulta uma concepção entendida por alguns estudiosos
como uma paz negativa (que, per si, pode inclusive ocultar injustiças que,
muitas vezes, geram novos conflitos). Destaca-se aqui, portanto, a importância
do enfrentamento não somente da violência direta, mas das violências estruturais
e culturais, em busca de uma paz positiva e sustentável.
Por certo, a paz não será
alcançada pela mera obediência e submissão a normas, pelo medo das sanções a
determinados comportamentos coletivamente rechaçados, ou pela segregação de
pessoas e grupos. Há que construir uma sociedade que, pautada na
justiça, deseje a paz.
Assim, reconhecendo que a paz não
se caracteriza apenas pela ausência de conflito — condição inerente à vida
humana em sociedade — a concepção de “cultura de paz” está aqui entendida no
sentido do “cultivo da paz”, portanto, não como algo dado, mas resultado de
ações e processos multidimensionais, individuais e coletivos, claramente
intencionados a produzir modos de ser e de viver que tenham a paz como valor
coletivo e horizonte a ser alcançado. Em outras palavras, trata-se de construir
estilos de vida voltados para a promoção da paz.
O enfrentamento de diferentes
formas de violência requer o agenciamento de estratégias distintas, porém
concertadas. E o entendimento de que a paz é possível e desejada deve andar
pari passu com a disseminação e concretização de ações que resultem na abolição
de todas as situações que a impedem.
Assim sendo, a construção da paz
submete-se a diversos condicionantes, somente se podendo realizar na ação de muitos
atores sociais — individuais e coletivos—, via micro e macro práticas
democráticas que promovam o fortalecimento do Estado de Direito, a promoção dos
direitos humanos, a participação e o controle sociais.
Portanto, o desenvolvimento de
uma cultura de paz implica a ampla ação institucional, sobretudo no que tange
ao Estado — e tem-se aí o papel importantíssimo dos governos e o envolvimento
das instituições jurídicas — e, paralela e igualmente importante, a ação da
sociedade civil, dos grupos e dos indivíduos, de modo a que instaure uma
radical mudança nas relações sociais e políticas.
Em outras palavras, a construção
de uma Cultura de Paz está intimamente relacionada à promoção da democracia e
ao fortalecimento das instituições democráticas; ao desenvolvimento econômico e
social sustentável, com garantia da participação de todos; à erradicação da
pobreza e das desigualdades; à eliminação de toda forma de discriminação; ao
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; à promoção da
tolerância, da diversidade e da solidariedade.
Fonte: Revista Bote Fé, ano 6, n. 21, out - dez.2017.
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