segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O tripé republicano tupiniquim: militares, juízes e religiosos



Uma análise histórica da sociedade brasileira desde o final do século XIX até o presente nos ajuda a entender como as elites nacionais souberam se articular e utilizar de três grupos sociais como prepostos para se apropriarem do poder do estado: os militares, o sistema de justiça e os religiosos. Não à toa, toda “família de bem” sempre almeja ter na prole um militar, um juiz (promotor ou dono de banca famosa de advogados) [1] e um religioso (preferencialmente das altas cúpulas das igrejas).

Em artigo anterior, intitulado “bem-vindos à novíssima república do século XIX”, ponderamos que a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi um golpe de estado liderado por um militar, o marechal Deodoro da Fonseca, e apoiado por latifundiários, maçons, juristas e setores descontentes com a monarquia da cúpula do catolicismo.

Para justificar o golpe, a república se instalava a propagar a ideia de um país moderno e independente. Os republicanos conservadores aderiram ao positivismo, apresentado como a teoria social capaz de justificar a abissal desigualdade social e a aplicação de políticas públicas higienistas, segregadoras e excludentes. Afinal, a ciência também serve para justificar a opressão. Até mesmo uma política de embranquecimento da população foi colocada em prática.

Para os católicos conservadores se erigia, com a república, um regime político que continuaria a garantir aos homens de bem seus privilégios. Tudo sob o falso manto da laicidade do estado.

A união entre a alta cúpula dos militares, juristas e religiosos católicos, mediada por maçons (que transitavam e articulavam esses três segmentos sociais à época) era o elo fundacional e o sustentáculo da república brasileira. Uma república elitista, fundada sem o povo.

A precedência dos militares era (e continua sendo) a melhor solução para essa ordem sociopolítica elitista, paradoxalmente apresentada como moderna e democrática. Cruz e espada, sustentadas por uma ordem legal aristocrática, reeditavam a cena do “descobrimento” do país.

No referido artigo, lembrávamos também que durante todo o século XX o país foi tutelado por militares, sempre com o apoio do sistema de justiça e das elites religiosas conservadoras. Depois do golpe da proclamação da república, os militares voltaram ao poder em 1930, dividindo-o com Getúlio Vargas. Na sequência, ficaram mais poderosos aderindo ao golpe do Estado Novo, com Vargas; tiraram Vargas de cena em 1946, num golpe encomendado pelos Estados Unidos. Em 1961 ameaçaram virar a mesa se o vice-presidente João Goulart assumisse o lugar de Jânio e três anos depois, mais uma vez, sob a batuta do "império do norte", tiraram João Goulart do Palácio do Planalto, como o apoio de religiosos (as famosas marchas de “Deus pela Família”, lideradas por um clérigo estadunidense) e a conivência pacífica dos tribunais, dando início à segunda ditadura militar que durou 21 anos.

Definindo a sina da república conservadora e excludente tupiniquim, em todos esses momentos os segmentos de elite (empresários, latifundiários, banqueiros, donos da mídia e setores conservadores da classe média) apoiaram os sustentáculos operacionais do modelo de governança pela força: os militares.

Nesses 130 anos de república não tivemos sequer meio século de democracia. E, mesmo quando se falava em democracia era preciso adjetivar o termo: democracia de baixa intensidade.

Observemos que o tripé classista que dominou grande parte da história republicana brasileira (militares, juízes/promotores e clérigos) tem em comum vários elementos. A (b0a) vida das elites militares, judiciárias e religiosas é fruto de uma ordem social injusta e desigual, baseada, entre outras, na disciplina e na rigidez hierárquicas, com regras de conduta espartana. Esse modo de vida faz com que esses setores se coloquem como uma espécie de tutores da sociedade. Sempre se postam como os melhores, mais preparados, mais puros e mais santos para governarem e/ou imporem suas regras de conduta à sociedade.

Registre-se, por questão de justiça, que sempre existiram grupos minoritários de militares, magistrados e religiosos [2] que não se conformaram aos interesses das elites, nas suas instituições.

Um interregno desse arranjo elitista aconteceu no chamado “processo de redemocratização” a partir dos anos de 1980. No plano religioso, entre outros fatores, a teologia da libertação provocou um engajamento sociopolítico dos católicos, ao mesmo tempo que ocorria uma nova configuração religiosa no país, com o adensamento dos evangélicos. Na esfera social, os novos arranjos advindos com a Constituição de 1988 desarticulou, momentaneamente, o protagonismo da caserna e o judiciário, por um lapso temporal, passou a ser uma espécie de guardião dessa nova ordem que apontava para uma sociedade menos elitista e oligárquica. 

Porém, as altas cúpulas de militares, juízes e religiosos, por um bom tempo congregados na maçonaria [3], nunca perderam o protagonismo. Enquanto a sociedade dormia em berço esplêndido atribuindo poderes mágicos à “Constituição Cidadã” e os setores progressistas se acomodavam nos pactos entre elites e na tibieza à consecução de reformas estruturais (quando no poder), as Forças Armadas estrategicamente foram reassumindo o seu protagonismo. Por seu turno, as castas do judiciário (incluso o Ministério Público) foram vitaminadas com a vã promessa de “guardiãs da Constituição” e começaram a tutelar os demais poderes. Paradoxalmente, tudo acontecendo e sendo abençoado por governos autointitulados liberal-democráticos e de esquerda.

Por fim, o enfraquecimento do catolicismo progressista e da Igreja Católica e a ação deliberada dos neopentecostais evangélicos na disputa pelo poder (do Estado) [4] criou as condições suficientes para a rearticulação e revanche dos segmentos fundadores da república que, como bons estrategistas, contaram como os históricos apoiadores da velha ordem elitista: no plano internacional, os Estados Unidos (que nem precisaram aportar navios nas costas brasileiras; bastou treinar juízes e formadores de opinião na construção de uma narrativa potente ultraliberal e autoritária). No plano doméstico, os empresários, latifundiários, banqueiros, donos da mídia e os setores conservadores da classe média.

O golpe de 2016 e a consequente eleição do capitão Bolsonaro, em 2018 – superando o número de castrenses no centro do poder em relação ao governo ditatorial que se instalou em 1964 -, mostram que o velho arranjo republicano à brasileira continua valendo: militares, judiciário e a nova configuração religiosa brasileira protagonizada por uma espécie de cristianismo dos trópicos que congrega grupos evangélicos e de católicos conservadores: os neopentecostais da teologia da prosperidade, serva fiel do capitalismo individualista e de um modelo de sociedade no qual Deus abençoa somente aqueles que têm dinheiro e boa vida. Aos demais, os renegados, a sina da miséria, da exclusão social, da penúria ou, na melhor das hipóteses, da tutela da caridade dos “eleitos”.

Em todos os momentos da velha e da próxima ordem republicana tupiniquim os discursos de sempre, baseados na luta do bem contra o mal: lei e ordem (armas e sistema de justiça) para enfrentar o fantasma do comunismo; pela moral, bons costumes e família tradicional dos bons cristãos; contra as minorias e a perigosa ideia de justiça social, etc. O mesmo moralismo; as mesmas justificativas à intervenção institucional a fórceps; os mesmos atores; o mesmo desprezo à ordem constitucional e democrática.

Por fim, é importante registrar que a persistência do conservadorismo político-social-religioso brasileiro não é mérito somente dos setores elitistas da sociedade. É preciso reconhecer a incompetência dos setores progressistas que nunca conseguiram romper com a velha ordem oligárquica.

Se teremos, novamente, uma república tutelada por militares, respaldada por juízes e promotores e abençoada por religiosos, agora em formato mais dissimulado e violento - haja vista seu contorno ultraliberal -, lembremos que essa história não tem nada de muito novo. É tudo muito velho.


[1] Além dos “doutores” advogados, os “doutores” médicos também entram nesse rol.
[2] Muitos clérigos aderiram às Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) da Igreja Católica - que tiveram grande protagonismo na cena sociopolítica brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Houve juízes que foram expurgados de tribunais durante a ditadura militar e militares que foram expulsos de suas corporações por não aceitaram práticas autoritárias, antinacionais e antidemocráticas. Em todas essas instituições (com mais ou menos poder a depender de várias circunstâncias), sempre há membros comprometidos com uma ordem social justa, igualitária e democrática.
[3] A proibição pela Igreja Católica da participação do clero na maçonaria, principalmente a partir do final do Império enfraqueceu momentaneamente essa organização. Como se sabe, muitas lojas maçônicas no Brasil foram fundadas no século XIX por clérigos católicos que queriam ambientes secretos para discutir suas ideologias liberais. Atualmente, os maçons congregam muitos dos líderes religiosos do neopentecostalismo, além de militares, juízes, promotores, empresários, latifundiários, etc.
[4] Registre-se que os primeiros protestantes (Luteranos, Anglicanos, Batistas, Metodistas, Calvinistas) que chegaram ao Brasil a partir do final do século XIX, vindos do sul dos Estados Unidos e marcados pela escravidão, traziam uma religião socialmente engajada. A grande guinada dos protestantes para o conservadorismo elitista se deu com a criação do neopentecostalismo à brasileira, resultado da transformação e readaptação das igrejas pentecostais, que veio à tona no final da década de 1970, e que hoje se faz presente nas mais diversas áreas do contexto nacional, da mídia ao cenário político, partidário e eleitoral. 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Seis semanas depois... e um feliz ano velho!



As eleições, comumente, sempre renovam as esperanças de dias melhores...

Mas, desde a eleição do capitão Jair Bolsonaro, em 28 de outubro, convivemos, a cada semana, com supressas e sobressaltos. Para muitos, nada mais “natural”, em se tratando de um presidente que não tinha um plano de governo claro, nem discutiu com os eleitores suas propostas de ação. Afinal, a “facada salvadora” foi um álibi perfeito para retirar do debate quem não tinha muito a apresentar à população.

Para outros, esse “cheque em branco” ao eleito será o modus operandi do futuro governo que precisará do caos, do espanto, do medo e da distração para implementar uma agenda ultraliberal, conservadora e marcada pela violência seletiva contra grupos sociais.

Segue, abaixo, uma breve síntese do que ocorreu até agora:

O aparente todo-poderoso (cujas pernas parecem ser de ferro e os pés de barro) reclama estar doente (principalmente quando é colocado em xeque); é débil e visceralmente dependente dos filhos. Estes, por seu tuno, são encrenqueiros de criação. Não sabem conviver com as diferenças e a diversidade sociopolítica e cultural e acham que governar é entupir as redes sociais de fake news a acionar um “exército” de zumbis. Para complicar a vida de uma família que se apresentar como modelar, a mulher foi pega recebendo um cheque suspeito do motorista, cuja movimentação financeira, segundo o COAF, é incompatível com a renda do titular da transferência.

O futuro chefe da Casa Civil, um político dos mais tradicionais - no sentido pejorativo do termo -, foi descoberto como "cliente" de caixa-dois. Mas, já foi indultado, porque é amigo do futuro superministro da Justiça que o perdoou, depois do nobre deputado ter explicitado um cândido arrependimento público.

Aliás, suspeita-se que o ex-juiz que comandará a justiça e a segurança pública tenha chegado ao futuro cargo depois de usar a toga para interferir no processo político e eleitoral, retirando da disputa o candidato que tinha as melhores chances nas eleições deste ano. Revelações do WikiLeaks dão conta de uma estranha relação sua com órgãos do governo norteamericano. O futuro xerife-mor, tão viçoso quando estava sentado numa cadeira de juiz, andou correndo de perguntas de jornalistas nos últimos dias. Será que, sendo o chefe do COAF, investigará a conta do motorista do chefe, cujos valores movimentados dariam para comprar dezenas de pedalinhos ou reformar um apartamento?

O superministro da economia é um especulador de ofício. Banqueiro de profissão, só pensa no andar de cima e já foi acusado de falcatruas às custas de dinheiro público. É citado num esquema de fraude em que ganhou 600 mil reais em dois dias de operação na bolsa de valores, em 2004. Segundo a investigação, o esquema envolvia um fundo de pensão ligado a funcionários do BNDES.

O chanceler é um religioso fanático e infantil. Crê que Mao-Tsé-Tung está vivo; que comunistas, em pleno século XXI, ainda comem criancinhas e, pasmem: que Trump é um enviado de Deus para salvar a civilização ocidental.

O ministro da "educação” é discípulo de um lunático boquirroto (muito inteligente, diga-se de passagem), que se diz filósofo. Entre suas propostas inovadoras para o Ministério da Educação estão o combate à doutrinação marxista e a eliminação da “ideologia de gênero”: dois fantasmas que, simplesmente, não existem. Como se vê, é um gênio!

Em relação ao “filósofo”, que também é guru do presidente e seu núcleo de poder, segundo a própria filha, ele a impedia de estudar; cultuava a poligamia e hoje se refugia nos Estados Unidos. Especializou-se em produzir vídeos para a doutrinação ultraliberal de brasileiros.

O futuro ministro do meio ambiente, um filhote de think tank norteamericano, é réu em ações por eventuais práticas de crime ambiental; quase já foi preso por não pagar pensão alimentícia aos filhos e quando candidato à deputado federal em São Paulo propunha a eliminação de javalis, da esquerda e do MST, exibindo balas de um fuzil 30 ponto 60.

A bancada do partido do todo-poderoso, antes de tomar posse, já partiu para a baixaria. Trata-se de um bando de ególatras, panfleteiros e oportunistas, incluindo seus próprios filhos, uma "jornalista" barraqueira especializada em produção e disseminação de fake news e uma advogada tresloucada, conhecida pela “dança do fogo” – quando patrocinou o impeachment sem crime de responsabilidade de uma presidenta.

Em relação a futura ministra dos direitos humanos, seus vídeos de palestras na Igreja Batista da Lagoinha são suficientes para colocá-la no seu tempo: não estou certo se no século 13 ou 15.

O grande farol a guiar o futuro governo é o rei - cada vez mais nu - do império do Norte. Trump, um paranoico desmedido - que sapateia feito barata tonta lutando para colocar as Américas de volta ao seu quintal, enquanto a China amplia cada vez mais um novo império.

Com tanta dubiedade e esquisitice, “pela primeira vez na história deste país”, teremos um governo que, mesmo contando com a generosidade de seus patrocinadores (a mídia, os rentistas, banqueiros, latifundiários e empresários, entre outros) já se iniciará tutelado pelas Forças Armadas e pelo sistema de justiça da Casa Grande (que já tutelava a política há algum tempo).

E para completar o cenário, tudo é abençoado por um bando de caçadores de níquel disfarçados de discípulos das teologias da prosperidade e do domínio, saudosos de uma teocracia aqui nos trópicos.

A bem da verdade, o desejo mudancista de parte dos eleitores brasileiros - que desde 2013 vem cobrando novos atores e autores à altura da política -, somado ao rancor e ódio de parcela dos privilegiados desta nação acabou por lançar o país num “mato sem cachorro”.

Então, feliz ano velho...