Da Revista Cult
Desde o início dos anos 1980,
Marilena Chaui tem proposto como chave de leitura de nosso país a ideia de que
a sociedade brasileira é autoritária e violenta. Em obras como Cultura
e democracia: o discurso competente e outras falas, de 1981 (que será
reeditado em seus Escritos, publicados pela Editora Autêntica), a
filósofa contraria a imagem de uma cultura nacional pretensamente formada pelo
acolhimento recíproco e pela cordialidade, revelando estruturas enraizadas de
hierarquização e de sedução pela autoridade.
Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como individualmente violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e republicano é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações de poder.
Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como individualmente violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e republicano é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações de poder.
Essa chave de leitura permanece, aos olhos de Marilena Chaui,
extremamente atual para analisar o momento vivido pelo Brasil. Apesar dos
percalços éticos, políticos e econômicos das duas últimas décadas, o país tenta
entrar na Modernidade, que exige necessariamente inclusão social. Essa mesma
inclusão, no entanto, desperta resistência. Se os auxílios financeiros para
inserção econômica, distribuídos por países como Alemanha e França às
populações mais pobres, são considerados por lá sinais de desenvolvimento, o
Bolsa Família, no Brasil, é chamado de assistencialismo e de estratégia
eleitoreira. Se a ação do Estado no controle do mercado é vista como necessária
em outras partes do mundo, aqui ela é chamada de “ameaça comunista” e de
inchaço da máquina pública.
O problema é que ainda não sabemos muito bem o que é o espaço público,
porque não agimos como sujeitos, transferindo a responsabilidade pela
construção da cidadania aos aparelhos de governo. Focamo-nos nas salvações que
podem vir do poder e não obrigamos o poder público a representar de fato todos
os setores sociais. O resultado dessa prática (ou ausência de prática) é o
fortalecimento da violência e do autoritarismo, que atualmente se intensificam
nas formas de controle policial, por exemplo, e a falta de pensamento no jogo
político (não somente de direita, mas também de esquerda!).
Chamar atenção para essa dinâmica perversa é o que faz Marilena Chaui na
entrevista que concedeu à CULT.
CULT: Como a senhora vê a situação política vivida pelo Brasil hoje?
Marilena Chaui: É uma situação gravíssima. É
gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do
governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita e
protofascista que está tomando conta da pauta política. Quando examinamos os
pontos da pauta política discutidos de outubro de 2015 até agora, vemos o poder
dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia. É uma regressão sociopolítica
fora do comum. É uma pauta regressiva, antidemocrática, de violação de todos os
direitos que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo
reacionário protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe
média urbana brasileira veio à tona e pegou as esquerdas completamente
desprevenidas. As esquerdas tinham pautas como o antineoliberalismo, os
direitos, a questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do Estado
Islâmico, enfim, pautas voltadas aos problemas da democracia e do socialismo, e
foi pega completamente despreparada por uma onda de extrema direita que repôs
para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960. É
uma ameaça de golpe para reverter o processo de consolidação dos direitos
sociais obtidos nos últimos anos e sustentada pela pauta “boi, bala e Bíblia”.
Aliás, a atuação de grupos religiosos é muito preocupante e vai além de uma
questão propriamente política, porque, apesar de se manifestar na representação
política, ela é uma questão socioeconômica: é a maneira como as igrejas
evangélicas interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal.
CULT: Como se dá essa interiorização e reformulação evangélica da
concepção neoliberal?
Marilena: Uma das características do neoliberalismo é a maneira como ele
concebe o indivíduo, que não é entendido nem como parte de uma classe social,
nem como ser em formação que vai se relacionar com o restante da sociedade. O
indivíduo não é pensado nem como átomo nem como classe, mas como um
investimento. Na medida em que um indivíduo é um investimento, o salário não é
entendido como salário, mas como provento, como renda. Então, o ser humano é
programado para ser rendoso e rentável. A família, a escola e o emprego passam
a ter por função a rentabilidade do indivíduo, porque ele é um investimento. As
igrejas evangélicas se apropriam desse ideário e o desenvolvem por meio de uma
teologia – a teologia da prosperidade, que considera cada indivíduo justamente
como um investimento ou uma empresa. Ele não é um empresário, mas uma empresa,
e, como tal, precisa de uma série de condições para funcionar. Então as
igrejas, além de convencerem a pessoa de que ela nasceu para vencer na vida e
ser rentável, levam a ética calvinista ao máximo, explorando a crença de que
ser rentável é um sinal de salvação, porque é isso que Deus espera.
Como se sabe, a maior parte das igrejas evangélicas possui franquia.
Elas se espalham no campo da produção e do comércio e empregam todas as
pessoas, fazendo com que elas provem que Deus as escolheu e que são um
investimento rendoso. Pouco a pouco, as pessoas se apropriam da franquia;
depois abrem outra e assim por diante. Há, portanto, um fenômeno de fortalecimento
da ideologia neoliberal e das concepções conservadoras da classe média por meio
da maneira como as igrejas evangélicas incorporam o neoliberalismo, com uma
teologia para isso. Se você juntar o conservadorismo com o reacionarismo da
classe média urbana e a presença avassaladora das igrejas evangélicas, além de
toda a discussão sobre a vida no campo (a reforma agrária), vai entender por
que politicamente se exprime, de modo efetivo, nos grupos do “boi, bala e
Bíblia”, a pauta ultraconservadora que está aí.
A minha preocupação é, evidentemente, por um lado, denunciar de todas as
maneiras possíveis a tentativa de golpe. Por outro, assegurar que governos
voltados para os direitos sociais (e, desse ponto de vista, com uma pauta
antineoliberal) sejam garantidos. Ao lado disso, a minha preocupação é com a
sociedade, ou seja, com a ideologia. Depois de muito tempo, lá retorno eu à
questão da ideologia. É preciso refletir sobre como erguer um dique para
impedir a entrada avassaladora da ideologia neoliberal na sua forma teológica.
Estamos vivendo um momento que vai fazer 1964 parecer uma coisa muito simples.
1964 estava inserido na Guerra Fria, no poderio dos Estados Unidos sobre os
países da América Latina. Por causa do exemplo de Cuba, acreditava-se ser possível
uma revolução socialista. Os componentes eram muito óbvios. Havia uma clareza
na compreensão do momento vivido. Agora não há clareza. Tudo é muito difuso,
muito opaco, obscuro, porque há fundo teológico.
CULT: A senhora acredita em um golpe militar?
Marilena: Está fora de questão.
CULT: O que pode acontecer?
Marilena: Se as coisas continuarem no ritmo em que estão e se
o golpe dos 3B se concretizar, haverá uma efervescência social enorme, porque
todos aqueles cujos direitos foram garantidos pelo Estado depois da era militar
terão esses mesmos direitos cortados. E haverá ameaças: ameaça no campo, ameaça
urbana, uma situação de vigilância e intimidação em todas as instituições. Isso
provocará reação, uma resposta social enorme. É um risco que o PSDB não quer
correr porque ele não tem condição de conter essas reações; e esse risco também
não interessa ao PMDB, porque o partido está dividido. Então, no fim das
contas, as forças que poderiam produzir um golpe não têm mais interesse que ele
aconteça, porque a convulsão que ele vai provocar, à direita e à esquerda, não
pode ser controlada nem pelo PSDB e nem pelo PMDB. Eles não têm quadros e
condições institucionais para controlar convulsões sociais.
CULT: E o que daria as condições de governabilidade nesse possível
contexto?
Marilena: Se houver golpe, a prática será a pura intimidação
e a violência. Aquilo que a gente viu com os Atos Institucionais. Um Ato
Institucional poderia concretizar, por meio da polícia – já que o Exército não
se misturará –, a intimidação e a violência.
CULT: Pensando na materialização da violência, que espaço resta ao
diálogo nesse momento condicionado à truculência?
Marilena: Nenhum. Vamos tomar o caso de São Paulo como
exemplo. Há uma coisa muito interessante: quase ninguém se dá conta de que o
estado de São Paulo – o único estado realmente capitalista no Brasil, já que os
outros são semicapitalistas – é governado desde o final dos anos 1980 por um
único partido político. Economicamente, São Paulo é um estado capitalista, mas politicamente
é uma capitania hereditária. Parece haver um contrassenso entre o
conservadorismo político e o desenvolvimento econômico. Mas é só na aparência
que isso é contraditório, porque o conservadorismo político é a base de
sustentação desse tipo de desenvolvimento capitalista. Vejam o que acontece com
o governador. Há o problema da água, da luz, das escolas, da saúde – escândalos
–, mas nada gruda no Geraldo Alckmin. Escorre. Isso acontece porque ele
representa o tipo de poder político do estado de São Paulo: forte e
autoritário. A juventude sai às ruas e faz uma manifestação? Polícia nos
jovens, bate neles! O pessoal do transporte sai para se manifestar? Polícia
neles, bate neles! Isso é referendado pela sociedade paulista, não só a
paulistana, que está de acordo e espera que isso seja feito. Esperaríamos uma
reação profunda, mas não é o que acontece. Eu me lembro de ter visto pela
televisão estudantes algemados durante a ocupação das escolas. Eu disse, “Meu
Deus, não se algema estudante!”. Eles não só foram algemados, como isso foi
dado pela mídia como algo natural; e pela sociedade, como uma coisa necessária.
Então nós temos a consagração, da maneira menos retórica possível, da
violência estrutural da sociedade brasileira. Não uma violência pontual, de
modo que possamos falar em “ondas de violência”. Não. Há uma violência
estruturante. É a estruturação violenta de uma sociedade hierárquica, vertical,
oligárquica, conservadora, que defende os privilégios contra qualquer forma de
direitos; é a mesma que dá a sustentação ideológica e política para a
manifestação da violência governamental. Essa violência governamental é a
expressão da violência não só paulista e paulistana, mas brasileira, e é ela
que legitima essas ações. Se consideramos todo o ideário da burguesia e da alta
classe média brasileira, vemos que qualquer contestação, qualquer revolta é uma
“crise”. A noção de crise está identificada por essa classe com a ideia de
desordem e perigo. Ora, diante da desordem e do perigo, o que é que se pede? Repressão.
Cada vez que há uma luta por direitos contra privilégios, essa luta é vista
como violenta e precisa ser reprimida. Há, portanto, uma inversão ideológica
fantástica no Brasil: a violência é vista como ordem.
CULT: A senhora ainda acredita na desobediência civil?
Marilena: Eu acho necessária! Outro dia um colega me disse:
“Marilena, você tem que levar em conta que a juventude que tinha 13, 14 anos em
2000 só conhece o PT como governo, não conhece a história do PT como movimento
social e sindical, como presença contestadora e de desobediência civil no
interior da ordem brasileira”. Isso quer dizer que a figura do PT se apagou e
sobrou somente esse pedaço, esse triste pedaço que é o PT no aparelho de
Estado.
Seria preciso lembrar, por exemplo, a criação do CEDEC [Centro de
Estudos de Cultura Contemporânea]. Existia no Brasil o CEBRAP [Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento], que era dirigido pelo Fernando Henrique
Cardoso. O Francisco Weffort, em 1976, disse que o CEBRAP era muito
economicista e que precisávamos de um centro que pensasse as questões políticas
e sociais. Reunimo-nos, então, o Francisco Weffort, o José Guilhon de
Albuquerque, o José Álvaro Moisés, o Lúcio Kowarick e eu, criamos o CEDEC. A
Sociologia, a Ciência Política e a História explicavam (e ainda explicam) o
Brasil sempre a partir do aparelho de Estado. A História do Brasil era contada
como história das mudanças no aparelho de Estado e das decisões tomadas pelo
Estado. O Estado aparecia como o sujeito histórico, político e econômico, como
se não existisse uma sociedade nem uma luta de classes. O CEDEC propôs inverter
esse processo e lembrar que a sociedade brasileira existe, com os movimentos
sociais e populares. Era o momento em que surgia o Movimento dos Sem Terra, o
movimento feminista, o movimento sindical. Os movimentos começavam a se
organizar; os sindicatos criam as comissões de fábrica no ABC e fazem as
greves. É desse momento histórico que nasce o PT. Nós surgimos da ideia de que
a história do Brasil e a sociedade brasileira não são feitas pelo aparelho de
Estado e de que o Estado não é o sujeito social. Existe a luta de classes e é
no interior do conflito que se criam as bases da democracia. O PT se originou,
então, de atos de desobediência civil. Mas isso os jovens não sabem, porque
eles só conhecem o PT como um partido institucionalmente posto, envolvido nas
questões do Estado e governamentais, como se isso desse conta de toda a
história do PT.
É isso que permite entender também por que jovens de esquerda querem
outras opções, em vez de ligar-se ao PT. Proliferam os pequenos partidos de
esquerda porque toda a história social e política ficou encolhida nesses
últimos quinze anos. Isso também explica o quanto nós do PT ficamos
despreparados na hora em que surgiu o atual golpe. Imagine o PT do qual eu
venho, o PT dos anos 1980 e 1990… Ele não teria aceitado minimamente aquilo que
iria desencadear o golpe. Ele nem permitiria que isso sequer aflorasse. Muito
do que estamos vendo em termos de pauta conservadora na política está ligado ao
encolhimento de tudo aquilo que representa uma pauta de esquerda.
CULT: A esquerda tornou-se obediente?
Marilena: Sim, claro. O PT ficou desarmado no momento em que
teria de tomar uma posição pública e esclarecer as coisas. Agora, de um lado
temos o Eduardo Cunha, com as igrejas evangélicas, e, do outro, o Alckmin, com
a Opus Dei. É demais da conta! Eu venho de uma tradição em que a grande aliança
era sustentada pela Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base.
Ver os cristãos perdidos entre os evangélicos e a Opus Dei é demais; é
insuportável para a minha cabeça porque eu vi a outra experiência que o
cristianismo é capaz de ter e que teve na América Latina inteira.
CULT: A senhora interpreta a frase “Meu partido é meu país”, comum nas
manifestações de 2013, como a manifestação de um desejo de algo novo ou como
uma frase conservadora?
Marilena: “Meu partido é meu país” é uma frase nazista. Ela
nasceu na luta contra a social-democracia, sobretudo quando o nazismo se opõe à
República de Weimar e leva a pensar que os partidos políticos roubam ou tomam
para si as ações políticas que caberiam exclusivamente ao governante. O
governante aparece, então, como o chefe. É dele que deve emanar,
transcendentemente, toda a decisão política. Desse ponto de vista, se os
partidos políticos usurpam uma função que não é deles, é preciso eliminá-los.
Daí a ideia de que “meu partido é meu país”.
CULT: Falando de encolhimento da pauta de esquerda, como a senhora
interpreta a ação de setores do movimento estudantil que consideram os docentes
como inimigos ou representantes do capital? É delicado tocar nesse ponto,
porque não se trata de ser contra o movimento estudantil. Mas entender a
universidade como espaço de tensão entre estudantes, servidores (técnicos) e
docentes não é também uma forma de violência ou de exclusão de diferenças?
Marilena: Há algo que marca com força a história da política
de esquerda no Brasil: é o fato de que, periodicamente, vindos da baixa classe
média ou da classe média, há grupos que se apropriam do marxismo e do leninismo
e se apresentam como revolucionários. Na verdade, o encolhimento do espaço
público e de tudo o que ele representa alimenta pequenas formas privatizadas do
pensamento de esquerda, dando origem a pequenos movimentos e pequenos partidos.
Não vou nomear nenhum deles, mas estou apontando para a origem deles, a maneira
pela qual eles privatizam um ideário. Isso significa, em primeiro lugar, fazer
com que esse ideário não apareça como um ideário em expansão, mas como um ideário
de exclusão. Esses partidos e movimentos se fecham sobre si mesmos, porque a
condição de sobrevivência deles está na recusa de qualquer inclusão e de
qualquer ampliação. Eles se mantêm pela sua pequeneza e pelo fato de que eles
excluem tudo o que não se restrinja a uma pauta mínima produzida por eles
mesmos. É uma mescla da vulgata marxista, da vulgata leninista e do stalinismo
puro, simples e cru. É mais do que uma coisa reacionária, é uma vertente
totalitária. E é por essa maneira totalitária, privatizada e excludente de se
organizar que esses grupos encaram todo o restante como inimigo que precisa ser
destruído. O outro não é inimigo por causa disso ou daquilo. Ele é inimigo
porque simplesmente é outro. É a mesma lógica de Carl Schmitt, incorporada por
grupos pretensamente de esquerda.
CULT: A senhora sabe que um curso
seu, de leitura rigorosa da Ética de Espinosa, seria hoje
considerado, em alguns contextos, como um trabalho burguês, não sabe?
Marilena: Eu sei!
CULT: Então, por que a cultura erudita ou o pensamento é associada por
alguns movimentos a uma prática burguesa?
Marilena: O pensamento é associado à prática burguesa porque
esses movimentos operam pela ausência de pensamento. Estamos em uma situação
aterradora: do lado da direita e da esquerda há ausência de pensamento. Você
conversa com alguém da direita e vê que ele é capaz de dizer quatro frases
contraditórias e sem perceber as contradições. Você conversa com alguém da
extrema esquerda e vê o totalitarismo que também opera com a ausência do
pensamento. Então nós estamos ensanduichados entre duas maneiras de recusar o
pensamento. Lá onde o pensamento estiver se exercendo, ele receberá mil e um
nomes, e como para esse pessoal de esquerda xingar é chamar de burguês, eles
tratam a cultura erudita como coisa de burguês. Mas se você perguntar o que é a
burguesia e o que é o capital, se pedir uma explicação, verá que eles não sabem
muita coisa; apenas repetem um chavão. Nesses grupos há uma coisa muito
parecida com o que acontece nas igrejas evangélicas: uma teologia e uma lavagem
cerebral. É um esvaziamento de qualquer capacidade de pensamento. Não é por
acaso que dos dois lados o exercício da violência é igual, e vai da violência
verbal à física, à exigência de sangue. Quando o João Grandino Rodas foi reitor
da USP e houve a segunda ocupação da reitoria, nós, professores, fomos negociar
com os alunos e com a própria reitoria, e os alunos finalmente aceitaram desocupar.
Veio então um membro desses pequenos partidos de esquerda e disse: “Ninguém
sai; nós queremos ver sangue”. Por que ele queria ver sangue? Porque ele achava
que ganharia poder pela destruição física do outro – uma destruição que não é
nem política, nem social.
CULT: Há um encolhimento da capacidade humana de refletir e fazer
escolhas ponderadas? Tanto do lado da polícia como do de certos grupos de
esquerda…
Marilena: Eu entendo isso com Espinosa. O que há nos seres
humanos? Há paixões. A maneira como entendemos o mundo, a nós mesmos e aos
outros é dada pela maneira como o mundo e os outros nos afetam. Eles causam em
nós a sensação de perigo ou de aumento da nossa capacidade de viver. Se tudo o
que se passa em mim é produzido pela maneira como o que está fora age sobre
mim, eu sou passiva e todos os meus sentimentos são apenas paixões: o amor, a
esperança, o ciúme, a misericórdia, a honra, a glória etc. O que eu sinto é
pura e simplesmente uma reação passiva ao que vem de fora.
Ao contrário, se eu tenho força interior para saber que eu posso ser a
causa dos meus sentimentos e, que se sinto raiva de você, não é por sua causa,
mas por aquilo que eu sinto com relação ao que eu penso a seu respeito, então
me vejo como a causa da raiva que sinto por você, em função do modo como eu
penso em você ou percebo você. A partir do momento em que eu sou capaz de me
reconhecer como causa dos meus sentimentos, eu sou ativa e descubro que não
tenho de responsabilizar os outros por aquilo que se passa em mim. Se eu for passiva,
nunca serei livre; tudo o que eu fizer será determinado pelo que os outros
exigem de mim; e, mesmo que eles não façam nenhuma exigência, eu sinto como uma
exigência. Então só obedeço ao que eu imagino que seja o desejo do outro. Ao
contrário, se é o meu desejo que determina o que eu vou fazer e como vou fazer,
eu sou livre.
Dessa perspectiva, o que é a violência? É aquilo que se passa
inteiramente no campo das paixões, porque é lá que os desejos entram em
conflito. Se eu me entregar a elas, faço o meu desejo valer destruindo o desejo
do outro; e o outro faz a mesma coisa: ele acha que, para existir, deve dobrar
o meu desejo, deve se apropriar de mim e me dominar física e psicologicamente,
pela manipulação dos desejos e sentimentos, pela ideologia, por uma série de
manipulações sociais, amorosas etc. Pense no caso da violência policial: é a
força física pura e simples. Um policial não é capaz de tomar uma decisão em
que ele enfrentaria uma ordem recebida, dizendo, por exemplo: “Puxa vida, um
filho meu poderia estar entre os manifestantes…”. Mas isso não acontece só
porque ele recebeu uma ordem. É porque essa ordem constitui o modo como ele é,
pensa e opera. Ele encarna essa ordem, é o portador dela e opera em um contexto
de pura paixão. Essa é uma análise puramente psicológica. É preciso pensar
também em termos sociais: o policial encarna a repressão; ele a realiza em nome
da ordem, da paz e da segurança. Psicologicamente, ele não é capaz de deliberar
sobre como poderia agir diante de manifestantes que gritam por direitos e
denunciam privilégios, porque ele é, naquele instante, pura paixão. Social e
institucionalmente, ele só existe como policial porque recebe, cumpre ou dá uma
ordem. A polícia existe, então, como instituição social garantidora de determinados
privilégios de classe. Trata-se do embate entre o direito e o privilégio. Esse
embate se realiza, na sociedade brasileira, por meio da violência.
CULT: A senhora diria que o movimento de ocupação das escolas foi um bom
uso político das paixões?
Marilena: Um excelente uso…
CULT: E que diferença a senhora vê entre esse movimento e o
das ruas de 2013?
Marilena: Em 2013, o
movimento foi algo inesperado. Pouco antes das manifestações, eu estava dando
um seminário na faculdade e ouvi um tambor pelos corredores. Me falaram: “É o
movimento do Passe Livre, que está convocando uma reunião”. Havia só uns 30, 40
gatos pingados. Até que eles puseram nas redes sociais e aconteceu aquela
movimentação toda. Mas na primeira manifestação tinha de tudo. Era um evento
com a motivação mais diversa possível. Não estou dizendo que era um movimento
totalmente despolitizado, mas que tinha um pequeno conteúdo determinado pelo
grupo do Passe Livre, ao qual se juntaram outras formas de descontentamento.
Foi estarrecedor ver que, na segunda manifestação, quando a juventude começou a
comemorar, levando bandeiras do PT, do PSTU, do PSol, do movimento dos sem
teto, apareceram jovens embrulhados na bandeira do Brasil, atacando, espancando
e ensaguentando os manifestantes de esquerda. Assim, em lugar do conflito
democrático, passou-se ao combate violento e à agressão ao adversário. Mas algo
curioso aconteceu: construiu-se um sentido político para toda aquela
movimentação. A própria mídia, que falava dos “vândalos” das primeiras manifestações,
depois passou a falar de “manifestantes”. Houve uma construção política de uma
manifestação que não existiu realmente como algo político. Ninguém prestou
atenção nisso! Eu procurei falar do assunto e fui violentamente agredida, mesmo
pela esquerda. Disseram que eu não tinha entendido o momento histórico. Mas
fizeram mais: pegaram a afirmação que eu fiz sobre o caráter fascista dos
jovens vestidos com a bandeira e disseram que eu havia considerado todas as
manifestações como fascistas. Na época das eleições, o Fernando Gabeira chegou
a escrever um artigo de uma página inteira no jornal O Globo contra
mim, afirmando que, na minha opinião, a presença do povo na rua era fascismo. O
que eu tinha dito era: houve um momento fascista nessas manifestações e ninguém
está prestando atenção nisso. Aí, quando começaram os panelaços de 2015, ficou
evidente o que eu queria dizer. O que veio a seguir? Veio a demanda de retorno
da ditadura, a presença da TFP [Grupo de extrema direita intitulado Tradição,
Família e Propriedade] e a afirmação da pauta conservadora dos 3Bs.
CULT: Na verdade, em 2013, a senhora previu, em entrevista à CULT, que
no Brasil iriam acontecer panelaços parecidos com os da Argentina.
Marilena: Fui a única. Eu não sei por que as pessoas – algumas
delas inclusive feridas por 1964 e 1968 muito mais do que eu, como o próprio
Gabeira – não se deram conta do que estava vindo. Não sei se eu conseguia ver
porque presto muita atenção no Brasil como uma sociedade violenta e
autoritária… Não sei se é por isso, mas eu fiquei muito surpresa ao perceber
que muita gente de esquerda não percebia o que estava se montando e que junho
de 2013 não era maio de 1968. Maio de 1968 foi a ocupação das escolas agora.
Isso foi maio de 68.
CULT: Por quê?
Marilena: Porque, no caso da ocupação das escolas, há, em
primeiro lugar, um movimento de inclusão e ampliação. A marca dos movimentos
realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação. Em segundo lugar,
pelo fato de que ele foi se dando à maneira do que, no meu tempo, se conhecia
como “greve pipoca”. Em uma fábrica, por exemplo, às seis horas da manhã, um
setor para por 40 minutos. Durante o tempo em que ele parou, outros três ou
quatro setores não conseguiram funcionar. Então, aquele primeiro setor volta a
funcionar, mas, daí, em outra ponta, outro setor para por 40 minutos. Tudo o
que está em volta não funciona. Assim, sobretudo quando a greve era proibida,
ia pipocando paralisação, de modo que as instituições (uma fábrica, uma escola
etc.), mesmo sem parar, ficavam inteirinhas paralisadas. Nos lugares
estratégicos pipocava a paralisação. Foi assim que a ocupação das escolas
seguiu o princípio da greve pipoca. Quando os administradores da educação
achavam que iam resolver a ocupação de uma escola, começava na outra; quando
eles iam resolver nessa outra, começava em outra. Ou seja, ela foi pipocando
até o instante em que parou tudo.
Além disso, a maior diferença entre a ocupação das escolas e o movimento
de 2013 é que a paralisação aconteceu no interior de uma instituição pública e
social para a garantia do caráter público dessa instituição. Não foi um evento
em favor disso ou daquilo; foi uma ação coletiva de afirmação de princípios
políticos e sociais. Os dois grandes princípios foram, primeiro, o princípio
republicano da educação – a educação é pública; segundo, o princípio
democrático da educação – a educação é um direito. A ação dos estudantes e
professores foi tão significativa porque eles disseram: “O espaço da escola é
nosso. Somos nós, alunos e professores, que somos a escola”. Então, foi a
“integração de posse” das escolas pelos alunos e professores. É gigantesco o
fato de alguém no Brasil pensar que algo público é nosso! É diferente das
ocupações de reitorias, em que os estudantes dizem: “Nós somos contra isso que
o reitor fez…” Agora, os estudantes disseram: “Esse lugar, essa instituição é
pública; ela é nossa e não vamos sair daqui”. Eles se posicionaram contra algo
típico do neoliberalismo – posto em prática, sob certos aspectos, no decorrer
da Ditadura e, depois, explicitamente nos governos Fernando Henrique Cardoso: a
ideia de que um direito social e político é aquilo que pode ser transformado em
serviço e comprado no mercado. As pessoas falam das privatizações como se elas
fossem apenas a da Vale e das grandes empresas… É isso também, mas o núcleo da
privatização está em outro lugar, está na transformação de um direito social em
serviço que se compra e vende no mercado. Isso foi feito com a educação, com a
saúde, com o transporte, com todos os direitos sociais. E, em São Paulo, com
grandes baterias, isso foi feito. Os estudantes mostraram que a escola pública
não é mercadoria; fizeram uma ação republicana e democrática de um alcance
incrível. Eu só vi algo parecido, em termos de configuração social no Brasil,
nas greves de 1978 e 1979 no ABC. Por quê? Não pela repercussão, mas pelo
sentido que elas tiveram.
Pensem no fato de que, durante as ocupações, só foram chamados para dar
entrevistas cientistas políticos, sociólogos, historiadores, mas nenhum
professor ou estudante das escolas ocupadas! Nenhum professor ou estudante foi
considerado capaz de explicar o que se passava. Só se ouviu gente que estava
fora das salas de aula e que vinha explicar falando disparates. Quando a mídia
entrevistava algum estudante, só perguntava coisas do tipo: “O que você sente?
Do que você gosta e não gosta? O que você quer?”. Ou seja, ficava no nível puro
e simples do sentimento, não do pensamento. Apesar disso, a palavra deles
chegou à sociedade por outras vias; e isso mostra o tamanho da ação que eles
realizaram. Houve uma solidariedade que há muitos e muitos anos não se via no
estado de São Paulo inteiro. Por fim, as ocupações deixaram claro o motivo de
fechar as escolas. Em um país como o nosso, não se fecha escola; se abre. Mas o
governador de São Paulo queria os terrenos para uma exploração imobiliária
gigantesca. E para fazer o quê? Para fazer fundo de campanha. É claro que agora
o Geraldo Alckmin vai tentar fragmentar tudo e implantar devagarzinho o seu
projeto. Hoje essa escola, amanhã aquela. Não sei se ele vai conseguir, mas vai
tentar. Como o Ensino Fundamental é praticamente todo municipal, o Ensino Médio
é estadual e, de um modo geral, o Ensino Universitário é responsabilidade
federal, essas instâncias operam de modo fragmentado; e isso permite tentativas
de reestruturação como as de São Paulo e de Goiás. De todo modo, os estudantes
revelaram que a ideia de fechar uma escola não significava fechar uma escola,
significava vender um terreno. Portanto, eles denunciaram o caráter corrupto da
suposta política de reestruturação escolar.
CULT: Como a senhora vê o atual momento da economia brasileira?
Marilena: No primeiro ministério montado pela presidente
Dilma, enfatizou-se, por um lado, a crise internacional em que o elemento
financeiro é decisivo, e, por outro, o fato de haver, no Brasil, uma disputa
entre a indústria, o comércio e o setor agrário. A Dilma pôs representantes
desses setores no governo e deu a eles a responsabilidade de resolver o
conflito. Um banqueiro junto com o agronegócio. Eles não resolveram. Não sei se
a presidente foi maquiaveliana, mas ela parecia prever que eles fracassariam e
que o fracasso mostraria para onde o barco deve ir. Então, o que ela está
fazendo agora? Ao chamar o principal assessor do Guido Mantega, ela sinaliza
claramente que vai retomar a política de desenvolvimento e crescimento
econômico, a começar pelo aumento do salário mínimo.
É claro que há uma crise internacional gigantesca e que vai pegar os
membros do BRIC. Já pegou a China, está pegando a Índia; a situação vai
complicar. Mas, de todo modo, a opção agora é a do desenvolvimento. Sem
desenvolvimento e crescimento não se faz, efetivamente, a política dos
programas sociais. Se não há mudança no mercado de trabalho com aumento do emprego
e da escolaridade, a manutenção dos programas sociais vira assistência.
CULT: Como a senhora entende a crítica da classe média alta e de alguns
economistas que afirmam ser o Brasil um país protecionista e que faz pouco
investimento?
Marilena: O grito contra o protecionismo é o grito da
direita. São os republicanos nos EUA, o Le Pen na França, o pessoal da
Alemanha. O que eles entendem por fim do protecionismo? Um “liberou geral”, um
capitalismo “adulto”. A ideia de que o Estado intervenha é o que eles chamam de
protecionismo. Mas se o Estado não limitar a ação do capital, cai-se na
barbárie. Com relação ao investimento, a gente sabe que o Estado brasileiro
investe. Há dados inacreditáveis. Na verdade, não são inacreditáveis se
conhecermos bem a burguesia brasileira. Vejam: o BNDES liberou todos os
recursos possíveis para os empresários brasileiros, mas eles não investiram;
eles puseram tudo nos bancos, nas ilhas Cayman, em Miami, onde quiseram. Em vez
de investir no país, o dinheiro do BNDES foi parar no setor financeiro fora do
Brasil. E daí se diz que o país não investe! Eu adoro a burguesia brasileira.
Quando ela disse “quero café”, foi ótimo. No mundo inteiro, quem vai plantar
café constrói estrada de ferro para levar o café até os pontos de distribuição.
Aqui no Brasil, porém, é o Estado que tem de construir estradas de ferro. A
burguesia só plantava o café. Se ela precisa de porto, no mundo inteiro ela
constrói portos. Aqui não. É o Estado que tem de construir o porto para a
burguesia mandar o café. A burguesia quer industrializar, mas é o Estado que
tem de fornecer eletricidade. A burguesia brasileira mama nas tetas do Estado
desde que ela nasceu. E tem a ousadia de se colocar contra os programas
sociais, quando ela depena o Estado sistematicamente.
CULT: Recentemente, a senhora afirmou que o Bolsa Família fez pelas
mulheres o que seis décadas de feminismo no mundo não conseguiu…
Marilena: Esses dados estão
consagrados em um livro feito pela Walquíria Leão Rego sobre o Bolsa Família (Bolsa
Família: autonomia, dinheiro e cidadania, em coautoria com Alessandro
Pinzani, Editora da UNESP). O que ela mostrou? Primeira coisa: como o dinheiro
vai para as mulheres, elas foram transformadas em chefes de família. Na
tradição brasileira, o dinheiro costuma ir para o homem, e só uma parte vai
para a família; a outra parte vai para os gastos pessoais dele. Com o Bolsa
Família, quebra-se o monopólio masculino sobre a administração da casa. Em
segundo lugar, as mulheres passaram a cuidar mais de si mesmas. Juntando o
dinheiro do Bolsa Família com os serviços do SUS, por exemplo, elas fizeram
diminuir o número de doenças femininas. Finalmente, elas têm participado mais
de atividades públicas, filiaram-se a movimentos sociais e criaram
cooperativas. Há uma quantidade enorme de cooperativas criadas pelas mulheres
com o que sobra do uso do dinheiro do Bolsa Família.
CULT: Qual seria o papel do Estado na promoção da igualdade e dos
direitos das mulheres?
Marilena: A função do Estado não é a de promover. Ele tem de
reconhecer os direitos das mulheres e decretá-los. Sua função é consignar na
lei, institucionalmente, aquilo que os movimentos das mulheres exigem e
produzem, mas essa ação é social. A política se faz pela sociedade. O Estado
brasileiro precisa parar de agir como se não houvesse uma sociedade. A ele cabe
salvaguardar tudo o que há de republicano e democrático nas ações políticas da
própria sociedade. Mais do que promover, o Estado tem de garantir.
Juvenal Savian Filho é professor de
História da Filosofia da UNIFESP
Laís Modelli é repórter da revista CULT
Laís Modelli é repórter da revista CULT
Fonte: REVISTA CULT
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