Fonte: Facebook. |
Como
naturalizar e não problematizar a imensa injustiça provocada pelas altíssimas
taxas de juros e de spread bancário
que oprimem toda uma população em favor de meia dúzia de banqueiros e
especuladores? Como entender um golpe travestido de legalidade e abençoado
pelos setores mais conservadores e retrógrados da sociedade, com a conivência cínica
de instituições que, a princípio, deferiam se levantar contra toda afronta à
Constituição ou a afronta à dignidade dos pobres?
Jessé
Souza, em sua mais recente obra A tolice
da inteligência brasileira, ou como o país se deixa manipular pela elite
(São Paulo: LeYa, 2015), nos ajuda a entender que a perfeita união entre o
economicismo (“a crença explícita ou implícita de que a variável econômica por
si esclarece toda a realidade social”) e o culturalismo conservador (uma
ciência da ordem que existe para afirmar e legitimar o mundo como ele é)
justificam as leituras dominantes e empobrecedoras do debate político
brasileiro. Esse é um dos motivos do porque não indignamos com o fato de que “nos
bolsos do 1% mais rico da população brasileira está o resultado do trabalho dos
99% restantes”. E isso parece normal, natural, justificável, imutável e academicamente
inquestionável.
Para
manter esse empreendimento vergonhoso intacto, somente com muita violência
simbólica, “que se disfarça de convencimento pelo melhor argumento”. E aqui
entra a miséria da nossa ciência. Como já ensinava Max Weber, é preciso que o
dominado socialmente se convença de sua inferioridade para que a dominação
social seja possível. Neste sentido, “a legitimação científica da dominação
fática produz a imagem de sociedades idealizadas de um lado e de sociedades
essencialmente corrompidas do outro”. Portanto, “em vez de apontar para as
causas reais da concentração da riqueza nas mãos de uns poucos e para a
exclusão da maioria, essas concepções de intelectuais servis ao poder e ao status quo nos levam a acreditar que
nossos problemas advêm da ‘corrupção apenas do Estado’, levando a uma falsa oposição
entre o Estado demonizado, tido como corrupto, e um mercado visto como o reino
de todas as virtudes”.
A bem da
verdade, as elites nacionais nunca se importaram com a consolidação de um
sistema educacional voltado aos interesses da cidadania, com o objetivo de
concretizar uma república de fato (para além da formalidade do direito). Conviver
pacificamente com essa abissal desigualdade social assistindo em berço
esplêndido e impunemente o extermínio de sessenta mil cidadãos por ano (a
maioria negros e pobres e parte significativa sendo eliminada por agentes do
estado), além de um descomunal cinismo é um dos dados mais evidentes da intensa
fragilidade de uma sociedade que nunca foi e não é nem republicana, nem
liberal-democrática e cujo Estado nunca foi e não é de direito (a não ser na formalidade da lei
que é manipulada ao bel-prazer de e para poucos). Como dizia Darcy
Ribeiro: "o Brasil tem uma classe dominante ranzinza, azeda,
medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente!"
As
críticas de Jessé Souza acerca do servilismo dos intelectuais brasileiros aos
interesses dos poderosos precisam ser consideradas: “Todos os dias indivíduos
normalmente inteligentes e classes sociais inteiras são feitos de tolos para
que a reprodução de privilégios injustos seja eternizada entre nós. Para
enxergar com clareza nosso real lugar no mundo, é fundamental compreender como
nossa elite intelectual submissa à elite do dinheiro construiu uma imagem
distorcida do Brasil de modo a disfarçar todo tipo de privilégio injusto. Os
poucos que hoje controlam tudo precisam desse “exército de intelectuais”, do
mesmo modo que os coronéis do passado precisavam de seu pequeno exército de
cangaceiros. (...) E produzir “convencimento” é precisamente o trabalho de
intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado.”
Mas, por
que o título do livro trata de uma “tolice da inteligência brasileira”? Porque, segundo o autor, e concordamos com
ele, os principais intérpretes do Brasil sempre foram “colonizados até o osso”.
Criaram suas teorias sociológicas e políticas a partir do pressuposto de um
desenvolvimento socioeconômico relativamente baixo, como
próprio das pessoas de sociedades como a nossa e não como resultado
de uma estrutura e institucionalidade de distribuição da riqueza (acesso a bens
e serviços) extremamente desiguais e excludentes.
A bem da
verdade, constata Jessé Souza, a maioria dos cientistas sociais e políticos vê a
modernidade como se fosse uma “fábula para adultos”; ou seja, a modernidade
descrita como fruto de uma benção divina. Assim, algumas sociedades abençoadas têm
pessoas boas que são recompensados (por méritos) com riquezas. Outras, não são
abençoadas e têm pessoas más, padecendo do castigo da pobreza.
Neste
sentido, no caso da tolice à brasileira, trata-se de criar todo um conjunto de
teorias com vistas a confundir a causa (desigualdade extrema associada a
“pobreza extrema”) com a consequência (reprodução crônica e ampliada das
“doenças” modernas). A partir dessa “confusão”, os tolos, que somos todos nós, acabam
vendo subjetividade, ou seja, sociedades melhores, onde na verdade
existe objetividade, isto é, sociedades estruturalmente mais ou menos
desiguais.
A leitura
atenta do livro de Jessé Souza ajuda-nos, entre outras possibilidades de
apreensão das muitas mazelas nacionais, a entender um pouco mais sobre a crise
política que vivenciamos nos últimos meses. A erosão das instituições políticas
somente confirma o que todos sabíamos, mas não queríamos reconhecer: somos uma
república das bananas, na qual, salvo exceções, as elites (políticas,
econômicas, intelectuais, religiosas e jurídicas) defendem na teoria uma
democracia formal, mas não se comprometem na concretização de numa democracia
de fato.
A ressaca
frustrante dessa democracia de faz-de-c0nta, que não respeita sequer a
formalidade dos procedimentos determinados pela Constituição Federal de 1988,
foi comprovada no golpe parlamentar-jurídico-empresarial-midiático-elitista em
curso no país. No livro, editado no ao passado, o autor já antevia no capítulo
“o golpismo de ontem e de hoje: considerações sobre o momento atual”, o que
ocorreu, de fato, neste ano.
Construtores
e patrocinadores dos contos da carochinha sobre corrupção, isenção da justiça e
deficiência do Estado, divulgados em doses cavalares pela mídia (afinal, ninguém
é dominado se não aceitar a dominação como algo bom ou devido a sua
inferioridade moral), os beneficiários diretos de uma desigualdade que se
reproduz de forma ampliada fizeram a sociedade brasileira crer que ela é essencialmente
corrupta, devendo, portanto, aceitar passivamente o estupro à democracia apadrinhado
por uma elite despudora, chafurdada na lama da corrupção, mas com um discurso
higienista, salvacionista e eivado de conservadorismo (social, moral, político
e religioso).
Os espertos
(ricos, beneficiários diretos da estrutura desigual da sociedade) construíram
uma farsa fazendo com que o brasileiro, não abençoado e corrupto por natureza, confiasse
que o âmago da corrupção está no Estado e no governo de plantão que gerenciava a
máquina pública. Como alter ego da
sociedade, a mídia ainda cumpriu o perverso papel de propagar a ideia de negação
da política (os políticos, os partidos e a democracia representativa como
instituição), bem como repudiar a importância do Estado no seu papel de
fundamental como lócus de redução da desigualdade social e suas mazelas, entre
elas as violências real e simbólica.
Tudo bem
arquitetado, assistimos ao golpe elitista reposicionando novamente para o
centro das decisões do Estado aquele 1% mais rico, que controla a riqueza e o
poder; que tem nas mãos todo o sistema de manipulação da opinião publicada
transformada em opinião pública; que tem no sistema de justiça conservador e seletivo parceiro de primeira hora; que não
paga imposto (porque no Brasil os lucros de capital são isentos de tributos) e
que, historicamente, sempre usurpou do trabalho e do suor dos 99% dos brasileiros,
principalmente dos 70% dos trabalhadores e empobrecidos. E todos, como
marionetes, assistimos ao espetáculo sem perceber que os mesmos de sempre
pagarão a conta do banquete dos poderosos.
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