sábado, 1 de setembro de 2018

Democracia tutelada: todo poder emana dos juízes



Desde 2016 - quando havia uma quase unanimidade entre os setores progressistas e da academia que afirmavam a conflagração de um golpe caracterizado pela atuação do Parlamento e da mídia -, venho insistindo que o principal operador da ruptura democrática havida no Brasil é o sistema de justiça, com protagonismo do poder judiciário.


Estava claro desde então, pelo menos na minha modesta compreensão, que por ações, omissões e conivências, setores do sistema de justiça (membros do MP, PF e Judiciário) formaram uma hermética coalizão (dentro da coalizão golpista, mais fragmentada) e conspiravam contra a democracia que se construía no Brasil.

Ressalvo, antes de tudo, que há bons e honestos juízes, promotores e policiais.

Obviamente, os golpes de estado no Brasil foram engendrados por forças político-econômicas. Os dois últimos, de 1964 e 2016, têm os mesmos sujeitos (quase) ocultos: o alto empresariado antinacional; os banqueiros (e, agora, os rentistas), saqueadores contumazes do erário através da dívida pública; o latifúndio (atualmente travestido de agronegócio) e os interesses norte-americanos. A mídia sempre foi a porta-voz desses grupos. E a classe média conservadora - um amontoado de privilegiados que têm ódio de pobre - um potente canal de mobilização social.

Porém, a operacionalização e a manutenção dos dois golpes se deu de forma distinta: em 1964, via Parlamento e Forças Armadas; em 2016, através do Parlamento e do sistema de justiça.

O processo de formação de uma casta togada no Brasil é histórico. Basta ler o texto do professor Fábio Konder Comparado sobre "o poder judiciário no Brasil". 

Porém, as castas do mundo jurídico (que incluem membros dos ministérios públicos, policiais de alta patente e magistrados) – historicamente avessas à democracia de fato - foram vitaminadas, paradoxalmente, com a Constituição Federal de 1988. A construção, bem arquitetada, do conceito de “estado democrático de direito” reforçava a “ideia imaculada e positivista” segundo a qual o sistema de justiça seria o guardião incorruptível da Constituição; portanto, garantidor do estado democrático.

O povo, protagonista no processo de redemocratização, foi solenemente colocado ao escanteio. Abriu-se algum espaço de participação efetiva da população em conselhos, fóruns e conferências, geralmente consultivos. As experiências dos orçamentos participativos foram limitadas. Houve pouquíssimos referendos e plebiscitos. E as grandes participações populares em processos decisórios se limitavam às eleições.

O assoberbamento, disfarçado de valorização, das carreiras jurídicas de Estado passou a ser uma espécie de mantra repetido garbosamente na boca dos democratas tupiniquins de todas as tonalidades. E, novamente, de modo paradoxal, foi nos governos do PT que houve o maior reforço nas estruturas de estado e nas legislações que empoderaram, ainda mais, os segmentos jurídicos e judiciários.


Todos devem lembrar do orgulho de segmentos das esquerdas, nos governos petistas, ao falarem dos investimentos na Polícia Federal; do respeito republicano às indicações (ardilosas) de procuradores gerais do MP; das nomeações de ministros do Supremo respeitando as demandas de setores classistas da magistratura, etc., etc... Tudo em nome do republicanismo e do combate à corrupção (essa cantilena que se agiganta em momentos de crise, a  esconder e proteger os verdadeiros e grandes corruptores, além de servir para nutrir os espíritos dos hipócritas que implementam os golpes de estado com esse discurso oco e estéril).

Paralelamente ao assoberbamento do sistema de justiça, principalmente sua vertente criminal e mais notadamente desses setores no MP e no judiciário, uma campanha midiática criminalizava os poderes executivo e legislativo. Como uma mentira repetida mil vezes pode virar uma verdade, a política foi-se transformando em sinônimo de corrupção e malandragem para a população.

O Supremo, aos poucos, amesquinhava na sua condição de tribunal constitucional e se transformava num tribunal penal espetaculoso e midiático para o gozo de uma plateia que demandava uma justiça justiceira. O julgamento do chamado mensalão já escancarava essa faceta autoritária do STF.

Sem uma reforma política verdadeira, a legislação eleitoral, por seu turno, favorecia o domínio dos partidos por elites políticas que escolhiam a dedo os candidatos “bom de voto” (e de dinheiro, diga-se de passagem). Essa estratégia pragmática favorecia ainda mais a degradação dos parlamentos, formados por quadros que representavam interesses de grupos e corporações, salvo exceções, e distantes dos anseios populares.

O gerencialismo neoliberal – absorvido também por setores da esquerda -  era apresentado como lenitivo aos problemas da administração pública, promovendo forasteiros endinheirados à condição de chefes do executivo.

Tudo isso junto e misturado corroborava à erosão dos poderes controlados diretamente pelo povo e, por tabela, propiciava a arrogância e a intervenção cada vez mais discricionária, violenta, pretoriana e antidemocrática de juízes, promotores e policiais na esfera política.

Resultado do enredo: depois do golpe, temos uma pseudodemocracia totalmente tutelada pelo sistema de justiça, com apoio discreto, mas efetivo, de setores das Forças Armadas. As mensagens tuiteiras do comandante do exército, portanto de um militar da ativa, quando da votação do STF dohabeas corpus de Lula, em 3 de abril passado, corroboram esse argumento.

A votação do TSE nessa sexta, dia 31 de agosto, é somente mais uma evidência da ditadura togada.

Porém, como explicar o fato de Lula e o PT (com recursos, percursos, intercursos e discursos) demandarem e confiarem no sistema de justiça para restaurar a democracia, depois de tudo o que está a acontecer? (Aliás, os conselheiros jurídicos de Dilma, durante o processo do impedimento fajuto, também confiavam na justiça. E deu no que deu...).

Até mesmo a recomendação do Comitê de Direitos Humanos sobre a importância de se garantirem os direitos políticos do ex-presidente Lula foi solenemente ignorada pela justiça (de exceção) brasileira.

Qualquer cidadão que entende um pouquinho sobre direito internacional dos direitos humanos sabe: quando um estado nacional ratifica os pactos de direitos, tais legislações são hierarquicamente superiores às leis infraconstitucionais. Portanto, a lei da ficha limpa (essa pérola antidemocrática do higienismo punitivo-seletivo à brasileira) não se constitui óbice para o acatamento da recomendação do Comitê da ONU.  Mas, há doutos e maiorais juízes brasileiros não pensam assim.

Afinal, para as elites jurídicas tupiniquins, direitos humanos são artigos de perfumaria (vide as atrocidades cometidas pelo sistema prisional brasileiro sob as barbas do judiciário, solenemente denunciadas por organismos internacionais há anos), utilizados eruditamente em julgamentos televisionados quando convém; para a exibição em regabofes sofisticados ou em congressos nacionais e internacionais, onde teoria e prática são dois universos incomunicáveis.

Ou seja, o sistema de justiça decide quem são os candidatos. Depois, autoriza a população a escolher, entre os seus escolhidos, aquele que que pode ser eleito. E, mais, sinaliza, desde já, que o eleito continuará sob sua tutela - com ameaças constantes, via imprensa.

O judiciário só falta dizer quem deve ser o mamulenco eleito.

E lembrando Rui Barbosa, “a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.”

Vamos observar os próximos passos dessa novela à brasileira, digna de um folhetim global, cujo título poderia ser "democracia tutelada: todo o poder emana dos juízes". 

Cabe, porém, um pergunta: e se o candidato dos "homens bons e das leis" naufragar? Teremos, enfim, o rei togado?

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