Na semana que passou, a
dupla votação da PEC 171 (que tenta diminuir a maioridade penal)[1]
e sua estranha aprovação em primeiro turno, depois de “pedalada regimental”
arquitetada pelo deputado Eduardo Cunha, explicita a complexidade do momento
político atual: em primeiro lugar, tal artimanha só foi possível porque Cunha e
seu partido, o PMDB (que teoricamente é base de apoio do governo), se articulou
com os oposicionistas PSDB e DEM. A ideia, mais uma vez era clara: derrotar o
Governo Dilma Rousseff, que se movimentou fortemente para impedir a redução da
maioridade.
A democracia no Brasil
tem demonstrado que, historicamente, as elites político-econômicas podem até
ceder em alguns momentos. Mas, sempre, se rearticulam e voltam a dominar a
pauta do Congresso. Depois da Ditatura tivemos uma primavera cívica que redundou
na Constituição de 1988 mas, logo na sequência amargamos governos que
determinaram uma agenda neoliberal, votada para o atendimento da economia dos
rentistas. Chega a ser hilário os discursos inflamados de expoentes desse
período, a sustentar, atualmente, uma
pauta golpista, lastreada numa pseudoteoria nacionalista e de amor a Pátria, como se no passado não fossem os responsáveis
pela entrega sistemática e criminosa do patrimônio brasileiro aos interesses inconfessáveis
de grupos privados que desde sempre expoliam a riqueza nacional.
Com a
eleição de Lula, em 2002, abriu-se nova janela de oportunidades, possibilitando
alguns avanços no campo social. Porém, o governo do PT, em alianças com setores
retrógrados da sociedade, não avançou em reformas estruturais e, contente com
arranjos incrementais, acabou por alimentar uma ampla coalizão que hoje domina,
em diversos setores e segmentos, uma agenda das mais conservadoras, golpista e
perigosa. Um rigoroso inverso se aproxima...
Mas, nosso tema hoje é
sobre uma parcela dessa coalização conservadora, formada por parlamentares cujo
discurso moralista e conservador é
identificado como um discurso religioso.
Fala-se muito da atuação
conservadora da bancada evangélica. Mas, o tradicionalismo moral que tem
marcado a atuação da Frente Parlamentar Evangélica só avança graças ao apoio
daqueles que se autodeclaram católicos. Segundo pesquisa feita pelo Portal G1,
no início dessa legislatura, o catolicismo é a religião predominante entre os
513 deputados federais. De 421 deputados que responderam ao questionário proposto
numa enquete pelo Portal, 300 (ou seja, 71,2%) se declararam católicos. Outros
68 (16%) afirmaram ser evangélicos, oito (1,9%) disseram ser adeptos do
espiritismo e apenas um deputado (0,23%) afirmou ser judeu.
Segundo o Portal UOL,
nas últimas eleições a Assembleia de Deus elegeu dezenove deputados; a Igreja
Batista elegeu dez; a IURD e a Presbiteriana, sete deputados cada e as igrejas
Renascer e do Evangelho Quadrangular, quatro deputados cada uma.
Porém, uma pesquisa mais
aprofundada do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), aponta
que a bancada evangélica tem 75 deputados federais e três senadores. Portanto,
cerca de 15% dos deputados são da bancada evangélica. Significa que os outros
85% não são evangélicos.
Fonte: Arte Zero Hora
É óbvio que as
estratégias e os compromissos do principal líder da bancada evangélica, o atual
presidente da Câmara, Eduardo Cunha (e parte do seu séquito), dão um plus, em certa medida, à sanha
moralista, conservadora e retrógrada dessa legislatura (ressalvando que existem
parlamentares evangélicos identificados com pautas progressistas). Mas, como
diz o velho ditado, "uma andorinha só não faz verão".
A PEC 171
e o financiamento empresarial de campanhas
Analisemos a votação de
primeiro turno da PEC que diminui a maioridade penal. Apesar de instituições de
referência social e eclesial, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
terem emitido várias notas públicas se posicionando contra (a redução), pode-se
perceber que os deputados que se dizem católicos não aderiram ao chamamento da
entidade. É verdade que, formalmente, não há uma bancada católica. Mesmo assim,
aqui, cabe uma reflexão mais profunda: ao contrário da cobertura midiática que
alardeia a incapacidade de produção de pauta política exclusiva do governo
federal, o que se pode perceber é que as instituições, de maneira geral, estão
nessa mesma vala comum. Afinal, além da CNBB, outras entidades que deveriam
gozar de credibilidade na formação de consensos no Congresso, como o UNICEF, a
Anistia Internacional e a OAB (que também se posicionaram contrariamente a PEC
171) não conseguiram pautar os parlamentares de todas as crenças, incluindo os
católicos. Podemos concluir que, se tais
entidades ainda gozam de poder é também bastante provável que tenham perdido
autoridade nos últimos anos. Aqui, valeria uma análise, à la Max Weber, de
poder e autoridade. Mas, isso ficará para outro momento.
Mas, por falar em
autoridade, quem acompanhou pela TV os discursos dos deputados na Câmara
Federal nas duas votações da PEC 171 envergonha-se da péssima qualidade de boa
parte desses parlamentares: discursos odiosos, fundamentalistas, com argumentos
dos mais falaciosos; estatísticas criminais apresentadas com vieses e mentiras.
Duas sessões parlamentares que afrontaram mentes minimamente inteligentes.
Farsa ou
tragédia
É famosa a frase de Marx: “a história se repete, a primeira vez como
tragédia e a segunda como farsa”.
Porém, a novela se
repetiu: no final de maio, Eduardo Cunha fora derrotado ao tentar aprovar o
financiamento empresarial de campanha. Menos de 24 horas depois da primeira
votação, o presidente da Câmara realizou manobra, conseguiu colocar a pauta
novamente em votação e se saiu vitorioso. Dezenas de deputados mudaram seus
votos da noite para o dia. Em países com
democracia consolidada, uma mudança na Constituição leva décadas sendo
debatida. No Brasil, parece que a maioria dos parlamentares não tem receio do
julgamento da história.
A comparação da votação
da PEC 171 com a votação do financiamento privado de campanha e com o discurso
moralista e de viés religioso que domina o Congresso faz sentido. Afinal, sabemos:
o grande deus ao qual muitos parlamentares prestam seus serviços políticos e
religiosos se chama DINHEIRO e, sendo um deus todo-poderoso num mundo dominado
pela economia, é capaz de comprar tudo e não somente as consciências. Será que
a palavra de Cristo surtiria algum efeito para aqueles(as) que se dizem
cristãos? "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o
outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus
e ao Dinheiro" (Mateus 6,24).
Uma
pesquisa reveladora
A jornalista e
professora Magali do Nascimento Cunha, docente da Universidade Metodista de São
Paulo - que estuda e pesquisa a bancada evangélica - afirmou numa entrevista
concedida à Rede Brasil Atual que o discurso dos parlamentares evangélicos se
solidificou na política porque encontra simpatizantes em outros setores da
sociedade.
“A bancada evangélica, desde a sua
formação em 1986, nunca teve uma pauta progressista, ou de esquerda. Os
parlamentares evangélicos, até os anos 2010, não eram identificados como
conservadores do ponto de vista sociopolítico e econômico, como o é a Maioria
Moral nos Estados Unidos, por exemplo. Seus projetos raramente interferiam na
ordem social: revertiam-se em ‘praças da Bíblia’, criação de feriados para
concorrer com os católicos, benefícios para templos. O perfil dos partidos aos
quais a maioria dos políticos evangélicos estava afiliada refletia isso bem com
recorrentes casos de fisiologismo”.
Porém, segundo Cilas
Ferraz de Oliveira, doutor em Educação e membro da Igreja Metodista,
"o primeiro deputado evangélico no
Brasil, Guaracy Silveira, pastor metodista que participou das constituintes de
1932 e 1946 tinha um programa socialista, baseado no Credo Social da Igreja
Metodista, era crítico ao comunismo que denunciava como totalitário, e apoiou o
respeito a diversas religiões, a educação para jovens trabalhadores, o divorcio
e o fim do ensino religioso nas escolas públicas. Antes de 1964 deputados
evangélicos defenderam também a reforma agraria. A partir de 1964 o meio
politico evangélico deu uma guinada à direita, como as igrejas em geral."
Assim, podemos observar
que o perfil e a forma de atuação dos evangélicos no Congresso mudaram muito,
principalmente a partir das últimas eleições duas eleições da Câmara Federal.
De acordo com Magali
Cunha, o movimento de protagonismo da bancada evangélica em direção ao
conservadorismo é um capítulo recente da história do parlamento brasileiro:
“É o forte tradicionalismo moral que tem
marcado a atuação da Frente Parlamentar Evangélica, que trouxe para si o
mandato da defesa da família e da moral cristã contra a plataforma dos
movimentos feministas e de homossexuais e dos grupos de Direitos Humanos,
valendo-se de alianças até mesmo com parlamentares católicos, diálogo historicamente
impensável no campo eclesiástico”.
Padres na
política
Há uma longa discussão
sobre a ação de lideranças religiosas no estado laico. Não entraremos, aqui,
nesse tópico.
Registramos, porém, que
a participação de lideranças religiosas no Congresso e na vida política
nacional não é novidade que surgiu com a bancada evangélica. Todos conhecem a
ação de religiosos em outros momentos da vida nacional.
Em relação à ação da
Igreja Católica, atualmente os clérigos são proibidos de exercerem mandatos
políticos. Se o fizerem, devem pedir temporariamente licença do exercício da
ordem sacerdotal. Por isso, temos parlamentares no Congresso e noutros
parlamentos que são sacerdotes, porém não representam formalmente a Igreja
Católica e não exercem o ministério.
Mas, numa rápida viagem
pela histórica política brasileira, verificamos que durante todo o período
colonial a participação ativa de clérigos nos movimentos revolucionários do
século 19 permitiu aos sacerdotes católicos assumirem destacadas funções no
Congresso e no governo.
Mesmo antes da
Independência, padres tiveram destacados papéis. Antônio Feijó, conhecido como
padre Feijó, foi deputado geral eleito na primeira legislatura da Câmara dos
Deputados (1826-1829) e na segunda legislatura (1830-1833). Depois, foi nomeado
senador pela província do Rio de janeiro, Ministro da Justiça (1831-1832) e
regente do Império, durante a minoridade de D. Pedro II, entre 1835 e 1837.
No Brasil, o clero representou, desde o
período colonial, parte significativa da elite intelectual e política. A
proibição de instituições de ensino superior, de jornais e da circulação de
livros na colônia contribuiu para reforçar a influência do clero na vida
pública brasileira. O altar foi espaço para grandes pregações dos jesuítas. Outros
aspectos reforçaram a presença dos padres no Parlamento na época. Religião e
política andavam juntas, com a subordinação da Igreja ao Estado e o
reconhecimento, a partir da Constituição de 1824, do catolicismo como religião
oficial do Império. A maior participação dos padres na política ocorreu no
Primeiro Reinado (1822-1831) e durante a Regência (1831-1840), com a eleição do
padre Feijó para o cargo de regente único, em 1834. Sua renúncia, três anos
depois, e o processo de laicização do Estado - separação do Estado, da política
e da religião -, crescente no decorrer do Império, fez diminuir essa
influência. (Rosane Soares Santana).
Uma
pergunta interessante
É conhecida também a
ação de lideranças católicas em outros momentos fundamentais da vida social e política
brasileira: o apoio ao golpe civil-militar de 1964 e as famosas “Marcha com
Deus e a Família”; a luta contra a ditatura, pela redemocratização e pelos
direitos humanos (através de expoentes como Dom Helder Câmara, Dom Paulo
Evaristo Arns, dentre outros)...
Mesmo não tendo
oficialmente o clero para representar o catolicismo no Congresso, há duas
questões interesses: em primeiro lugar, muitos parlamentares católicos são
eleitos com votos arregimentados em espaços eclesiais; segundo, muitos desses
parlamentares têm se aliado à bancada evangélica.
Sendo assim, cabe uma
pergunta: em se tratando de pautas conservadoras e moralistas, a atuação dos
parlamentares que se declaram católicos militantes se aproxima dos evangélicos
com esse mesmo perfil?
[1]
Isto porque uma alteração na Constituição depende de duas votações na Câmara e
duas no Senado, com quórum qualificado.
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