O episódio, transmitido ao vivo por emissoras de
TV, no qual um policial troca tiros com assaltantes em fuga e, depois de render
os infratores, ainda atira neles, recoloca o debate sobre os excessos cometidos
em ações policiais e os limites éticos da cobertura do jornalismo acerca da
violência.
Já discutimos aqui sobre a importância do controle externo das polícias. Afinal, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em
cinco anos os policiais brasileiros mataram 11.197 pessoas. Nos Estados Unidos,
uma marca semelhante (11.090 pessoas mortas) foi atingida em 30 anos.
No estado democrático de direito todos,
principalmente os encarregados da aplicação da lei, devem agir dentro dos
limites legais. No caso de ação policial, há regras claras de atuação nesse
tipo de ocorrência. Além de princípios legais, outros critérios como a
proporcionalidade, necessidade e conveniência de determinadas ações, por uso de
armas de fogo, por exemplo, devem balizar a conduta do operador da segurança
pública. Um policial que atira a esmo pode matar inocentes (que, eventualmente,
estejam transitando numa rua). Isso pode ocorrer com meu pai, minha mãe, meu
filho. Seria bom se pensássemos assim, dado que falar da dignidade do outro
parece algo irrelevante nessa nossa cultura da vingança e do ódio.
Nem sempre as coisas ruins ou a ação
desproporcional de agentes públicos acontecem somente com "os
outros". Portanto, a sociedade deve estar atenta, porque todos nós podemos
ser vítimas de uma polícia que, eventualmente, age ao arrepio da lei.
Se nos últimos anos incorporamos em boa medida
os pressupostos basilares de um estado democrático e de direito, ainda resta um
grande caminho a ser percorrido pela efetividade da cidadania em nosso país.
Aqui, o preconceito, a luta pela igualdade racial, as discriminações religiosas
e sexuais e tantos outros dilemas sociais ainda não fazem parte da pauta da
grande mídia. Por outro lado, a superexposição de vários tipos de crimes
associada a preconceitos, sentimentos de vingança e desinformação acerca dos
fenômenos da violência provoca a banalização dos valores humanos.
O aumento da criminalidade violenta, nos últimos
anos, trouxe para a agenda social as deficiências das políticas de segurança
pública. Segurança pública que deveria ser entendida como direito do cidadão e dever
do Estado. Outrora assunto restrito a poucos atores, agora a temática da
(in)segurança alcança o centro das discussões, numa sociedade aflita e com
medo. A mídia, percebendo a importância do tema (e principalmente o poder de
vocalização dessa demanda pela classe média – sua maior consumidora) tem
aprofundado as discussões sobre a questão, pautando de forma cada vez mais
constante a cobertura acerca da violência.
Acontece, que a mídia deveria ser o espelho fiel
das contradições e conflitos existentes na sociedade. Evidente, portanto, que
na sua pauta apareça a questão da segurança pública e da violência como algumas
das principais demandas de discussão da sociedade brasileira na atualidade.
Interesses
políticos e vieses
Compreende-se que a cobertura do cotidiano
violento das grandes cidades não é tarefa fácil. Por trás de eventos violentos,
outras questões estão ocultas e dificilmente podem ser contempladas em cada
matéria ou reportagem que envolve a abordagem do tema pela mídia.
É evidente a complexidade que envolve o fenômeno
da violência. E, por consequência, a dificuldade, ou a quase impossibilidade,
do profissional da comunicação, cobrindo o factual, abordar todas essas
questões na apresentação de cada notícia sobre o tema. Isso sem contar, obviamente,
com outras dificuldades de abordagem, como o reduzido espaço ou tempo para
apresentar uma notícia.
Em relação à abordagem de determinados temas, há
que se exigir responsabilidade e conhecimento. Afinal, a forma e o conteúdo de
exposição dos vários tipos de violência pela mídia devem ser questionados pelos
cidadãos. Obviamente, não estamos tratando aqui de qualquer tipo de censura; ao
contrário, defendemos uma interlocução cada vez mais consistente entre os
profissionais da comunicação, pesquisadores do tema, operadores da segurança
pública e a sociedade.
É desejável que a divulgação e a apuração das
informações acerca de estatísticas criminais, por exemplo, sejam rigorosamente
avaliadas: quem produz a notícia deve levar em conta a sub-notificação de vários
tipos de ocorrências; os interesses políticos que envolvem a divulgação das
notícias; os vieses – nem sempre evidentes, mas sempre presente –, em análises
feitas por operadores e especialistas.
Violências
escamoteadas
O papel da imprensa na discussão sobre os
dilemas da violência é de fundamental importância para o aprimoramento das
políticas públicas nessa área. Apesar das eventuais limitações, observamos que
muitos profissionais da mídia têm se esforçado numa cobertura responsável da
temática, o que contribui, inclusive, para a difusão de programas, metodologias
e projetos de prevenção à violência, implementação da cultura da paz, soluções
mediadas de conflitos, criação de redes comunitárias solidárias etc. Ou seja, a
cobertura do fenômeno da violência pode oferecer aos cidadãos soluções que
suplantam o medo, o ódio, a sensação de impotência e de descrédito das
instituições, quando o problema é tratado com responsabilidade e sem
sensacionalismo.
A mídia pode apresentar práticas viáveis de
superação do medo e da impotência frente ao fenômeno da violência difusa,
criando condições de mobilização social e comunitária que, efetivamente, são
fundamentais para o incremento da coesão social, a superação do medo e da
apatia social frente ao fenômeno da violência, principalmente a criminalidade
urbana.
Além dos crimes, que recheiam os noticiários na
mídia, outras tantas formas de violência que afrontam cotidianamente os
direitos humanos são naturalizadas em nossa sociedade. Aqui também a mídia tem
um papel relevante, podendo fomentar uma discussão sobre essas violências
historicamente escamoteadas em nossa sociedade: violências contra crianças,
mulheres, negros, homossexuais, minorias étnicas, entre tantas outras.
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