Em recente artigo, o
filósofo Vladimir Safatle alertou que o país caminha para uma espécie de
ditadura camuflada, ou seja, a tutela total e irrestrita das Forças Armadas: o
jogo consiste a terminar o período de pactos e de democracia aparente da Nova
República por meio da transferência do poder político real para as Forças
Armadas.
Segundo Safatle, mais
importante do que as eleições presidenciais, o verdadeiro deslocamento do poder
já terá ocorrido e ele não passa pelos clássicos atores políticos. Hoje,
inexiste agenda importante de governo que não passe pelas Forças Armadas: paralisação
de caminhoneiros, decomposição do governo carioca e degeneração do governo
federal. Em todos esses casos, as Forças Armadas são convocadas e cada vez mais
se tornam protagonistas.
Como se não bastasse, nos
últimos dias o comandante do Exército resolveu sabatinar os candidatos à
presidência. E mais: outro militar é protagonista político na condição de chefe
do Gabinete de Segurança Institucional e um general assumiu o Ministério da
Defesa. Isso sem contar a ameaça tuiteira vinda da caserna quando o Supremo
julgou, há dois meses, um habeas corpus
de Lula. Às favas as aparências...
Tenho insistido, por outro
lado, desde o golpe de 2016, que setores do sistema de justiça também resolveram
tutelar os demais poderes. Chamo de juristocracia um regime político
onde qualquer juiz ou promotor de qualquer instância (com ou sem participação
das polícias), pode determinar o que bem entender, se utilizando de mecanismos
judiciais casuísticos para impor à sociedade, à um indivíduo ou instituição a
sua percepção pessoal, servindo a uma ideologia, uma classe ou grupo político
em prejuízo da ética, da legalidade ou dos anseios populares. Num post publicado aqui
faço uma síntese de como o sistema de justiça está a atuar como protagonista
político, ao arrepio da Constituição.
Mas, o protagonismo do
Poder Judiciário pode ser observado com mais clarividência nas ações/omissões
do juiz Sérgio Moro, do TRF4 e do STF, muitas vezes ardilosamente articuladas, em
momentos estratégicos, em toda a trama golpista. O partidarismo e a
seletividade na atuação de magistrados e dessas instâncias, em certas ocasiões,
chegam a se constituir como escárnio nacional.
Porém, se notarmos com
mais atenção, numa perspectiva histórica, as ações arbitrárias que unem
bacharéis, outros operadores do sistema de justiça e os militares remontam da
proclamação da república: um golpe que teve como principais atores bacharéis,
militares, latifundiários e maçons. Desde então, esses segmentos, em diversos
momentos da vida republicana, de forma mais ou menos coesa, patrocinaram todo o
tipo de tutela à democracia no país.
Não por acaso, durante a
ditadura militar, assistimos a convivência amistosa entre os generais, as
grandes bancas de advogados, juízes, procuradores e policiais. Obviamente,
esses segmentos sempre estiveram a serviço de interesses das elites econômicas,
sociais e políticas.
Em vários momentos da vida
nacional, essa associação - que envolve os setores jurídico, policial e militar
- protagonizou rupturas democráticas.
Os pactos feitos “por
cima”, como a famigerada lei da anistia, sempre foram abençoados por esses
atores. E os grandes beneficiários dos golpes (no momento, os empresários do yellow duck, os banqueiros, rentistas e
latifundiários) são os fiadores dessa união.
Infelizmente, boa parte da
classe média, inclusive os setores progressistas, dormiram em “berço esplêndido”
depois da Constituição Federal de 1988. Primeiro, porque não houve nenhuma
reforma substantiva no sistema de justiça e no modelo militar e
policial-militar herdados da ditatura. Ademais, sob a égide do chamado “estado
democrático de direito” consolidou-se um pensamento hegemônico segundo o qual a
democracia de direito se transbordaria na democracia de fato... e todos
poderiam sentir “o sol da liberdade em raios fulgidos [que] brilhou no céu da
pátria nesse instante”.
Desgraçadamente, a abissal
desigualdade social, o recrudescimento do estado policial-penal e a brutal
violência seletiva, transformada em política estatal, continuaram a conviver
com uma nação cuja cidadania era de e para poucos.
Não obstante a melhoria
dos indicadores sociais desde 1988, principalmente nos governos petistas, o
abismo que separa ricos e classe média dos pobres - somado à violência
extremada contra estes últimos - denunciava a ouvidos moucos que a democracia
no Brasil era uma farsa.
Porém, todos, inclusive os
acadêmicos, sempre donos da verdade, afirmavam com retumbante convicção que a
democracia brasileira estava consolidada. Dormíamos felizes com lemas do tipo “Brasil:
um país de todos”.
Até que veio o golpe e a
farsa democrática tupiniquim foi vergonhosamente desmontada.
Mesmo no período do golpe (e
posteriormente), assistimos árduos defensores do sistema de justiça (da Casa
Grande) em nosso país. Devotados juristas e membros das elites sociais,
políticas, partidárias sempre a defender que os tribunais superiores e o STF se
submetem à Constituição.
A última encenação nesse
sentido se deu no caso da absolvição da senadora Gleise Hoffmann e seu marido.
Lembrei-me do ex-ministro José Eduardo Cardozo, em tempos pretéritos, sempre
dizendo, com toda a certeza de um bacharel respeitado pelos consortes, como se
fosse um ato de fé, que o Supremo reverteria o golpe.
O julgamento do habeas
corpus do ex-presidente e as decisões dele advindas com a decretação
da imediata prisão de Lula pelo todo-poderoso juiz curitibano, confirmaram
que o poder judiciário decidiu, há
muito, se consolidar como um dos principais agentes políticos, seja
interferindo no processo eleitoral ou atuando na chantagem a todos os demais
agentes políticos e poderes, como vem ocorrendo nos últimos anos. Provavelmente,
a cartilha de Carmen Lúcia, prefaciada por Luís Roberto Barroso está em vigor
no STF: “somos do bem; podemos tudo”. E assim nascem as ditaduras.
Agora,
a decisão do ministro Fachin, numa noite de sexta-feira de Copa do Mundo, é
mais uma das dezenas de ações e omissões que conformam esse protagonismo
inconstitucional e antidemocrático do Judiciário, notadamente do STF. Como asseverou o ex-ministro da Justiça
Eugênio Aragão, “o timing do despacho que extingue o
pedido cautelar sugere que o jogo foi combinado”. Mais uma vez combinado,
diga-se de passagem.
Nossa tese e conclusão: o
Brasil está duplamente tutelado. De um lado, a juristocracia que consolida um
estado penal-policial-judicial seletivo; doutro, as Forças Armadas cada vez
mais salientes.
A rigor, são clubes de amigos
desde o início da república que, como castas, querem continuar amigos íntimos
para dominarem eternamente essa republiqueta das bananas.
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