A
atual crise política, com graves reflexos na vida das pessoas, das
instituições, no tecido social e na economia é resultado de variáveis que,
analisadas isoladamente, não são capazes de explicar a complexidade do fenômeno
e só servem para criar uma visão minimalista, enviesada e maniqueísta, a
serviço de interesses escusos.
Admitindo
que toda opinião é interessada (não necessariamente interesseira), a pretensão
desse rápido inventário é, modestamente, propor uma análise da crise. Aliás,
mais precisamente como veremos a seguir, o melhor seria falar de crises, no
plural. Os objetivos deste texto opinativo são motivar a reflexão e o debate;
suscitar críticas e questionamentos a respeito de análises parciais que tentam
explicar o momento político, contrapondo as soluções pré-fabricadas e eivadas
de interesses, advindas de segmentos pouco comprometidos com uma democracia
inclusiva e propor uma saída republicana e democrática para a superação desse
nebuloso processo, dentro da legalidade. É isso que tentaremos propor a seguir.
Nosso
recorte temporal explicativo de algumas das variáveis que deflagraram uma série
de conflitos sociais, políticos e culturais não retrocederá às raízes
históricas da nossa cultura patrimonialista, escravocrata, elitista, machista e
racista. Há farta bibliografia que pode ser consultada a esse respeito.
Partiremos dos eventos ocorridos em 2013, as chamadas “jornadas de junho”.
Naquele momento, não somente no Brasil, mas em várias partes do mundo, uma
série de atos de protesto questionavam, entre outros, a democracia
representativa. Vozes de diversos segmentos sociais, com interesses diferentes,
demandavam mudanças substantivas no modelo esgarçado de governança democrática,
no qual os representantes eleitos não representam os interesses da maioria dos
eleitores.
Havia
evidências claras de múltiplas falências que, a rigor, apontavam para algo
muito mais profundo: o esgotamento do modelo do capitalismo rentista. Esse
esgotamento pode ser percebido em várias dimensões: colapso do ecossistema; da
política; da economia baseada na especulação (e sua última grande crise, a
partir de 2008, nos Estado Unidos); das instituições tradicionais (incapazes de
dar respostas às demandas de sociedades cada vez mais complexas).
No
mesmo período, sinais do refluxo da crise econômica global batiam às portas do
nosso país. Como sabemos, o sistema político foi incapaz de incorporar as
reivindicações dos diversos segmentos que saíram às ruas naquele ano.
Não somente o sistema político tradicional dá sinais de
distanciamento entre representantes e representados. O pedido de impeachment
feito pela OAB nacional sem uma consulta ao conjunto dos advogados, mostra que
as cúpulas institucionais se distanciaram das bases e, muitas vezes, agem
discricionariamente para atender a interesses de grupos no poder e não
necessariamente aos interesses coletivos.
1. Uma economia que produz exclusão e
disputas virulentas
Quando
analisamos a realidade sociopolítica brasileira nas duas últimas duas décadas,
observamos que o modelo de desenvolvimento iniciado no governo Lula, baseado na
exportação de commodities,
no acesso facilitado ao crédito (e consequente endividamento popular em grande
escala), no consumo de massa (puxado por uma descomunal e caótica expansão
urbana), só foi possível, em boa medida, pelo poder de compra do mercado
chinês, que alterou e impulsionou o capitalismo global.
As
políticas inclusivas do governo Lula não foram suficientes para atender a
variadas expectativas da classe média. Paradoxalmente, os mais ricos e os mais
pobres, guardando as devidas proporções, foram os grandes beneficiários das
políticas econômicas no período.
Thomas
Piketty, autor de “O capital no século XXI”, aponta que o foco das tensões
sociais em vários países está relacionado com a perda patrimonial da classe
média, o que pode explicar, também, o crescimento da direita e do egoísmo
social. Segundo este autor, na década de 1970, a classe média possuía cerca de
30% do patrimônio total. Hoje está mais próximo de 25%. Ao mesmo tempo,
observa-se um aumento na concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos. No
caso brasileiro, segundo o IBGE (dados de 2013), os 10% mais ricos concentram
42% da renda nacional. Neste sentido, a perda de posição da classe média poderia
levar esse segmento para a extrema-direita: “quando não conseguimos resolver os
problemas sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro:
trabalhadores, imigrantes, gregos preguiçosos, etc.” (conforme Piketty).
A circulação desenfreada e sem lastro de dinheiro foi a tábua de salvação
do capitalismo na última década.
É
importante analisar o fato de que parte da classe média brasileira,
historicamente acostumada com privilégios e não com direitos universais,
bandeou, nos últimos anos, para um discurso e prática que beiram o
fascismo. Ao invés de usar seu poderio
político de vocalização de demandas e formação da agenda pública para lutar por
justiça social e equidade, ou seja, contra a concentração de renda nas mãos de
poucos, alguns segmentos da classe média direcionam um discurso odioso contra
os pobres, as políticas de transferência de renda e para aqueles políticos e
partidos que representariam tais extratos sociais.
A
violência, que sempre determinou a “ordem” das relações sociais no Brasil,
tornou-se, com o apoio da mídia, o recurso utilizado em doses cavalares por
setores da classe média que tentam reposicionar-se num cenário de disputas
reais e simbólicas. Não nos enganemos: a
paz dos túmulos não existe mais.
2.
Disputa eleitoral e fragilidade institucional
Para complicar o cenário das disputas em jogo, a busca frenética pelo
poder se agudizou depois das eleições de 2014, produzindo um clima a detonar
ferrenhas querelas entre atores políticos e seus seguidores e defensores. Alguns
elementos são mais ou menos evidentes nessas disputas. Em primeiro lugar, mas
não necessariamente nesta ordem, observamos as dificuldades e mazelas da
manutenção do presidencialismo de coalizão: um arranjo político que demanda
capacidade de produção de agenda pelo presidente e habilidade na articulação
com outros poderes, como o Legislativo.
Neste sentido, o desembarque oportunista do PMDB do governo
Dilma evidencia o fisiologismo e o corporativismo característicos do principal
partido que sustentou as coalizões presidencialistas desde a redemocratização.
Para
além da crise do presidencialismo de coalizão, como já dito anteriormente, a
crise de representação, marcada pelo distanciamento entre representantes e
representados, atingiu também as diferentes Casas Legislativas e, muito
especificamente, o Congresso Nacional. Além dos limites da democracia
representativa, fragilidades nos nossos arranjos políticos e institucionais
apontam para os poucos e frágeis mecanismos de democracia direta e
participativa; uma cultura altamente individualista e pragmática; uma tradição
de criminalização da política pelos segmentos conservadores; a perversidade do
mercado eleitoral, através do financiamento empresarial e privado das
campanhas; a burocratização e centralização partidária e o papel seletivo
desempenhado pela mídia e pelo Judiciário.
Além
dessas vicissitudes (algumas conjunturais, outras estruturais), a configuração
política brasileira apresenta elementos marcantes de uma longa tradição
autoritária, centralizadora e elitista; a concentração unipessoal do poder,
principalmente, no Poder Executivo e nas mãos de elites políticas tradicionais,
a facilitar o clientelismo; a endêmica corrupção nos setores público e privado;
um sistema eleitoral defeituoso, principalmente pelo abuso do poder econômico
nas eleições; má organização partidária (extinção, fusão, multiplicação
ilimitada de partidos; baixa fidelidade partidária; partidos pragmáticos), além de outras questões
como a desproporcionalidade da representação política dos Estados no
Legislativo Federal e a baixa (ou a não) representação de segmentos sociais
(indígenas, negros, LGBT, mulheres) nos Parlamentos.
É
muito importante destacar, aqui, que o processo eleitoral de 2014 foi marcado
pela violência marqueteira baseada na destruição do outro a qualquer custo.
Soma-se nesse quadro a incapacidade do candidato derrotado nas eleições, Aécio
Neves, de aceitar o resultado das urnas. Desde o primeiro momento, Aécio
questionou a legitimidade das eleições. Primeiro, colocando em xeque, irresponsavelmente,
a eficiência das urnas a criar um clima de desconfiança generalizada em relação
ao pleito e, depois, tramando estratégias para apear do poder a presidente
Dilma Rousseff e ocupar seu lugar, mesmo que de forma ilegítima. Aécio, sem
dúvida alguma, lidera um conjunto de políticos que prestam um enorme desserviço
à democracia brasileira.
3. Os discursos e práticas de ódio, vingança
e medo
Outro
fenômeno que ressurgiu nas últimas eleições foi um misto difuso de ódio e
vingança, fazendo da disputa eleitoral uma verdadeira guerra, quando o processo
democrático da escolha dos representantes deveria ser tão-somente um embate
civilizado e respeitoso de ideias, opiniões e pontos de vista sobre os rumos do
país. Instalou-se um clima generalizado de ódio, vingança e medo no seio da
sociedade e das famílias, insuflado pela mídia e pelas redes sociais.
Neste
contexto, o filósofo e cientista político esloveno Slavoj Žižek nos ajuda
a pensar algo importante: a unificação de todos os medos (e/ou discursos do
medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos grupos
e líderes mais conservadores. Essa estratégia justificou, por exemplo, o
nazismo (os nazistas tinham horror dos judeus, dos homossexuais...); ou o golpe
civil-militar de 1964 (medo do comunismo).
A
soma dos muitos medos (os verdadeiros ou aqueles construídos no imaginário
social) produz um ambiente propício para se criar um clima de pânico; instalar
a desconfiança generalizada; propagandear uma insatisfação irracional, mesmo
num espaço institucionalmente normal e com funcionamento adequado das
instituições. A partir daí, podem-se construir as saídas autoritárias, através
de pseudo-heróis "salvadores da Pátria"; justifica-se o
injustificável com argumentos falaciosos, mas aparentemente palatáveis e
aceitos pela cultura vingativa que, em alguma medida, nos congrega enquanto
herdeiros da tradição cristã-ocidental que se contenta, muitas vezes, com a
eleição de bodes expiatórios para a superação das nossas mazelas.
A partir da unificação dos medos é fácil propagar
o discurso do ódio, da violência e da eliminação a qualquer custo daqueles que
encarnam os “males” que devem ser combatidos pelos “bons”.
A
intolerância, o racismo, o preconceito (principalmente de matrizes socioeconômica
e étnico-cultural), o fascismo disfarçado de nacionalismo são alguns dos
"demônios" que saíram (porque lá sempre estiveram) do armário dos
brasileiros.
Apesar de escolarizados, muitos segmentos bem
posicionados social e economicamente são deseducados, porque negam a igualdade
de direitos e desconhecem a história, dado que a conquista de direitos, mesmo
lenta e gradual, é irreversível em qualquer sociedade minimamente democrática e
plural.
4. O papel da mídia e de PODEROSOS
segmentos do mundo jurídico
É
importante adicionar outros elementos nessa análise. O papel que vem sendo
desempenhado por uma mídia venal e a serviço de grupos econômicos e políticos
pouco comprometidos com a igualdade, a justiça e a paz social.
À
medida que o poderio econômico, com seus interesses políticos, foi dominando a
mídia nacional presenciamos uma incestuosa relação no universo da comunicação
de massa: parte do jornalismo - subjugado às conveniências do grande capital
e/ou de grupos políticos elitistas (e conformado com os interesses econômicos
dos proprietários dos grandes oligopólios midiáticos) - passou a agir em
uníssono contra o governo de Dilma Rousseff, comportando-se como um partido
político.
Paradoxalmente,
a imprensa internacional, com seus interesses, mas também com sua longa
tradição democrática, tem se colocado contrária à ideia de um impeachment no Brasil desde o início da
crise política do segundo mandato da atual presidente. Ao longo dos últimos
meses, não foram raras as reportagens e análises internacionais que apontam que
o caminho da retirada da presidente, do ponto de vista internacional, seria um
erro.
Para uma leitura crítica da comunicação é importante não
confundir opinião pública com opinião publicada.
O
franco posicionamento dos representantes dos oligopólios midiáticos contrários
ao governo eleito se somou a diferentes grupos sociais e políticos que deram uma
guinada à direita, capitaneando parte dos insatisfeitos que se apresentaram nos
protestos de 2013, recrudescendo a disputa ocorrida na eleição de 2014 e
mostrando seu poder, por exemplo, no Parlamento, com a eleição de Eduardo Cunha
como presidente da Câmara dos Deputados.
É
importante destacar, na consolidação de uma coalização de direita, o
financiamento de suas ações pelos representantes do empresariado, liderados
pela Fiesp e por setores econômicos internacionais ávidos pela retomada das
políticas privatistas (principalmente da Petrobrás) e a participação de parte
da bancada religiosa; além das bancadas policial e da bala (salvo exceções),
que andam saudosas daqueles tempos em que os “representantes da lei e da ordem”
agiam como capatazes impunes dos senhores da Casa Grande. Lembremos que um número
bastante expressivo de parlamentares (não somente no Congresso, mas em outras
casas legislativas nos Estados e Municípios) se elegeram graças ao dinheiro das
empresas nas eleições passadas. A chamada “Lista da Odebrecht” não deixa
dúvidas sobre isso.
A
configuração e a articulação de grupos e partidos de direita, com suas visões
de mundo e de sociedade, são importantes para o aperfeiçoamento da democracia.
Todos os atores políticos que disputam o poder podem fazê-lo com legitimidade e
devem ser reconhecidos em suas empreitadas. Porém, todos devem se submeter às
regras do jogo democrático; e que prevaleçam os interesses da população e não
dos grupos em disputa (pelo poder): “todo poder emana do povo” (CF 1988,
parágrafo único, do artigo 1º).
Ainda
há que se apontar o protagonismo de uma coalizão jurídica conservadora e
hermética, incrustrada em vários segmentos da advocacia, dos Ministérios
Públicos de estados e da União e na magistratura. Em nosso país, lamentavelmente,
muitos daqueles que deveriam ser os primeiros a respeitar, defender e lutar
pelo respeito à lei e ao Estado de Direito são, às vezes, os primazes em
destruir midiaticamente as reputações de indivíduos com ou sem provas. Se
apresentam como “justiceiros” que, impunemente, destroem a vida e a reputação
alheia para aplacar seus instintos persecutórios ou para atender à produção do
gozo perverso da especularização midiática. Pensam, tacanhamente, que o direito
penal resolve todos os problemas e mazelas sociais. Exercem seu ministério com
base numa paranoia de acusação sem direito à defesa, facilitando a
"perseguição" ou "delação", ao gosto do cliente, no caso,
da mídia hegemônica. Infelizmente, o reducionismo judicial, transformado em
ativismo persecutório, tem produzido uma justiça ainda mais seletiva e
corroborado um pensamento torto, simplista, odioso e infantil Brasil afora.
O
Ministério Público, a Polícia Federal e o Judiciário foram recepcionados pela
Constituição Federal de 1988 sem nenhuma prestação de conta de suas ações (e
omissões) durante a ditadura. E mais: os três órgãos foram fortalecidos a
partir de 1988, sem nenhum mecanismo efetivo de controle. Juízes, promotores e
policiais, por exemplo, têm vencimentos acima do teto constitucional.
Atualmente, essas estruturas, povoadas pelos filhos das elites, formam um
estado paralelo dentro do estado de direito.
Pior que a judicialização da política é a politização do
Judiciário.
Ademais,
a aliança espúria e virulenta entre setores do Ministério Público, da Polícia Federal
e do Judiciário com a imprensa, desde o chamado “Mensalão” e agora na “Operação
Lava Jato” - tramando jogadas midiáticas com traços fascistas -, constitui num
perigo inominável não somente para a ordem democrática, mas também para todos
os cidadãos e as demais instituições sociais. Quando a acusação em doses
cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de
culpa, chantagem e difusão do medo, mesmo não havendo investigações suficientes,
provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de
forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e promover caça às
bruxas flerta-se com um estado totalitário.
“O que a Lava
Jato investiga de fato, por meio de investigações secundárias, não é a
corrupção na Petrobras, não é a ação corruptora de empreiteiras, não são casos
de lavagem de dinheiro: são “os governos do PT”.
(Jânio de Freitas, colunista da Folha).
Como
escreveu o jurista Fábio Konder Comparato, o caráter patrimonialista, elitista,
hermético e autoritário do Judiciário brasileiro fez com que esse poder se
tornasse o menos transparente da República, avesso a investigações de toda
ordem, impedindo, desde sempre, que as inúmeras denúncias de corrupção e
favorecimento de seus quadros e de elites políticas tradicionais fossem punidas
nos limites da lei. Ao contrário, passa-se, em parceria com a mídia (serviçal
dos interesses das elites e, simultaneamente, o tribunal da santa inquisição da
contemporaneidade) uma falsa imagem de austeridade e idoneidade moral do
judiciário.
E
não adianta esconder: os excessos e arroubos autoritários cometidos por juízes,
policiais e promotores na Lava Jato fizeram com que o primeiro poder a ser
questionado, nesse momento, seja justamente o Judiciário.
5. Garantir as conquistas SOCIAIS e
buscar saídas seguras para as crises política e institucional
Todos nós, brasileiros, somos carne da carne
daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a
mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz
aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a
gente insensível e brutal, que também somos. (RIBEIRO, 1995, p. 120)
Não
há democracia numa sociedade estamental, como era o Brasil até bem pouco tempo. Porém,
para além da liberdade, a igualdade de direitos faz parte do processo de
consolidação da cidadania e é fundamento das democracias contemporâneas. Não é
possível, em pleno século XXI, que as elites sociais, políticas e econômicas brasileiras
continuem a defender a concepção liberal tradicional de democracia; ou seja, um
modelo de governança cujo objetivo maior é manter o poder político nas mãos de
poucos e inacessível à população. As democracias contemporâneas têm como
imperativo ético a consolidação da cidadania.
Não haverá justiça social e igualdade
no Brasil sem tocar nos privilégios historicamente acumulados.
Não é possível alcançar a paz sem perder nada.
Não é possível alcançar a paz sem perder nada.
Com
a Constituição de 1988 incorporamos, mesmo que lentamente, os pressupostos
basilares de um estado democrático e de direito. Porém, ainda resta um grande
caminho a ser percorrido rumo a efetividade da cidadania em nosso país. A
violência institucional, os preconceitos, o racismo, a seletividade dos
sistemas de justiça criminal e de segurança pública, o ódio travestido de
nacionalismo, a fragilidade do Estado na promoção da justiça e na consolidação
de direitos indicam que “se muito vale o já feito, mais vale o que será”.
Portanto,
uma crise, por mais aguda que seja, não pode colocar em risco os poucos avanços
conquistados nas últimas três décadas.
Não
se pode deixar de reconhecer que os governos do PT e este partido têm, também,
muitas responsabilidades pelo recrudescimento das disputas em curso. As
escolhas que foram feitas no passado por Lula (concessões ilimitadas aos grupos
políticos tradicionais; subserviência à política econômica do capitalismo
rentista; pacto entre elites dos mundos do trabalho e empresarial; incapacidade
de propositura de reformas estruturais, entre outras) e atualmente por Dilma
(inabilidade política para a negociação; erros estratégicos na concessão aos
grupos de direita, em detrimento das demandas populares, ocasionando um
distanciamento das bases sociais; composição da base de governo marcada pelo
fisiologismo e inabilidade política, entre outros) certamente contribuíram para
o caos instalado. Porém, impopularidade e equívocos administrativos na condução
do Estado não justificam um processo de impedimento sem crime de
responsabilidade caracterizado, como determina a Constituição.
Quando no poder, o PT não foi firme o suficiente na luta pela memória e
pela verdade e foi incapaz de reformar o sistema de segurança pública: essa
estrutura jurídico-policial criada para incriminar, perseguir, vigiar e punir
os pobres, os trabalhadores, os movimentos sociais, os negros, as mulheres e
outras minorias. Ao contrário, o PT manteve intocados os torturadores e
assassinos incrustados nessas estruturas e que desde sempre deram o
devido respaldo à direita.
Entre
os vários engodos patrocinados, propositalmente, pela mídia tradicional está a
confusão que associa o processo de impeachment
à operação Lava Jato. Como se sabe, uma coisa não tem nada a ver com a outra.
As motivações que ensejaram o pedido de impedimento são diferentes dos
objetivos da operação. Contudo, lamentavelmente, a Lava jato tem servido para
alimentar os grupos que defendem o impeachment.
Em
relação ao pedido de impedimento da presidente, alguns vícios são claros para
um observador atento. Um princípio basilar do direito aponta que um julgamento
nunca pode ser processado por “juízes” com evidentes conflitos de interesse com
o fato julgado. Acontece que, na comissão do impeachment, 31 deputados são denunciados por variados crimes e
lutam pela sobrevivência a qualquer custo, sem contar que o aceite para o processo
de impedimento foi ato do presidente da Câmara, réu em vários processos, numa
evidente estratégia de retaliação ao partido da presidente que ajudou na
aprovação de abertura de processo de sua cassação no Comitê de Ética (?).
Ademais, o argumento das pedaladas fiscais é claramente insuficiente, pelo fato
de que os presidentes anteriores e atualmente outros mandatários do poder executivo
(governadores de estados) usam das mesmas estratégias de manobras contábeis,
sem constrangimentos. Por fim, não é possível afastar a presidente e colocar em
seu lugar um vice que, quando no exercício do mandato presidencial, também
assinou decretos similares àqueles que ensejariam a perda do mandato da atual
presidente. Isso sem contar que, na linha de sucessão, depois de Temer vem
Eduardo Cunha e Renan Calheiros (além do presidente do Supremo, Ricardo
Lewandowski). Em relação aos três políticos, podemos plagiar o Ministro Luís
Roberto Barroso, do STF: “Meu Deus do céu! Essa é a nossa alternativa de
poder?” E em relação ao Ministro Lewandowski, por mais que o respeitemos e
admiremos, o exercício da presidência da República por um juiz que não foi eleito
para tal fim, salvo em casos excepcionalíssimos, constituiria um flagrante
desrespeito à soberania popular que se expressa na representação determinada
pelas urnas.
6. Por uma concertação nacional
Porém,
a saída para a crise atual (um jogo no qual todos perdem) deve ser pela via da política e não pelos tortuosos
caminhos judiciais e/ou policiais. Em defesa da democracia, da Constituição e
do Estado de direito é fundamental que as lideranças políticas e da sociedade,
de variadas matrizes ideológicas, pactuem uma concertação com vistas à
superação desse trágico momento nacional, criando condições para uma transição
dentro dos marcos da legalidade, não para acomodar interesses escusos, mas em
nome de um bem maior: o país e seu principal patrimônio, o povo brasileiro.
As ações da mídia e do juiz Sérgio Moro, apoiados pelas
lideranças políticas pró-impeachment
parecem não apontar para uma disposição ao diálogo. Continua-se buscando o
confronto a todo o custo, mesmo depois de inúmeras manifestações de segmentos
sociais e populares exigindo o respeito à legalidade e à Constituição e
rejeitando o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff.
Por outro lado, somente uma reforma política profunda propiciaria uma estabilidade para o sistema político.
Por outro lado, somente uma reforma política profunda propiciaria uma estabilidade para o sistema político.
É
importante lembrar que, com as instituições políticas e de representação em
frangalhos, nenhum governo terá legitimidade e condições objetivas para pactuar
uma transição, a não ser por vias negociadas. Portanto, essa concertação deve
ser suprapartidária e envolver entidades da sociedade civil como a CNBB (por
exemplo, que tem demonstrado apreço à ordem democrática e buscado, através de
inúmeros comunicados e posicionamentos institucionais, uma saída negociada para
a crise).
De imediato, uma
concertação política, que é diferente de uma coalizão política, poderia resolver os impasses atuais. Uma coalizão é formada por
atores que têm ideias e crenças similares e se associam tendo em vista
objetivos comuns. Uma concertação é articulada entre atores que, mesmo tendo crenças
pessoais, grupais e objetivos diferentes se associam com vistas a interesses
maiores, para além dos negócios e interesses particularistas ou de grupos. No
caso, uma concertação capaz de construir uma transição segura, legalista e nos
marcos democráticos.
Quem
sabe, uma concertação que construa uma solução a garantir o cumprimento do
mandato da atual presidente e, ao mesmo tempo, crie condições para a realização
de eleições gerais, incluindo, com todos os riscos, um novo sistema de
governança: um semipresidencialismo que resguarde o apreço do povo brasileiro à
figura do presidente, mas que tenha a figura do primeiro-ministro na condução
do governo. Essa concertação em prol do país teria condições, por exemplo, de
propor essa alteração na Constituição.
Para
aqueles que pensam no país e não no seu umbigo está na hora de buscar soluções
seguras para a crise. Caso contrário, a aposta no caos terá custos altíssimos
para a sociedade, mas, certamente, para aqueles que pensam em sair ilesos desse
processo dantesco no qual estamos mergulhados.
Referências bibliográficas:
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Nacional dos Bispos do Brasil). Entidades
assinam conclamação dirigida ao povo brasileiro. Disponível em [http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=18458:entidades-assinam-conclamacao-dirigida-ao-povo-brasileiro&catid=114&Itemid=106].
Acesso em 04.abr.2016.
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Acesso em 04.abr.2016.
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PIKETTY, Thomas. La dette publique est une blague! La vraie dette est celle du capital
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RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido
do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
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Žižek, Slavoj. O guia pervertido da ideologia.
[Documentário]. Disponível em: [https://youtu.be/3Nc7wAQ05QY/].
Acesso em 05.abr.2016.
Análise bem fundamentada do momento atual. Sugiro a leitura.
ResponderExcluirPerfeita a análise do autor. Só não concordo com a solução sugerida por ele: Parlamentarismo. Com parlamentares do nível que temos hoje e sempre tivemos, a baderna seria, como hoje, inevitável. Trocar-se-ia de Primeiro Ministro toda semana. A nossa constituição é híbrida. Foi feita para um governo parlamentarista e somos governados por um Presidente da República. Acho que só com uma reforma desta constituição, feita por notáveis não políticos (será que ainda existem?), se conseguiria arrumar a casa. Mas isto, eu sei, é muito difícil, pois depende deste mesmo Congresso, ou de outro que virá e que tenho a certeza não será melhor que o atual. Estamos num grande impasse.
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