Não
é preciso esperar um mês, sequer uma semana, para fazer uma avaliação do governo
ilegítimo. Cinco horas depois da notificação pelo Senado, o presidente interino
deixou claro seu compromisso com a dilapidação das políticas e das instituições
de proteção e garantia de direitos, de proteção social e de combate à corrupção.
A
composição ministerial do novo governo chega a ser uma afronta inominável à
população brasileira: um time composto por 100% de homens brancos, 78%
milionários, 31% donos de rádio e TV, 31% citados na Operação Lava Jato mostra
a que veio o coronel da velha república. Ao escolher como lema “ordem e
progresso” (os ideais de Benjamin Constant e dos fundadores da república de e
para poucos - fazendeiros, ilustrados positivistas, maçons e militares), o
governo ilegítimo deixa claro que a ordem burguesa conservadora, elitista e
opressora prevalecerá de agora em diante, lançando o país no século 19. Ordem
burguesa, para ficar claro, é aquela estrutura policial-judicial-estatal que,
em nome da lei, sufoca, reprime e, no limite, elimina todo o opositor. Não é à
toa que os pitbulls globais, por
exemplo, já vomitam nos noticiários da emissora oficial do golpe expressões do
tipo “desordeiros” ou “baderneiros” (em relação aos movimentos sociais e
manifestações contra o governo) para justificar a repressão.
No campo dos direitos humanos, quero sublinhar, tivemos uma
regressão de quase meio século. Desde 1948, com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, assistimos no mundo inteiro uma ampliação das políticas
públicas de defesa, garantia, proteção e promoção de direitos. No Brasil, mesmo
que tardiamente, desde o governo Sarney, passando pela Constituição Federal de
1988, depois no governo FHC (com a criação de órgãos, programas, projetos e
políticas de direitos humanos) e a ampliação e consolidação dessas políticas nos
governos Lula e Dilma, tivemos a construção de uma sólida política de estado de
direitos humanos. Agora, ruborizados de vergonha, assistimos, numa canetada e de forma
violenta, a extinção dos ministérios da Igualdade Racial, das Mulheres, da Juventude,
dos Direitos humanos. Na prática, um colossal retrocesso em relação aos
direitos de mulheres, jovens e negros, e mais especificamente, dos quilombolas,
povos de matriz africana, povos e comunidades tradicionais, população LGBT,
grupos vítimas de tráfico de pessoas e tortura, entre outros.
Chama
a atenção o fato de se localizar justamente no Ministério da Justiça o novo órgão
que cuidará desses temas. O atual titular da pasta da justiça (?), que era
secretário de segurança de São Paulo, autorizou a invasão das escolas e a prisão
de adolescentes que as ocupavam, protestando contra a máfia da merenda. Além
disso, já foi advogado de Eduardo Cunha, o inominável, e do
PCC (Primeiro Comando da Capital) (veja aqui).
Recentemente, disse à imprensa que determinadas manifestações populares são atos de
guerrilha (veja aqui). Será mera coincidência essa estreita relação do novo governo com o governo Alckmin? Seria
uma prévia do projeto dos tucanos com os peemedebistas para 2018?
É
bom lembramos, aqui, Hannah Arendt: primeiro, a violência destitui a fala,
no caso, das minorias. Depois, vêm todas as outras formas de domínio e de
opressão. Esses grupos historicamente invisibilizados e vulnerabilizados da
sociedade brasileira passam, de agora em diante, a serem definitivamente
excluídos e extirpados do estado (não-democrático de direita).
Como
se não bastassem tantos retrocessos e violências contra uma sociedade plural,
desigual e diversificada, o governo ilegítimo fundiu os ministérios da Educação
e da Cultura, colocando em seu comando um político do DEM que é a favor do
rebaixamento da idade penal e que tem questionado, repetidas vezes, políticas
de ampliação da educação pública, de ações afirmativas e de alargamento do
acesso à universidade pública. Também aqui há uma visão do século 19, que
sustenta o perverso argumento segundo o qual as universidades públicas devem
ser centros de formação da elite dirigente do país.
Na
biografia do titular da educação consta ainda o fato de ele ter fortes relações
com o instituto que cedeu ao governo tucano de São Paulo o projeto de
reestruturação das escolas, ocasionando uma forte e cívica reação dos
estudantes que passaram a ocupá-las, primeiro denunciando esse projeto; depois
pelo roubo da merenda naquele estado (veja aqui).
Em
relação a violência contra os trabalhadores e as trabalhadoras deste país, a transformação do Ministério do Trabalho e
Previdência Social em Ministério do Trabalho e o fato de a Previdência passar a
ser uma mera atribuição do ministro da Fazenda, com o compromisso explícito de
realizar uma ampla reforma (alterando a idade mínima para aposentadoria,
desvinculando o salário mínimo do reajuste das aposentadorias e possivelmente
privatizando a Previdência) mostra claramente o desdém do governo ilegítimo para
com a classe trabalhadora. O ministro da fazenda, que recuso citar seu nome,
teve a desfaçatez de afirmar que “direitos adquiridos é um conceito
impreciso” (veja aqui),
não restando dúvida que o feitor dos trabalhadores não poupará sequer os
direitos previdenciários já adquiridos.
E
tem mais: a extinção da Controladoria-Geral da União (CGU), o órgão responsável
nos últimos anos pelo sistemático combate e desmonte da corrupção na máquina
pública federal (sendo mais eficiente que as estruturas seletivas do judiciário
e ministério público nessa área), foi extinta em ataque frontal ao direito de
acesso à informação e limitação do combate à corrupção. Sua extinção e substituição
pelo Ministério de Transparência, Fiscalização e Controle, esse pomposo nome
que não significa nada na prática, retira autonomia do órgão (fundamental para
um enfrentamento eficiente da corrupção). Ademais, trata-se de uma afronta à doutrina
internacional do controle interno que determina que mecanismos de controle
estejam diretamente vinculados à Presidência da República. Não precisa escrever
mais sobre isso. O fato de o presidente ilegítimo e sete de seus ministros
estarem envolvidos em diversas denúncias de corrupção sugere que há algo muito
estranho e oculto no aparente reino dos que tomaram o poder sem ter votos. A cegueira
da justiça em relação a esse e outros fatos mostra que a degradação dos poderes
não se limita no executivo e no legislativo.
A
questão agrária e rural será, agora, uma espécie de “puxadinho” do Ministério
de Desenvolvimento Social. Sob o comando de um peemedebista gaúcho, a ordem é
fortalecer o “empreendedorismo rural”. Quantas palavras bonitas “pra inglês
ver”, bem nos moldes positivistas da velha república. Provavelmente, doravante ocorrerão
ações sistemáticas para desmontar o que foi criado visando o fortalecimento e a
autonomia dos agricultores familiares, camponeses e indígenas que garantem mais
de 70% dos alimentos que os brasileiros consomem. De agora em diante, no
governo dos coronéis, esses segmentos do campo passam a ser tratados como
pobres coitados e não mais como importantes atores do desenvolvimento socioeconômico
e ambiental do país.
Por
fim, a violência real e simbólica praticada contra a presidenta Dilma (uma
mulher que é bela, recatada, do lar, da luta, da democracia e com mãos limpas) virou
escândalo na comunidade internacional. Nenhum chefe de estado e de governo
apareceu para defender o governo ilegítimo. Ao contrário, as notícias que temos
de várias fontes, obviamente não da imprensa golpista, é que o constrangimento
é geral. Até mesmo liberais democratas de variados países que, apesar de serem
serviçais do mercado são respeitadores da lei, andam atordoados com as notícias
do Brasil. Um vexame sem fim...
É
preciso, neste momento, dizer algo mais: instituições e pessoas que se dizem defensores
da democracia e se calam frente a tanta violência precisam sair da toca (do
comodismo, do medo ou da paralisia decisória). Afinal, como diz o velho ditado
popular, geralmente, “quem cala consente”.
Com
racionalidade, alguma serenidade e estudando um pouco da história e da política
brasileiras, consigo compreender claramente os processos de conquista do poder
pelas elites desse país. Historicamente, são inúmeros os exemplos que mostram
que esses grupos poderosos (ora com a cruz e a espada; ou com a chibata; ou com
as armas e canhões e, agora, com a ajuda do parlamento, da mídia e da justiça) se
impõem pela força, contra o povo e o projeto de uma nação, das mais variadas
formas. Por isso, o sentimento não é de ódio no coração, nem confusão na mente.
Sinto-me triste, envergonhado e angustiado frente à imensa involução social, política, moral e ética de um governo
ilegítimo. Por isso, não reconheço um governo golpista.
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