quarta-feira, 13 de junho de 2018

A importância das disputas de narrativas


O caso do "terço enviado pelo Papa a Lula" (que invadiu as redes sociais e produziu pelo menos três notas da Secretaria de Comunicação do Vaticano) é emblemático. Mostra a importância das disputas de narrativas entre os setores hegemônicos e as novas mídias sociais, alternativas e não atreladas aos poderosos.

Até bem pouco tempo, a mídia empresarial e os setores conservadores da sociedade, irmãos siameses, tinham o monopólio da informação e se pontificavam como donos da Verdade. 

Há algum tempo novos atores (sociais, políticos, culturais...) , historicamente silenciados e/ou ignorados, entraram em cena. 

Primeiro, esse novo mundo da comunicação foi acusado de provocar o caos; agora, é acusado de produtor de mentiras.

Penso que não se trata de uma questão maniqueísta. O bem e o mal estão presentes em ambos os campos. Trata-se, isso sim, de problematizar o que está em disputa. Visões totalmente antagônicas de mundo. Não só duas visões. Mas, em sociedades capitalistas, múltiplas visões lastreadas em paradigmas neoliberais (mercado e capital no centro) e socialistas ou social-democratas (o ser humano no centro), para simplificar uma complexa discussão...

Numa sociedade polissêmica, como se transformou o Brasil nos últimos tempos, outras vozes, para além dos que se julgam os donos da verdade e do saber/conhecimento, disputam as muitas narrativas possíveis. Isso incomoda por demais o establishment (elites econômicas, políticas, intelectuais, sociais, religiosas...).

A velha "pax romana", ou paz dos túmulos - sendo a mídia o instrumento de dominação, via manipulação e chantagem desse modelo de sociedade subserviente e servil aos interesses de uns poucos -, encontra nas redes comunicacionais alternativas uma trincheira permanentemente aberta para a disputa de visões de mundo.

É claro que os barões da velha mídia estão esperneando...

Agora, querem imprimir a censura e retomar o campo perdido criando as "agências de checagem", muitas delas regadas com dinheiro (de banqueiros e grandes empresários) e interesses daqueles que insistem em transformar opinião publicada em opinião pública.

A isenção do jornalismo da velha mídia se transformou em conto da carochinha e, desmascarados, os barões da mídia tentarão criar novos mecanismos de controle e manipulação da informação. 

Ou, no desespero, retomando a velha tradição autoritária da mídia empresarial tupiniquim, apelarão aos tutores da sociedade (legislações draconianas e/ou utilização dos sistemas de justiça e segurança), a demandar o controle da comunicação pela força (das leis ou das armas) .

Mas, a luta continua...

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Criminalização da política: a quem interessa?

Charge: Ivan Cabral. Internet


Uma onda avassaladora de criminalização da política, capitaneada principalmente pela mídia empresarial e por segmentos conservadores e ultraliberais das elites nacionais, vem destruindo o pouco de democracia que ainda resta no país.

Interesses escusos querem implantar nas mentes e nos corações dos brasileiros que a política institucional (aquela que se desenvolve nos poderes públicos, nos partidos, a política eleitoral, etc.) é suja, pervertida e eivada de vícios e de corrupção.

Esses abutres da democracia querem consolidar, depois da atual república dos larápios, uma plutocracia ou uma juristocracia nessas bandas dos trópicos.

Com essa estratégia, os eleitores vão se afastando cada vez mais da política. Muitos, como zumbis, repetem expressões do tipo “todos os políticos são bandidos”; ou “não voto porque meu voto não vale nada”.

Em redes sociais, fake news sobre o tema são abundantes. Algumas, anunciam mentiras deslavadas do tipo: “se a metade dos brasileiros anular o voto novas eleições serão convocadas, com novos políticos”.

Progressivamente, observamos um afastamento do cidadão de todas as instâncias de participação, inclusive do processo eleitoral. Esse desencanto, urdido por interesseiros que querem destruir até mesmo a fragilíssima democracia representativa, dá sinais do esgarçamento da política.

Vejamos alguns resultados de eleições suplementares realizadas nesse domingo, dia 03/06, em cidades e no estado do Tocantins:

1. Em Teresópolis (RJ), a abstenção na votação chegou a 34,52% do eleitorado. Entre os que compareceram, 4,3% votaram branco e 17,78% anularam. Ou seja, 56,58% do eleitorado, de alguma forma, se eximiram das escolhas.

2. Em Ipatinga (MG), a taxa de abstenção foi de 31,71%. O percentual de votos em branco foi de 5,06% e nulos 17,33%. TOTAL:  55,09% do eleitorado.

3. No estado de Tocantins, para governador, a taxa de abstenção foi de 30,14%. O percentual de votos em branco foi de 2,6% e nulos 17,13%. TOTAL:  49,87%.

Ou seja, em todos os três exemplos, a metade dos eleitores, ou mais, "lavaram as mãos": votaram em branco, se abstiveram ou anularam o seu voto.

Observando os resultados de pleitos de 2014 e 2016 já vínhamos percebendo o crescente afastamento do eleitor do processo de escolha dos representantes. Quem ganha com isso?

Agora, pense nas eleições presidenciais de outubro (SE OCORREREM, claro!).

E se esses índices de abstenção, brancos e nulos se mantiverem?

Significa que um candidato pode levar o primeiro turno com pouco mais de 25% dos votos válidos (metade mais 1 voto em relação à soma dos demais concorrentes).

Pelo critério da maioria absoluta, o candidato que tiver mais da metade dos votos válidos (excluídos os votos em branco e os votos nulos) é eleito. Ou seja, por esse sistema, uma vez obtida maioria absoluta dos votos válidos já em primeiro turno, o candidato é considerado eleito desde logo, não se realizando segundo turno.

Noutro cenário possível, com uma disputa entre vários nomes no primeiro turno e uma alta taxa de abstenção, brancos e nulos, um candidato radical poderá passar para o segundo turno com algo em torno de 10% dos votos válidos e, aí, o buraco poderá não ter fim.

Que legitimidade e “força” política para governar terá um presidente eleito com votação pífia? (Ainda mais num cenário de radicalismos e disputas figadais, como presenciamos nos últimos tempos).

Porém, presidentes "fracos", passíveis de todo o tipo de chantagem, são ótimos para os poderosos que se apropriam do Estado. Vejam o que acontece no momento atual: Temer é uma marionete nas mãos de latifundiários, empresários, rentistas, juízes, etc...

É preciso entender porque a mídia empresarial e a turma que é democrata somente de fachada criminalizam a política. Entre outros motivos, querem limitar ainda mais a participação do povo nas decisões sobre os rumos do país (até mesmo no processo eleitoral) e desejam que os poderes Executivo e Legislativo (que são eleitos) sempre estejam fragilizados, deslegitimados e/ou povoados por interesses privados.

Como se não bastasse essa situação vergonhosa, precisamos considerar a legislação eleitoral brasileiras, cujas regras beneficiam escandalosamente quem tem mais dinheiro (antes CNPJ, agora CPF), as elites partidárias e as personagens extravagantes, geralmente paridas pela mídia. Ou seja, há viesses antidemocráticos intrínsecos ao processo eleitoral. 

Sobre a ação seletiva da justiça, em geral, e da justiça eleitoral, em particular, nessa trama é dispensável qualquer comentário: as evidências da seletividade e até da partidarização do poder judiciário saltam aos olhos.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Brevíssima análise de conjuntura em 10 pontos

Charge: Mario.Net

1. Quem governa o Brasil (e boa parte do mundo, diga-se de passagem) são os donos do capital, principalmente os rentistas. Temer e sua camarilha são serviçais, em nosso país, dessa turma: latifundiários, banqueiros, empresários (do yellow duck) e especuladores. Temer, provavelmente, permanecerá no poder porque não há, no momento, outra marionete (dos poderosos) para substituí-lo. A depender da situação, outro golpe dentro do golpe será engendrado. Ou seja, desde o impeachment fajuto, o Estado brasileiro está para os donos do capital e não para os cidadãos. Quem manda é o deus todo-poderoso e invisível chamado “mercado”, que não respeita a Constituição (nem os processos eleitorais); não se preocupa com o povo e a Nação e, portanto, não vai se curvar aos cânones democráticos.

2. O golpe foi para manter a metade do orçamento do país intocável, destinado aos especuladores da banca e, também, para conservar privilégios de elites e segmentos que sempre se beneficiaram desse modelo escroto de sociedade (altamente excludente, violenta e injusta). Por isso, todas as contrarreformas do grupo que usurpou o poder em 2016 não são para melhorar o país ou a vida do povo; são para garantir a pilhagem do erário pelos ricos e precarizar os direitos dos trabalhadores, aqui, inclusa, por óbvio, a classe média (inclusive os batedores de panela inox que se acham burgueses).

3. Para manter o Brasil prostrado aos interesses geopolíticos norte-americanos e à banca, o baronato brasileiro se uniu a segmentos hegemônicos do Poder Judiciário na empreitada golpista. Numa parceria com o MP e a PF, o Judiciário institucionalizou um estado judicial-policial seletivo que interfere nos processos democráticos, com as bênçãos do Supremo.

4. O golpe se constituiu numa união, precária, mas eficiente, das elites nacionais, da mídia empresarial e do judiciário. Parlamento e Executivo, repletos de prepostos dos barões (como os que mandam no banco central, por exemplo), ora servem, ora são massa de manobra dos donos do poder. 

5. Para inviabilizar qualquer projeto popular, Lula foi preso e continuará como preso político. É uma infantilidade achar que o STF e/ou o TSE, históricos representantes da Casa Grande, irão liberá-lo às eleições.

6. Se houver eleições, Lula estará fora do páreo. Portanto, suas chances de se desvencilhar das armadilhas dos golpistas são: (a) restauração da democracia (mesmo que formal), favorecendo mudanças institucionais a médio prazo (incluindo substituições no STF) e/ou a ação indireta de organismos internacionais que venham a denunciar o processo judicial de exceção, a exigir  revisões do mesmo.

7. Enquanto isso, se houver eleições, os setores democráticos e do campo de esquerda precisam trabalhar, e rápido, com a hipótese de um candidato que tenha musculatura eleitoral (aspecto pragmático) e seja do campo democrático (aspecto programático). O apoio de Lula será o diferencial e decisivo a alavancar essa candidatura.

8. Mesmo sendo compreensível a luta correta, mas quixotesca, do PT em relação à candidatura de Lula, seria estratégico que o partido, em articulação com seu líder maior, explicitasse o mais rápido possível que está disposto a formar, de fato e não na verborragia inconsequente, uma frente de democrático-popular de centro-esquerda, inclusive abrindo mão da cabeça de chapa. E que incluísse as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo nessa concertação.

9. Neste sentido, um candidato do campo progressista, que tem alguma competitividade e que tiver o apoio de Lula (e não necessariamente do PT), terá condições de disputar, seguramente, as eleições presidenciais com chances de vencer o pleito no segundo turno e iniciar um longo processo de reconstrução nacional, com alguma legitimidade (dado o alto nível de esfacelamento da sociedade).

10. É nesse cenário que, sem abandonar a denúncia constante e veemente das arbitrariedades cometidas contra Lula e intensificando a luta de organização social, que o campo progressista, principalmente o PT, deve considerar os demais pré-candidatos. Insistir na luta fratricida de desconstrução da imagem dos demais candidatos que podem compor uma aliança de centro-esquerda é petulância e irresponsabilidade política e eleitoral.


NB: Vejo comemorações efusivas de decisões periféricas do TSE e do TRF3. Pessoas, bem-intencionadas, que acreditam que a justiça irá liberar Lula. Fé? Ingenuidade? Ilusão? Não sei se é trágico ou hilário.

domingo, 27 de maio de 2018

BREVE RELATO DE UM CIDADÃO, NUM PAÍS ARRASADO

Charge: Latuff, para o Opera Mundi.

Fui ao supermercado fazer umas compras agora a tarde, neste domingo, 27/05. Lá, balconistas e outros trabalhadores atendiam educadamente os clientes. Estes, por sua vez, só reclamavam de tudo e de todos, como se não tivessem nenhuma responsabilidade com tudo o que está acontecendo no país (depois do golpe patrocinado, em parte, por segmentos privilegiados da classe média).


No Brasil, os trabalhadores(as) em sua maioria absoluta são honestos e cumpridores das leis. Por isso, temos que bater palmas para a coragem dos caminhoneiros (excluídos aqueles que acham que o cacete resolverá os problemas do país), que não aceitam mais tanta espoliação por parte de seus patrões e desse desgoverno. Parabéns, por não terem cedido a um acordão feito pelo andar de cima, para favorecer os que sempre se beneficiaram das negociatas de bastidores.

Do outro lado, temos uma elite de mentalidade e práticas coloniais e escravocratas que perdeu todo o pudor. Dois exemplos: 

(1) Donos de postos de gasolina vendendo o produto a 10 reais. Trata-se somente uma pequena mostra da ganância, falta de solidariedade, de ética, de espírito nacionalista e de respeito à lei e ao estado de direito do nosso empresariado que, salvo exceções, só quer explorar e sugar o máximo do povo e do país. Mas que não abre mão de curtir as férias vendo o pateta na disneylândia. Os empresários nacionais, bem representados pelo "yellow duck", o pato amarelo da Fiesp, adoram reclamar da carga tributária no Brasil, mas escondem que a sonegação fiscal em nosso país chegou a 500 bilhões de dólares em 2017, segundo os procuradores da Fazenda Nacional.

(2) Outro exemplo do entreguismo sádico das elites no poder: a Petrobrás, sob o comando de Pedro Parente, indicado ao cargo por FHC e pelo PSDB, adotou uma política de preços altos dos combustíveis que viabilizaram a importação de petróleo pelas concorrentes multinacionais. Segundo a Associação dos Engenheiros da Petrobrás, “a estatal perdeu mercado e a ociosidade de suas refinarias chegou a um quarto da capacidade instalada. A exportação de petróleo cru disparou, enquanto a importação de derivados bateu recordes. A importação de diesel se multiplicou por 1,8 desde 2015; dos EUA por 3,6. O diesel importado dos EUA que em 2015 respondia por 41% do total e em 2017 superou 80% do total importado pelo Brasil. Os funcionários da Petrobrás chamam a política adotada pelo governo Temer de “America first!”, ou seja, “os Estados Unidos primeiro!”. Com essa política, “ganham os produtores norte-americanos, os “traders” multinacionais, os importadores e distribuidores de capital privado no Brasil. Perdem os consumidores brasileiros, a Petrobrás, a União e os estados federados com os impactos recessivos e na arrecadação”. 

Em relação aos membros dos poderes executivo e legislativo federais na atualidade, também salvo exceções, não é preciso comentar. Trata-se de um conglomerado de larápios e desqualificados da pior espécie, serviçais do rentismo nacional e internacional. Todas as contrarreformas feitas até agora pelo executivo e o congresso nacional visam a favorecer empresários, rentistas, latifundiários e banqueiros às custas do sangue e do suor dos trabalhadores brasileiros.

E o judiciário? Hoje, nos jornais, Carmen Lucia, também conhecida como a “madre superiora”, diz que falhou na sua missão de pacificação nacional. Que conversa é essa, senhora ministra? Todos sabemos que o objetivo de Vossa Excelência no comando da Suprema Corte é manter tudo como sempre esteve. Neste sentido, seu mandato é um sucesso estrondoso. Afinal, o STF sempre utilizou do exercício abstrato, seletivo e discricionário do direito e da lei para manter o status quo dessa sociedade caracterizada pela abissal desigualdade social e pela justiça e violência seletivas. Mesmo diante de um país sendo destruído por uma quadrilha, o STF abençoou toda a empreita golpista. Nesse sentido, Vossa Excelência cumpre à risca o que as elites sempre esperaram do STF sob sua presidência. Receba os mais efusivos cumprimentos de quem de direito(a).

sexta-feira, 18 de maio de 2018

O Papa Francisco e os golpes



                Desde ontem, dia 17/05, as redes sociais reproduzem, em doses cavalares, trechos de uma homilia feita pelo Papa Francisco durante a missa rezada na Capela da Casa Santa Marta, no Vaticano. Até mesmo a mídia empresarial foi “obrigada” a reproduzir a notícia, haja vista a grande repercussão das reflexões do Pontífice.

                Segundo o portal de notícias do Vaticano, o Vatican News, durante a pregação Francisco tratou de alertar os presentes sobre a intriga, utilizada principalmente pela mídia, na atualidade, como um método para condenar as pessoas.

“Criam-se condições obscuras” para condenar a pessoa, explicou o Papa, e depois a unidade se desfaz. Um método com o qual perseguiram Jesus, Paulo, Estevão e todos os mártires e muito usado ainda hoje. E Francisco citou como exemplo “a vida civil, a vida política, quando se quer fazer um golpe de Estado”: “a mídia começa a falar mal das pessoas, dos dirigentes, e com a calúnia e a difamação essas pessoas ficam manchadas”. Depois chega a justiça, “as condena e, no final, se faz um golpe de Estado”. Uma perseguição que se vê também quando as pessoas no circo gritavam para ver a luta entre os mártires ou os gladiadores.”

Em relação à mídia empresarial, o Papa Francisco não cansa de alertar sobre a imposição de um discurso em uníssono que se concretiza com “a concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural” e é parte da estratégia do sistema que produz a morte dos pobres e da Mãe Terra. E, para tanto, “as instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações”. (Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, na Bolívia, em 2015).

Obviamente, ninguém pode “colocar na boca” de Francisco o que ele não disse. Seria, portanto, uma irresponsabilidade afirmar que o Papa estava se referindo especificamente ao golpe de 2016, apesar da imensa similaridade com o ocorrido no Brasil, principalmente pelo fato de o Pontífice apontar com extrema clareza e concisão a participação da mídia e da justiça nos golpes de estado, na atualidade. (Registremos que os golpes havidos no Paraguai e em Honduras tiveram o mesmo enredo do golpe ocorrido no Brasil: parlamento, mídia e justiça, com a participação dos Estado Unidos, como os principais atores nessas tramas golpistas).

Por outro lado, é ingênuo pensar que o Papa fez essas considerações sem fulcro na realidade sociopolítica contemporânea latino-americana e brasileira.

É importante destacar que não é a primeira vez que Francisco mostra-se atento ao recrudescimento das forças ultraliberais que dominam os estados nacionais, principalmente nos países em desenvolvimento ainda marcados pela desigualdade social, em favor do mercado e da economia rentista, a sustentarem um “sistema global idólatra que exclui, degrada e mata” (Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, na Bolívia, em 2015).

Ademais, a atualidade do discurso do Papa em relação ao que ocorre na América Latina e no Brasil nos últimos tempos pode ser percebida quando Francisco tratou, noutras ocasiões, das múltiplas tentativas de destruição da identidade dos povos latino-americanos: “Identidade que alguns poderes, tanto aqui como em outros países, se empenham por apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária; porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro” (Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, na Bolívia, em 2015).

Neste sentido, pode-se afirmar que o Papa Francisco não ficou alheio aos “golpes suaves” ou “golpes brandos” que ocorreram no Brasil e noutros países da América Latina. Em reunião com a presidência do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) – órgão colegiado dos bispos de toda a América Latina – em 19 de maio de 2016, por exemplo, o Papa Francisco advertiu que "pode ​​estar acontecendo "golpes de estado suaves” em alguns países da região. Segundo o portal de notícias “Religião Digital”, da Espanha, o Pontífice, durante a referida reunião, expressou preocupação com os problemas sociais dos países da América Latina em geral. Segundo o Papa, estaria ocorrendo um "golpe de estado suave" em alguns países. (Fonte: http://www.periodistadigital.com/religion/vaticano/2016/05/20/el-papa-recuerda-al-celam-que-la-interpretacion-correcta-de-la-amoris-laetitia-es-la-del-cardenal-schonborn-religion-iglesia-vaticano.shtml ).

Corroborando essa reportagem, alguns dias antes do encontro com a cúpula do episcopado latino-americano, em 28 de abril de 2016, Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do prêmio Nobel da paz, relatou que o Papa Francisco acompanhava com preocupação a crise política no Brasil. Em entrevista, disse que discutiria com o pontífice o processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. "Ele (Francisco) está muito preocupado com o que ocorre aqui. Também está preocupado com outros problemas no continente, retrocessos democráticos", afirmou.

Segundo reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”, o Nobel da Paz não adiantou qual a avaliação do papa sobre o Brasil, mas apresentou a sua posição: "Temos muito claro que o que está se preparando aqui é um golpe, aquilo que chamamos de golpe branco", disse. "Esses golpes brancos já foram colocados em prática em países como Honduras e Paraguai. Agora, a mesma metodologia que não necessita de Forças Armadas está se utilizando aqui no Brasil". (Fonte: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,nobel-da-paz-diz-que-papa-francisco-acompanha-com-preocupacao-crise-politica-no-brasil,10000032337).

Considerando todas essas intervenções, sem contar a negativa do Pontífice em visitar o Brasil durante as comemorações dos 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida, no ano passado, pode-se deduzir que o Papa Francisco, ao contrário dos episcopados latino-americano e brasileiro, tem posições bastante consolidadas sobre a situação política na América Latina e, em especial, no Brasil. Aliás, a narrativa de Francisco acerca dos “golpes brandos” ou “suaves” é a mesma narrativa reproduzida quase que unanimemente pela mídia internacional e, sintomaticamente, rechaçada pela mídia tupiniquim.

Obviamente, a postura de Francisco não se restringe à defesa de um partido ou de uma ou outra personalidade. Suas admoestações (como o bom pastor que se preocupa com a vida digna de seu rebanho), tratam, fundamentalmente, de uma posição política baseada na leitura acerca da realidade brasileira, marcada pela avassaladora destruição do estado de proteção social, implementada pela coalizão que tomou o poder e que, desde então, mostra-se totalmente descomprometida com a justiça social, a submeter a maioria dos brasileiros a condições de vida degradantes.  

O mandamento de Jesus é claro: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Neste sentido, Francisco, clara e profeticamente, não aprova medidas governamentais, não somente no Brasil, mas em qualquer parte do mundo, que deteriorem ou comprometam a dignidade da vida humana, principalmente dos segmentos empobrecidos.

Em outras ocasiões, o Pontífice tem denunciado que o sistema financeiro que domina boa parte dos países na contemporaneidade “tornou-se insuportável”. Por isso, o Papa faz sempre faz uma convocação: “digamos sem medo [que] queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas”. Para tanto é preciso colocar a economia a serviço dos povos.” (Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, na Bolívia, em 2015). E o atual governo brasileiro tem feito justamente o contrário: coloca a economia a favor dos rentistas e especulares nacionais e internacionais.

Como disse Jesus em certa parte do Evangelho, “quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Mateus 11, 15).

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Cristãos comprometidos com a fé e a política


No período entre os dias 4 e 6 de maio, em Fortaleza, aconteceu uma reunião ampliada do Movimento Nacional de Fé e Política. Representantes de 14 estados, totalizando cerca de 85 participantes, se dedicaram à análise de conjuntura sociopolítica, atividades de formação e a preparação do 11º Encontro Nacional, que se realizará em julho de 2019, em Natal (RN) comemorando os 30 anos do movimento.


O Movimento Nacional Fé e Política foi criado em junho de 1989, durante um encontro de pessoas unidas pela fé cristã engajada nas lutas populares, com o objetivo de alimentar a dimensão ética e espiritual que deve animar a atividade política.  Ao longo de sua existência o Movimento promoveu encontros de estudo, dias de espiritualidade e publicou quinze cadernos sobre a relação entre Fé e Política.  Por definir-se como um serviço de formação e estímulo a grupos de reflexão, o Movimento não é mais do que um grupo informal de serviço aos grupos de base. Sua organização é muito simples: todos os seus membros são voluntários, sua coordenação geral é formada por seis membros escolhidos entre os antigos militantes mais dois representantes de cada estado dos locais onde foram realizados encontros nacionais. A secretaria-executiva é encarregada de ajudar a equipe do local onde será realizado o Encontro, produzir e publicar textos que ajudem a reflexão dos grupos, alimentar a página do Movimento na internet e fazer a articulação geral entre os grupos interessados. O espaço onde tudo acontece de fato é nos grupos de base. O Movimento apenas lhes proporciona incentivos e ideias. Mais informações em (www.fepolitica.org.br).

Segundo Leonardo Boff, um dos fundadores do Movimento, “A fé tem a ver diretamente com Deus e seu desígnio sobre a humanidade. Mas ela está dentro da sociedade e é uma das criadoras de opinião e de decisão. Ela funciona como uma bicicleta. Possui duas rodas, mediante as quais se torna efetiva na sociedade: a roda da religião e a roda da política. A roda da religião se concretiza pela oração, pelas celebrações, pelas pregações e pela leitura das Escrituras. Pela roda da política, a fé se expressa pela prática da justiça e da solidariedade. Como se vê, política é sinônimo de ética. Temos que aprender a nos equilibrar em duas rodas para andar corretamente. A Bíblia considera a roda da política como ética mais importante que a roda da religião como culto. Sem a ética, a fé fica inoperante. São as práticas que contam para Deus. Melhor que proclamar “Senhor, Senhor” é fazer a vontade do Pai. Concretamente, fé e política se encontram juntas na vida das pessoas. A fé inclui a política, quer dizer, um cristão deve se empenhar pela justiça e pelo bem-estar social; deve optar por programas que se aproximem daquilo que entendeu ser o projeto de Jesus e de Deus.”

A reunião em Fortaleza do Movimento contou com a análise se conjuntura conduzida pelo professor Juarez Guimarães (cientista político da UFMG) e pela Pastora Romi Bencke (secretária do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs - CONIC). Na ocasião, foi feito amplo debate sobre os desafios que a realidade política brasileira impõe aos cristãos comprometidos com uma sociedade mais justa, fraterna e solidária.

No sábado, dia 05, uma primeira mesa de debates intitulada “Políticas Públicas na perspectiva do Bem Viver”, com a participação da professora Tânia Bacelar (UFPE) e de Ivo Lesbaupin (Iser – Assessoria) analisou os desafios para a construção da sociedade do bem viver (um conceito que propõe a construção de novas realidades políticas, econômicas e sociais a partir de uma ruptura radical com as noções de “progresso” e “desenvolvimento”, pautadas pela acumulação de bens e capital, pelo crescimento infinito e pela exploração inclemente dos recursos naturais e que está colocando em risco a sobrevivência dos próprios seres humanos sobre a Terra).

Ainda no sábado, com a participação de Frei Betto e do Padre Manfredo Oliveira (UFC) discutiu-se o tema ética e sua relação com as práticas sociais. As abordagens trataram dos desafios sociais e ecológicos da crise de época, que também é uma crise de paradigmas, que se impõe sobre a sociedade capitalista, atualmente. É urgente o cuidado com as pessoas, principalmente “nas periferias existenciais e sociais”, conforme o Papa Francisco que também alerta toda a humanidade para o cuidado com a Casa Comum (a natureza).

O domingo foi dedicado a encaminhamentos com vistas à mobilização da grande rede de agentes sociais e políticos que formam o Movimento. Também foram acertadas as principais ações para o próximo encontro nacional, em Natal.

Segue, abaixo, a carta divulgada pelo Movimento no final do encontro:

"O Movimento Nacional Fé e Política reunido em Seminário nos dias 04, 05 e 06 de maio em Fortaleza-CE, com o Tema POLÍTICAS PÚBLICAS, ÉTICA E PRÁTICAS SOCIAIS NA PERSPECTIVA DO BEM VIVER, com 80 (oitenta) participantes representando 13 (treze) Estados e o Distrito Federal, manifesta sua indignação diante dos últimos acontecimentos que ameaçam a democracia e o Estado de Direito. Tudo isso tem acarretado a perda da soberania dos direitos do povo brasileiro, em especial dos pobres e trabalhadores(as).

Temos constatado que o golpe jurídico-parlamentar ocorrido em 2016, com o impeachment da Presidente Dilma, demonstra parcialidade de parte da justiça brasileira com a participação da grande mídia e do capital nacional e internacional, e consolidam-se comportamentos nefastos à democracia como: o ódio, a intolerância e a violência. Esta última, expressa em diversos assassinatos de lideranças que se colocam em apoio aos direitos humanos dos pobres e excluídos, como aconteceu com a Vereadora Marielle Franco e seu motorista Ânderson.

Frente a tudo isso, os participantes do Seminário Nacional de Fé e Política vêm manifestar seu apoio e solidariedade ao Presidente Lula, companheiro de caminhada deste Movimento, depois de sua injusta condenação, sem provas e a sua prisão arbitrária.

Da mesma forma, em face da luta em defesa da reforma agrária e direitos dos trabalhadores/as do campo, repudiamos os diversos assassinatos, cerca de 70 (setenta), que ocorreram no campo, bem como, repudiamos a prisão do Padre Amaro. Tais violências têm como principal objetivo intimidar os(as) lutadores(as) sociais e criminalizar os movimentos sociais e populares.

À luz do Evangelho e do compromisso do Movimento Nacional Fé e Política com a construção da sociedade do Bem-Viver, reafirmamos nossa luta pela Vida, bem como direito a justiça de todos os pobres e excluídos da sociedade brasileira.

MARIELLE VIVE!
PADRE AMARO LIVRE!
LULA LIVRE!

Fortaleza, 6 de maio de 2018."


terça-feira, 24 de abril de 2018

Lula e o rizoma da maldade


Vamos direto ao ponto: o judiciário não condenou Lula; resolveu impor ao ex-presidente a pena de degredo. O processo judicial e a situação prisional de Lula comprovam que não vivemos num estado democrático e de direito.
Mais que isso: o insucesso nas tentativas de extirpá-lo do processo e da disputa eleitoral, primeiro tentando desmoralizá-lo - via perseguição midiática -, depois, aprisionando-o; a impossibilidade de eliminá-lo, dado sua liderança política nacional e seu prestígio e reconhecimento internacional, levou alguns de seus algozes a lançarem mão da mais perversa das ações: isolá-lo numa solitária (maquiada de "cela individual"), impondo-lhe, na sequência, inúmeras restrições de visita.
Para um homem forjado e acostumado com intenso e ininterrupto contato com as pessoas, nada mais cruel e perverso que o isolamento, à força, do convívio social e, mais que isso, do mínimo convívio com seus amigos e correligionários.
Querem, à fórceps - como se fosse um animal capturado, domado e isolado -,  transformá-lo num louco. Depois, desmoralizá-lo publicamente; inabilitá-lo politicamente; torná-lo um lixo humano.
O sucesso de Lula junto ao povo mais simples que não o abandona faz com que sua pena seja a mais perversa e cruel. Portanto, não basta prendê-lo; é preciso desumanizá-lo.
Para Lula, resta apenas o convívio com seus algozes. Algo demasiadamente desumano e desproporcional. Isso não é justiça; é pura perversidade.
É preciso que o mundo inteiro saiba: além de preso político, Lula está sendo vítima de cruel e nefasta tortura psicológica e, nessa condição, sofre de atroz e repugnante violação de diretos humanos, própria de estados de exceção dirigidos por autoridades e poderes corrompidos.
Todos os humanistas, independentemente de filiação partidária e ideológica, mas que defendem os princípios elementares da dignidade humana precisam se levantar e se rebelar contra o totalitarismo togado que está a perpetrar as mais graves violações aos direitos de Lula. Até mesmo contra o mais bárbaro criminoso seria inaceitável essas condições.
Alguma dosimetria no acesso à prisão seria razoável. Porém, qualquer cidadão mais atento já percebeu (apesar das mentiras midiáticas a esconderem os fatos): o que se faz deliberadamente é isolar e impossibilitar o acesso até mesmo da assistência religiosa a Lula, numa avassaladora violência e arbítrio ao direito humano e constitucional.  Aliás, há muito, alguns segmentos da justiça mandaram às favas a Constituição. Operam como um estado paralelo: uma corporação de vaidades que se postam acima do bem e do mal.
Pior que um estado sem rumo (dado a flagrante decadência e corrupção dos três poderes, reféns do rentismo e capturados pelo colonialismo entreguista), é um estado subjugado por personagens eivadas de ódio de classe e repletas dos mais primitivos instintos humanos, a operarem na máquina estatal; portanto, exercendo o poder.
Nesse sentido, Lula é a vítima mais evidente desse estado degenerado e degenerador; mas todos nós, mais cedo ou mais tarde, podemos experimentar as garras de uma justiça de exceção e de seus capatazes.
O rizoma da maldade que sustenta e mantém estruturada uma sociedade marcada pela abissal desigualdade, pela justiça seletiva e pelo cinismo de parte das elites (política, econômica, religiosa, acadêmica, social) de mentalidade escravocrata abateu-se, com descomunal força, sobre Lula com o intento de apagar tudo o que ele representa.
Se a violência estrutural que sempre atingiu o andar de baixo ainda não nos sensibilizou, que a situação absurda imposta a Lula, tratado como um degredado, acenda as luzes das consciências adormecidas e acomodadas: o ovo da serpente do fascismo continua a eclodir; a esparramar inúmeros filhotes.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Carta aberta aos bispos brasileiros



Carta aberta aos bispos brasileiros,
por ocasião da 56ª Assembleia Geral da CNBB[1]

Senhores bispos,

Mais uma vez a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se reúne em assembleia para discutir os rumos da Igreja Católica no Brasil. 

A CNBB nasceu da inspiração de Dom Hélder, o “santo rebelde”. E Dom Helder se tornou referência ética e profética para os cristãos porque sempre foi um discípulo que tinha lado: o lado dos pobres, dos excluídos, dos marginalizados, dos sem voz e sem vez. Optou por seguir, radicalmente, Jesus de Nazaré - que nunca deixou de afirmar com gestos, palavras, ações e testemunhos que o Deus da vida é do Deus dos pobres e dos sofredores.

Neste ano do laicato, a CNBB está a insistir no protagonismo dos leigos. Pois muito bem! Estou aqui para incitá-los a um debate e uma reflexão sobre a vida (e a morte) dos brasileiros e o papel da Igreja Católica no momento atual do nosso país.

Num país marcado pela secular e avassaladora desigualdade social[2], pela violência estrutural[3] e pela injustiça[4], a impossibilitar condições de vida com dignidade a milhões de brasileiros[5], o testemunho cristão é um imperativo ético, um dever profético e uma atitude de fé.

Nos últimos anos assistimos em nosso país ao recrudescimento de disputas reais e simbólicas que redundam num quadro de deterioração sem precedentes de conquistas sociais e políticas dos brasileiros. Como se não bastasse tão grandiosa desventura, um clima de ódio e de violências se espraiam no país.

A CNBB já se manifestou algumas vezes sobre alguns desses temas[6]. Não obstante, a coalizão governista toca uma avassaladora política ultraliberal e continua a empreitada de privatização e esfacelamento do estado e das políticas sociais.

Por outro lado, há um vertiginoso crescimento de grupos religiosos ultraconservadores, inclusive dentro do espectro do catolicismo, colonizando os poderes públicos e usando de estratégias violentas para a criminalização dos mais pobres, dos defensores dos direitos humanos, dos movimentos sociais organizados; enfim, de segmentos que lutam por uma sociedade mais justa, igualitária, fraterna e inclusiva.

No quadro político, a deterioração dos três poderes da República sinaliza a ausência de qualquer perspectiva para saídas democráticas e constitucionais à crise institucional que se instalou no país desde as eleições de 2014, agravando-se com o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff, sem comprovação de crime de responsabilidade, e a controversa prisão do ex-presidente Lula, marcada por um processo caracterizado pela politização judicial[7]. Esses fenômenos não podem ser naturalizados e refletem os caminhos tortuosos da vida política nacional.

A imprensa, dominada por oligopólios econômicos, atua em uníssono como um partido político, a impor uma “verdade única” e a insuflar a radicalização dos discursos de ódio. As redes sociais se transformam num patíbulo.

O desrespeito à ordem constitucional levou membros das Forças Armadas, na ativa, a desrespeitarem flagrantemente a lei[8] , manifestando publicamente suas posições políticas e partidárias.

O Supremo Tribunal Federal se transformou num campo de batalhas, exibidas em rede nacional, para o constrangimento geral.

O panorama eleitoral é dos mais complexos: projeções especializadas dão conta que é alta a tendência, nas eleições deste ano, de manutenção dos atuais ocupantes do Congresso Nacional[9], caracterizado pelo conservadorismo[10] e por implementar uma série de reformas que maculam a Constituição Federal de 1988.

Sob outra perspectiva, há uma clara estratégia de empoderamento político-partidário de muitas igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais e partidos ligados a elas para ampliarem suas bancadas na Câmara e no Senado a partir de 2019.[11]

O quadro torna-se ainda mais complexo à medida que está cada vez mais incerta a realização das eleições, previstas para outubro deste ano.

Nesse cenário, a tendência de um acirramento das disputas parece evidente. Além do escandaloso contingente de homicídios no país (cerca de 60 mil por ano, vitimando principalmente pobres, negros e jovens), o número de ativistas executados nos últimos cinco anos já chega a 194, sendo 20 apenas no Rio, segundo levantamento do jornal “O Estado de São Paulo”. A União de Vereadores do Brasil informa que o número de vereadores e de prefeitos mortos entre 2017 e 2018 já chega a 23. Estão de volta os crimes políticos, a nos recordarem, entre outros acontecimentos, os tempos sombrios da Ditadura.

Como é sabido, num país historicamente marcado pela aniquilação das vozes que discordam do establishment, certamente serão os pobres, os movimentos sociais e os grupos vulneráveis que padecerão da violência estatal à medida que se aprofundam as crises política, econômica e institucional.

Por isso, penso que a CNBB, tendo em vista sua história na luta pelas liberdades democráticas e pela justiça social, é convidada a se posicionar claramente sobre a situação política atual do nosso país, a indicar à sociedade brasileira caminhos de superação da crise.
Está em jogo, no atual momento, o futuro da nossa Nação. Muitos podem argumentar que a pior atitude da Igreja, com vista a agradar gregos e troianos, seria a omissão. É fato que uma atitude profética sempre implicará em riscos.

O medo e a paralisia que se abateram sobre muitas lideranças sociais e políticas - e que trarão consequências perversas à vida do nosso povo – poderiam ser enfrentados com corajosa atitude profética dessa Conferência, nesse momento crucial da vida nacional.

Não poderia ser diferente. Termino essa modesta missiva com um trecho da última exortação apostólica do Papa Francisco: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo em que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente. ” (Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, 101).

Robson Sávio Reis Souza é assessor de movimentos sociais e eclesiais; é professor universitário, com doutorado em Ciências Sociais.


[1] De 11 a 20 de abril de 2018, em Aparecida (SP).
[2] Relatório de janeiro de 2018 da ONG Oxfam aponta que cinco bilionários em nosso país têm a mesma riqueza que a metade mais pobre dos brasileiros e os 5% mais ricos detém a mesma fatia de renda dos demais 95% da população.
[3] CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2018: “A violência como sistema no Brasil”, pp 24-29.
[4] CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2018: “A ineficiência do aparato judicial”, pp 38-40.
[5] “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
[6] Nota sobre o momento nacional, de 21 abr. 2015; Nota sobre a PEC 241, de 27 out. 2016; Nota sobre a PEC 287/2016 (Reforma da Previdência), de 23 mar. 2017; Nota pública contrária ao projeto de reforma trabalhista, de 10 jul. 2017 e Nota sobre o atual momento político, de 26 out. 2017.
[7] O jurista italiano Luigi Ferrajoli, um dos expoentes das teorias do garantismo constitucional, escreveu sobre o tema. Confira no link a seguir: [https://rodrigocarelli.org/2018/04/07/uma-agressao-judiciaria-a-democracia-luigi-ferrajoli]. O livro “Comentários a uma Sentença Anunciada: o Processo Lula”, reúne 103 artigos, de 122 juristas, que apontam problemas e equívocos na sentença do Juiz Sergio Moro, que condenou o ex-presidente Lula no caso do tríplex.
[8] O decreto 4.346, de 26 de agosto de 2002, que regula o comportamento de militares das Forças Armadas Brasileiras não permite a manifestação pública, sem uma autorização prévia, sobre política. Trata-se do item 57 do anexo sobre a relação de transgressões: "Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária." O texto foi assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
[9] “Câmara deverá ter um dos maiores índices de reeleição das últimas décadas, projeta Diap”. Veja em: [http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/camara-deve-ter-um-dos-maiores-indices-de-reeleicao-das-ultimas-decadas-projeta-diap].
[10] Segundo reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”, de 06 de outubro de 2014, “o aumento de militares, religiosos, ruralistas e outros segmentos mais identificados com o conservadorismo refletem, segundo o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Augusto Queiroz, [que] o novo Congresso é, seguramente, o mais conservador do período pós-1964".
[11] “Evangélicos querem eleger 150 deputados e 15 senadores”. Fonte: [http://www.valor.com.br/politica/5257923/evangelicos-querem-eleger-150-deputados-e-15-senadores-este-ano]. Veja, também: “Evangélicos querem Crivella presidente e bancada de um terço da Câmara em 2018”. Fonte: [https://jornalggn.com.br/noticia/evangelicos-querem-crivella-presidente-e-bancada-de-um-terco-da-camara-em-2018/].


sábado, 7 de abril de 2018

O golpe e sua irmã siamesa: a justiça da Casa Grande



A votação do pedido do habeas corpus do ex-presidente Lula no Supremo e a violenta ação de  Sérgio Moro ao mandar prendê-lo de imediato, atropelando mais uma vez o devido processo legal, foram mais dois episódios a comprovarem que o judiciário brasileiro impôs-se como o principal agente político no país, além de se constituir como o esteio mais potente a sustentar e manter a ruptura institucional havida em 2016, quando a ex-presidenta Dilma Rousseff foi apeada do cargo sem crime de responsabilidade.

Que fique claro de início: estamos a produzir, aqui, uma crítica ao sistema judiciário; uma avaliação institucional. Reconhecemos que há operadores nas instituições desse sistema que são  republicanos e democratas.

Em relação ao julgamento do habeas corpus de Lula no STF, o cenário, os atores e o contexto denunciavam, a olhos nus, uma tragicomédia deprimente, apesar das máscaras de imparcialidade e das falas herméticas, recheadas de enfadonha retórica bacharelesca. Em rede nacional foram desnudados os estratagemas urdidos nos bastidores, com vistas ao posicionamento de um amontoado de vaidades pessoais e não de uma Corte constitucional que deveria estar preocupada e comprometida com saídas razoáveis e justas para a gravidade do momento político atual. Não se tratou da análise de um instrumento basilar da cidadania, o habeas corpus, mas da inviabilidade eleitoral de um ex-presidente que, numa democracia de fato e não de fachada, deveria ser avaliado pelas urnas, haja vista a fragilidade e as controvérsias de sua condenação pelo juiz curitibano. Nesse sentido, o julgamento do Supremo se constituiu em mais uma peça de um jogo tramado pelas elites nacionais, promotoras da ruptura institucional em 2016, e abençoado, desde o primeiro momento, por  setores do sistema de justiça para impedir que a vontade popular seja considerada nessa quadra da história de um país marcado por golpes e tramoias do andar de cima.

Sei que parte dos pensadores e lideranças, inclusive das esquerdas, temem questionar o modus operandi da justiça brasileira. Numa sociedade que se sustenta por privilégios de classe e não pela igualdade de direitos, é sempre muito arriscado questionar o status quo de togados e do MP. Afinal, em algum momento, todos podem necessitar das salvaguardas pretorianas do sistema judicial e, nesse sentido, é melhor procurar outros argumentos para nomear os atores que articularam e mantém o golpe.

Porém, desde 2015, já apontava a onipotência da toga na judicialização da política, alertando sobre o perigo de um poder autocrático, como o Judiciário, definir os rumos da vida social, política e institucional. Ponderava que não podemos esquecer que o Judiciário é o poder menos transparente, menos democrático, mais aristocrático e mais distante da “vida como ela é”, como dizia Nelson Rodrigues. E advertia: enganam-se aqueles que rejubilam com arroubos autoritários do Judiciário. A quem interessa que um poder tão distante das demandas e anseios do povo possa se sobrepor às demais instituições republicanas?

No início de 2016, escrevi um texto que chamava a atenção para a burocracia estatal hermética dos operadores do direito. Estruturada durante a ditadura militar, foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que se consolidou, paulatinamente, uma casta jurídica no Brasil, formada por parte significativa de juízes, promotores, tabeliães, delegados de polícia, outros operadores do direito e bancas de advogados associados a essas estruturas de poder. Entre os operadores de direito, juízes e membros do Ministério Público e seus serviçais formam quase que um estado paralelo, porque conseguiram, de variadas formas, legalizar uma série de regalias e privilégios, vedadas aos mortais comuns, os demais cidadãos. Recebem salários integrais e vitalícios; aposentadorias nababescas - inclusive acima do teto constitucional (em evidente afronta à Constituição) - e transmissíveis a herdeiros; variados tipos de penduricalhos absorvidos como remuneração (auxílio moradia, terno, mudança, transporte); bolsas para estudos, inclusive de seus rebentos etc. Uma farra, sem controle e pudor, com o dinheiro público.

Lembrava que o distanciamento do judiciário para com a sociedade, a sua propensão ao autoritarismo e o seu elitismo é resultante da formação da sociedade brasileira. A origem do judiciário brasileiro é patrimonialista, idealizado e estruturado pelos de “cima” para e em defesa dos interesses das classes privilegiadas. Essa caracterização é claramente evidenciada nas dificuldades de acesso à justiça pelos mais pobres e nas sentenças condenatórias que punem largamente os pobres e inocenta os ricos. Quem conhece o perfil dos presos brasileiros sabe da seletividade, ineficiência, parcialidade e do grau de injustiça da justiça brasileira.

Em março de 2016, com o aprofundamento da crise política, sugeri: imagine um estado que se autointitula democrático e de direito, onde um promotor ou juiz, imbuído de paranoia higienista, xenofóbica, racista ou messiânica resolve, a seu bel-prazer, transformar sua caneta numa forquilha. Nesse país, as instâncias superiores do judiciário (que poderiam controlar arroubos autoritários) estão covardemente amedrontadas e imobilizadas pelo tribunal supremo midiático e reféns da opinião publicada.

Noutro post, ainda em março de 2016, apontava as instituições articuladoras de um golpe formado pelos mesmos atores que tramaram o golpe de 1964, entre os quais uma casta jurídica que na ditadura se fortaleceu e, paradoxalmente, se consolidou após os poderes dados a esse grupo pela Constituição Federal de 1988 (parte do judiciário, MP, polícias e advogados de banca).

Como se sabe, depois do fajuto processo de impeachment na Câmara dos Deputados, muitos confiavam numa reversão da empreitada golpista pelo Supremo Tribunal Federal. Ponderava à época: é bom lembrar de 1964 e não alimentar muitas ilusões. Quanta inocência pensar em isonomia e independência da justiça brasileira! Há uma casta jurídica consolidada no país que não abre mão de privilégios e tem no sistema de justiça as salvaguardas para se manter no poder. Por isso, o STF facilmente se curvará aos ditames dos varões de Plutarco aninhados na Câmara dos Deputados.

Em abril de 2016, argumentei que a aliança espúria e virulenta entre setores do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário com a imprensa, desde o chamado “Mensalão” e agora na “Operação Lava Jato” - tramando jogadas midiáticas -, constituía num perigo inominável não somente para a ordem democrática, mas também para todos os cidadãos e as demais instituições sociais. Quando a acusação em doses cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de culpa, chantagem e difusão do medo, mesmo não havendo investigações suficientes, provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e promover caça às bruxas flerta-se com um estado totalitário.

Noutro post, no mesmo mês, afirmava não confiar numa reversão do golpe parlamentar por parte do Poder Judiciário. Salvo exceções e espasmos, a justiça em nosso país sempre esteve a serviço da Casa Grande. Quem conhece o sistema de justiça criminal, por exemplo, sabe disso: estado penal para os pobres; estado constitucional para os ricos. No plano político, o fato de o Supremo nunca ter revisado a lei de anistia autoriza, simbolicamente e na prática, a barbárie praticada cotidianamente por agentes do estado. Falar do sistema de justiça significa falar de uma casta jurídica conservadora e elitista infiltrada em diferentes agências, órgãos e poderes do Estado.

À época, voltava a apontar como espúria a relação entre a mídia e o judiciário: instituições que não emergem da vontade popular, não têm controles democráticos e nem sempre têm compromissos com a democracia. E dizia ser nesse cenário que a crescente politização da justiça, determinada e glamourizada em boa medida pela ação da mídia, no Brasil, se constitui num risco à democracia.

Advertia: a onipotência das togas, numa democracia, é indesejável. Os juízes têm que ter limites. Não podemos concordar que uma juristocracia determine os rumos da vida republicana, em detrimento da Constituição. Juízes, promotores, delegados, policiais não são donos da verdade e não estão acima das leis.

Chamo de juristocracia um regime político onde qualquer juiz ou promotor, de qualquer instância, pode determinar o que bem entender, se utilizando de mecanismos judiciais casuísticos para impor à sociedade, à um indivíduo ou instituição a sua percepção pessoal, servindo a uma ideologia, uma classe ou grupo político em prejuízo da ética, da legalidade ou dos anseios populares.

Com a consumação do impeachment fajuto, em maio de 2016, apontei que se o STF desejasse um mínimo de moralidade na República, deveria ter determinado não somente o afastamento de Eduardo Cunha do seu mandato e da presidência da Câmara, mas também anulado todos os seus atos desde o recebimento da denúncia da PGR, em dezembro de 2015. E, nesses atos, estaria inclusa a patética sessão da Câmara de 17 de abril (de 2016) quando foi determinado o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Como dizia Ruy Barbosa "a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta." (IN: "Oração aos Moços", 1921).

Em julho de 2016 voltei ao tema argumentando que a justiça tratou de pavimentar os caminhos para a empreitada golpista. A mais alta corte assistiu impávida um bandido comandar a abertura do processo de impeachment; e acovardou-se quando um juiz de primeira instância violentou a Constituição permitindo a exibição, em rede nacional, de um grampo ilegal, a motivar a condenação tácita e pública da presidenta.

Em “O golpe das corporações” considerava que a grande imprensa escondia propositadamente a justiça de exceção: por exemplo, o TRF4 decidiu, em 22 de setembro de 2016 que a operação "lava jato" não precisaria seguir as regras dos processos comuns. Em outras palavras, às favas o estado de direito: a República de Curitiba está acima da lei. E emendava: a lava-jato é uma operação judicial-policial cuja estrela-guia, segundo denúncias, foi treinada nos Estados Unidos e cujo objetivo único, nos últimos tempos, é destruir um símbolo popular. Essa operação, disfarçada de combate à corrupção, propiciou a assunção de um governo contra o povo: em consórcio com a mídia, a lava-jato pautou, nos últimos meses, a política institucional, principalmente no Congresso, através das manchetes seletivas produzidas todos os finais de semana (pelo núcleo jurídico da lava-jato). Objetivo: desestabilizar o governo que já enfrentava dura crise econômica e apear Dilma do poder a qualquer custo. Enquanto um segmento da justiça parece tão proativo a ponto de suplantar a própria legalidade, observamos o sistema de justiça mais amplo leniente, omisso e cheio de vícios quando se trata de crimes praticados pelas elites tradicionais. É que, no fundo, a justiça opera, também, para que os seus interesses corporativos prevaleçam sobre os interesses públicos e populares. As negociações para o aumento do Judiciário nos momentos mais nevrálgicos da crise política, à época, explicitaram essa faceta do golpe.

Com o título “juristocracia que respaldou o golpe quer dar um novo golpe”, de novembro de 2016, lembrava que juízes, promotores e policiais construíram ao longo do tempo uma "linhagem de cidadãos excepcionais". Vivem num "universo paralelo", onde não se submetem a nenhuma forma de controle social e político; nem prestação de contas à sociedade. Edificaram tal "império" às custas da chantagem política e da conivência, omissão e parceria com os grupos que têm interesses numa justiça enviesada.  Seus prepostos e defensores nos outros poderes, na mídia e os donos do capital (que são os beneficiários diretos da seletividade do sistema de justiça), mantém esse edifício aparentemente impoluto. Fazem-nos crer que o judiciário é isento, justo e composto por homens e mulheres acima do bem e do mal, essencialmente republicanos e democratas. Assim, todos esses segmentos ganham com uma justiça que age para garantir os direitos constitucionais para os ricos e os poderosos e os aplicar as sanções penais para os pobres ou aqueles que eventualmente são eleitos como bodes expiatórios pelo sistema (não somente de justiça, mas também o sistema econômico).

A chamada "carreira jurídica do estado" chega ao poder por meio de concurso, de caráter meramente técnico, sem nenhuma outra exigência ou compromisso democrático ou republicano. Essa classe de privilegiados, sempre com exceções, por óbvio, opera tão marginalmente à lei - que é fruto dos interesses dos segmentos no poder - que um magistrado quando comete crimes geralmente é punido com aposentadoria compulsória. No Brasil, desde sempre, o segmento judiciário é um estado paralelo. O professor e catedrático Fábio Konder Comparato, de ilibada índole, escreveu célebre texto sobre o poder judiciário no Brasil, disponível no site do IHU-on line. Nessa obra fica patente que o judiciário "sempre foi e é submisso às elites, corrupto em sua essência e comprometido secularmente com a injustiça".

Nos momentos de crise, os segmentos da carreira jurídica de estado atuam para consolidar seu poderio. Uma das grandes investidas nesse sentido se deu nas manifestações de 2013. Promotores, aproveitando da crítica ácida ao sistema político à época, conseguiram "vender" a ideia que estavam sendo perseguidos e enterraram a PEC 37, ampliando ainda mais seus poderes. Todos devem lembrar dessa história. Na sequência, o STF com a aplicação do "domínio do fato" institucionalizou um contorno à Constituição. A partir de então, nova cruzada foi implementada para a desmoralização e criminalização da política e o assoberbamento da juristocracia, com ações coordenadas, envolvendo juízes, promotores e policiais.

Em janeiro de 2017, comentando um texto de Eugênio Aragão, então subprocurador geral da República, me chamou à atenção a confirmação, cada vez mais cabal, que o STF não somente criou todas as condições para o golpe como, também, sacramentou a vilania dos bandoleiros da nossa democracia; dos rapineiros de 54 milhões de votos. São muitos os fatos e evidências que indicavam, à época, que os magistrados da mais alta corte da justiça (aqueles que deveriam ser os guardiões da Constituição), foram cúmplices, mais uma vez, de um golpe de estado, como já ocorrera antes, em 1964.

E concluía: temos insistido sobre o papel estratégico que a juristocracia tupiniquim desempenhou no golpe de estado. Entre as muitas reformas que precisam ser feitas para colocar o Brasil no patamar de uma república de fato, uma delas, sem dúvida, é a do sistema de justiça.

Ainda em janeiro de 2017, apontava que as tramoias na eleição das mesas diretoras da Câmara e do Senado, quando se montou nova estratégia parlamentar para dar sustentação ao governo golpista, o Supremo, mais uma vez, mostrava sua colaboração e respaldo na consolidação da ruptura democrática, à medida que deixou de se posicionar frente às ilegalidades.

Em “A justiça e a ruptura democrática”, de março de 2017, falava do papel estratégico desempenhado por promotores e juízes na consolidação da ruptura democrática, ou seja, do golpe parlamentar de 2016. Na ocasião, apontava que esse processo de centralidade do judiciário iniciou com a judicialização da política (no mensalão), derivando na politização da justiça (nas posturas e decisões de Sérgio Moro, Rodrigo Janot e Gilmar Mendes, na lavajato) e, culminava com a partidarização da justiça (com a nomeação de Moraes para o STF). Falava-se, inclusive que a presidente do Supremo estaria sendo preparada para chefiar o executivo, num novo golpe dentro do golpe.

Lembremos que esse processo acontecia simultaneamente à ampla campanha de criminalização da política, notadamente dos partidos e seus quadros. Ou seja, à medida que todos os políticos e partidos eram lançados na fogueira, o poder judiciário ia tendo sua musculatura reforçada. Sintomático, também, o fato de, justamente quando o voto popular e de segmentos da classe média passou a eleger políticos e partidos de esquerda no nível central, os grupos de direita, com apoio e metodologia norteamericana (já testados em Honduras e Paraguai), se articularam para surrupiar do povo o direito de escolher seus governantes e recolocaram as elites jurídicas e judiciárias no centro da vida política nacional.

E denunciava que já naquele momento era vergonhosa a relação incestuosa que propicia uma estabilidade política baseada na chantagem entre o Judiciário (leia-se STF, PGR e lavajato) – que controla processos, delações e inquéritos -, o Parlamento e o Executivo, estes últimos atolados na corrupção.

Entre inúmeros exemplos possíveis desse protagonismo exacerbado da justiça, apontávamos algumas das ações do juiz Sérgio Moro que, mesmo sendo juiz, nunca teve nenhum escrúpulo de explicitar sua afeição e proteção ao PSDB (com o compadrio de outros colegas no Supremo). A cena entre o juiz e Aécio Neves durante uma premiação da mídia causou indignação até mesmo de cidadãos acostumados a relativizar a promiscuidade entre políticos e magistrados. À época circulava informação segundo a qual Moro teria ido para os Estados Unidos aprender com os agentes da CIA e FBI como, através do sistema de justiça, dar respaldo a um golpe gestado no parlamento, com apoio empresarial, midiático e de segmentos conservadores da sociedade. As relações amistosas de cooperação entre a operação lavajato e órgãos norteamericanos, sem o crivo das instâncias definidas para esse tipo de colaboração, colocavam em xeque a soberania nacional e isso não era objeto de espanto.

E concluía: há mais de três anos, em parceria com a PGR, o TRF4 e Mendes, o togado curitibano tornou uma espécie de inquisidor oficial da república. Persegue uns (Lula, o PT, etc.); protege outros. Ao mesmo tempo, Moro recebe prêmios e tratamento especial da TV globo. Assim, foi elevado à categoria de herói nacional pelas elites; e é considerado pelos ultraliberais o exterminador do PT. É convidado para palestras por grupos de direita e think tanks no Brasil e no exterior e surfa garboso na onda conservadora e reacionária que invade violentamente o Brasil e o mundo.

Voltando ao Supremo, para finalizar: o julgamento do habeas corpus do ex-presidente e as decisões dele advindas com a decretação da prisão de Lula pelo todo-poderoso juiz curitibano, mostram que o poder judiciário decidiu, definitivamente, se consolidar como o principal agente político, seja interferindo no processo eleitoral ou atuando na chantagem a todos os demais agentes políticos e poderes, como vem ocorrendo nos últimos anos.