sábado, 1 de setembro de 2018

Democracia tutelada: todo poder emana dos juízes



Desde 2016 - quando havia uma quase unanimidade entre os setores progressistas e da academia que afirmavam a conflagração de um golpe caracterizado pela atuação do Parlamento e da mídia -, venho insistindo que o principal operador da ruptura democrática havida no Brasil é o sistema de justiça, com protagonismo do poder judiciário.


Estava claro desde então, pelo menos na minha modesta compreensão, que por ações, omissões e conivências, setores do sistema de justiça (membros do MP, PF e Judiciário) formaram uma hermética coalizão (dentro da coalizão golpista, mais fragmentada) e conspiravam contra a democracia que se construía no Brasil.

Ressalvo, antes de tudo, que há bons e honestos juízes, promotores e policiais.

Obviamente, os golpes de estado no Brasil foram engendrados por forças político-econômicas. Os dois últimos, de 1964 e 2016, têm os mesmos sujeitos (quase) ocultos: o alto empresariado antinacional; os banqueiros (e, agora, os rentistas), saqueadores contumazes do erário através da dívida pública; o latifúndio (atualmente travestido de agronegócio) e os interesses norte-americanos. A mídia sempre foi a porta-voz desses grupos. E a classe média conservadora - um amontoado de privilegiados que têm ódio de pobre - um potente canal de mobilização social.

Porém, a operacionalização e a manutenção dos dois golpes se deu de forma distinta: em 1964, via Parlamento e Forças Armadas; em 2016, através do Parlamento e do sistema de justiça.

O processo de formação de uma casta togada no Brasil é histórico. Basta ler o texto do professor Fábio Konder Comparado sobre "o poder judiciário no Brasil". 

Porém, as castas do mundo jurídico (que incluem membros dos ministérios públicos, policiais de alta patente e magistrados) – historicamente avessas à democracia de fato - foram vitaminadas, paradoxalmente, com a Constituição Federal de 1988. A construção, bem arquitetada, do conceito de “estado democrático de direito” reforçava a “ideia imaculada e positivista” segundo a qual o sistema de justiça seria o guardião incorruptível da Constituição; portanto, garantidor do estado democrático.

O povo, protagonista no processo de redemocratização, foi solenemente colocado ao escanteio. Abriu-se algum espaço de participação efetiva da população em conselhos, fóruns e conferências, geralmente consultivos. As experiências dos orçamentos participativos foram limitadas. Houve pouquíssimos referendos e plebiscitos. E as grandes participações populares em processos decisórios se limitavam às eleições.

O assoberbamento, disfarçado de valorização, das carreiras jurídicas de Estado passou a ser uma espécie de mantra repetido garbosamente na boca dos democratas tupiniquins de todas as tonalidades. E, novamente, de modo paradoxal, foi nos governos do PT que houve o maior reforço nas estruturas de estado e nas legislações que empoderaram, ainda mais, os segmentos jurídicos e judiciários.


Todos devem lembrar do orgulho de segmentos das esquerdas, nos governos petistas, ao falarem dos investimentos na Polícia Federal; do respeito republicano às indicações (ardilosas) de procuradores gerais do MP; das nomeações de ministros do Supremo respeitando as demandas de setores classistas da magistratura, etc., etc... Tudo em nome do republicanismo e do combate à corrupção (essa cantilena que se agiganta em momentos de crise, a  esconder e proteger os verdadeiros e grandes corruptores, além de servir para nutrir os espíritos dos hipócritas que implementam os golpes de estado com esse discurso oco e estéril).

Paralelamente ao assoberbamento do sistema de justiça, principalmente sua vertente criminal e mais notadamente desses setores no MP e no judiciário, uma campanha midiática criminalizava os poderes executivo e legislativo. Como uma mentira repetida mil vezes pode virar uma verdade, a política foi-se transformando em sinônimo de corrupção e malandragem para a população.

O Supremo, aos poucos, amesquinhava na sua condição de tribunal constitucional e se transformava num tribunal penal espetaculoso e midiático para o gozo de uma plateia que demandava uma justiça justiceira. O julgamento do chamado mensalão já escancarava essa faceta autoritária do STF.

Sem uma reforma política verdadeira, a legislação eleitoral, por seu turno, favorecia o domínio dos partidos por elites políticas que escolhiam a dedo os candidatos “bom de voto” (e de dinheiro, diga-se de passagem). Essa estratégia pragmática favorecia ainda mais a degradação dos parlamentos, formados por quadros que representavam interesses de grupos e corporações, salvo exceções, e distantes dos anseios populares.

O gerencialismo neoliberal – absorvido também por setores da esquerda -  era apresentado como lenitivo aos problemas da administração pública, promovendo forasteiros endinheirados à condição de chefes do executivo.

Tudo isso junto e misturado corroborava à erosão dos poderes controlados diretamente pelo povo e, por tabela, propiciava a arrogância e a intervenção cada vez mais discricionária, violenta, pretoriana e antidemocrática de juízes, promotores e policiais na esfera política.

Resultado do enredo: depois do golpe, temos uma pseudodemocracia totalmente tutelada pelo sistema de justiça, com apoio discreto, mas efetivo, de setores das Forças Armadas. As mensagens tuiteiras do comandante do exército, portanto de um militar da ativa, quando da votação do STF dohabeas corpus de Lula, em 3 de abril passado, corroboram esse argumento.

A votação do TSE nessa sexta, dia 31 de agosto, é somente mais uma evidência da ditadura togada.

Porém, como explicar o fato de Lula e o PT (com recursos, percursos, intercursos e discursos) demandarem e confiarem no sistema de justiça para restaurar a democracia, depois de tudo o que está a acontecer? (Aliás, os conselheiros jurídicos de Dilma, durante o processo do impedimento fajuto, também confiavam na justiça. E deu no que deu...).

Até mesmo a recomendação do Comitê de Direitos Humanos sobre a importância de se garantirem os direitos políticos do ex-presidente Lula foi solenemente ignorada pela justiça (de exceção) brasileira.

Qualquer cidadão que entende um pouquinho sobre direito internacional dos direitos humanos sabe: quando um estado nacional ratifica os pactos de direitos, tais legislações são hierarquicamente superiores às leis infraconstitucionais. Portanto, a lei da ficha limpa (essa pérola antidemocrática do higienismo punitivo-seletivo à brasileira) não se constitui óbice para o acatamento da recomendação do Comitê da ONU.  Mas, há doutos e maiorais juízes brasileiros não pensam assim.

Afinal, para as elites jurídicas tupiniquins, direitos humanos são artigos de perfumaria (vide as atrocidades cometidas pelo sistema prisional brasileiro sob as barbas do judiciário, solenemente denunciadas por organismos internacionais há anos), utilizados eruditamente em julgamentos televisionados quando convém; para a exibição em regabofes sofisticados ou em congressos nacionais e internacionais, onde teoria e prática são dois universos incomunicáveis.

Ou seja, o sistema de justiça decide quem são os candidatos. Depois, autoriza a população a escolher, entre os seus escolhidos, aquele que que pode ser eleito. E, mais, sinaliza, desde já, que o eleito continuará sob sua tutela - com ameaças constantes, via imprensa.

O judiciário só falta dizer quem deve ser o mamulenco eleito.

E lembrando Rui Barbosa, “a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.”

Vamos observar os próximos passos dessa novela à brasileira, digna de um folhetim global, cujo título poderia ser "democracia tutelada: todo o poder emana dos juízes". 

Cabe, porém, um pergunta: e se o candidato dos "homens bons e das leis" naufragar? Teremos, enfim, o rei togado?

domingo, 26 de agosto de 2018

O jogo: riscos e possibilidades



Ao que tudo indica, teremos eleições em outubro deste ano.

Como não somos uma turba de míopes, precisamos lançar luzes nesse processo eleitoral.

Não é possível, depois de tudo o que aconteceu desde 2014, que naturalizemos esse pleito - como se nada houvera anteriormente e como se o processo eleitoral seguisse transcurso normal e democrático.

É preciso esclarecer, de início, que uma eleição não é um jogo de futebol, disputado às vísceras; nem uma guerra, cujas estratégias são a eliminação do oponente a qualquer custo. 

Mas, uma eleição não deixa de ser uma disputa aguerrida por visões de mundo (modelos de sociedade e governo) antagônicas e distintas.

É preciso ficar cristalino: em 2014, uma presidenta foi eleita democraticamente e, menos de dois anos depois, foi deposta num processo eivado de todo o tipo de vício, malandragem e corrupção. Ou seja, Dilma ganhou o jogo e não levou.

Não obstante o estupro democrático havido em 2016, as cúpulas partidárias, inclusive das esquerdas, resolveram continuar a jogar um jogo cujas regras, interesses e juízes são totalmente manipuladores e manipulados à revelia das regras da democracia (até mesmo procedimental) e dos interesses do povo (a origem e o fim do poder).

Mesmo sabendo que o processo eleitoral deste ano pode ser um jogo farsesco, os setores populares e democráticos optaram por jogá-lo, sem alterações substantivas nas regras, nos interesses (nem sempre confessáveis) e nos árbitros de plantão.

Quando o país foi duramente golpeado, tais setores (aliando-se com o povo em busca de uma ruptura que redundasse em algo novo nesse modelo de política) poderiam optar por posições mais radicais, como por exemplo, não participar de eleições tuteladas (pela justiça, pela caserna, pelo rentismo). 

Mas, por interesses legítimos, crença nesse modelo democrático (cada vez mais viciado) ou talvez movidas pela conveniência eleitoral de suas elites políticas, as esquerdas decidiram por participar e continuar nesse tipo de disputa...

Sabemos que os interesses econômicos dos grupos políticos tradicionais associados à mídia, ao grande capital e à justiça não se contentam mais, como ocorria anteriormente, com artimanhas jurídicas e poderes de veto nos processos eleitorais. Desde 2014 e explicitamente a partir de 2016, perderam todos os escrúpulos na disputa política e eleitoral.

Nessas eleições, se perderem o pleito, os golpistas não terão qualquer dúvida: interferirão no resultado, com ou sem o apoio explícito das Forças Armadas e das castas judiciárias e de outras entidades secretas e obscuras que atuam no submundo da política.

Os setores herméticos do sistema de justiça têm dado exemplos explícitos do lado que operam: retiraram, à fórceps, o melhor jogador do campo e resistem em acatar até mesmo recomendações da ONU para que as eleições sejam, minimamente, democráticas.

Não fosse a espetacular pujança das redes e dos movimentos sociais e uma militância fidelizada, Lula estaria no ostracismo (essa, aliás, era uma das apostas dos golpistas ao trancafiá-lo em Curitiba).

É preciso registrar que o povo não é bobo, para o desespero das elites que se acham as donas da verdade, da Constituição e do Brasil.

Os "tiros", ardilosamente planejados pelos golpistas com amplo apoio midiático e da justiça, estão a sair pela culatra: o impedimento de Dilma, sem crime de responsabilidade, deu certo. Mas, o decantado crescimento econômico não veio; as contrarreformas e a entrega do patrimônio público encontram forte resistência popular e não há nenhum candidato desse campo que sequer faz cócegas no líder de intenção de voto.

O povo, desde o primeiro momento, não se alinhou ao bando que tomou de assalto o poder; não aprovou nenhuma das contrarreformas que furtam direitos (conforme atestam pesquisas de opinião); não abandonou Lula (ao contrário, cada vez mais está a seu lado) e não se transformou em zumbi da globo e da mídia empresarial e golpista.

Até agora, a bem da verdade, todo o poderoso aparato golpista mais parece um Titanic a vazar água por todos os lados e prestes a afundar.

O jogo, se vencido pelos setores democrático-populares, pode ser o começo de uma lenta e dolorosa construção da democracia (que não existe, de fato, nesse momento).

Mas, será que não é esperar demais uma insurreição popular caso a turma da Casa Grande resolva dar mais um golpe se o resultado das urnas  não lhe interessar?

É bom que todas as cartas desse jogo estejam sobre a mesa. 

Corre-se o risco (num jogo que cada vez mais é  jogado fora do campo) de destruir todo um patrimônio político e cidadão construído arduamente nesses três últimos anos: uma cidadania que, aparentemente, não aceita mais ser tutelada. Por ninguém.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Eleições, democracia e os direitos humanos


Nesta data, quando o Comitê de Direitos Humanos da ONU se posiciona acerca do direito do ex-presidente Lula participar das eleições, vale a pena uma reflexão sobre alguns pressupostos que congregam os que militam na defesa intransigente dos direitos humanos como parâmetros à vida em sociedade.Dentre esses pressupostos estão a dignidade de todos os seres humanos e a democracia, valores estruturadores de sociedade justas, igualitárias e verdadeiramente livres.

Esses valores-sínteses são a base de um projeto de sociedade que tem seus fundamentos nos direitos humanos.

A democracia pressupõe além de requisitos procedimentais (existência dos três poderes, eleições regulares, liberdade de expressão, etc.) pelo menos três elementos substantivos sem os quais o ideal democrático não se concretiza na prática e só se realiza, quando se realiza, no campo meramente formal.

Em primeiro lugar, a verdadeira democracia se caracteriza pela criação e ampliação de direitos. Reafirmo: criação e ampliação de direitos.

No caso brasileiro, é preciso dizer com todas as letras: naturalizamos cinicamente uma sociedade historicamente estruturada na exclusão social, na violência e na justiça seletivas. Muitos, inclusive parte dos membros da Academia, camuflam essa realidade antidemocrática criando expressões do tipo "democracia de baixa intensidade" para caracterizar uma sociedade que não universaliza os direitos; ou seja, garante direitos para poucos. Nesse contexto, a rigor, nem podemos falar de direitos, mas de privilégios.

O Brasil nunca foi verdadeiramente um país democrático. Nossa realidade social está estruturada na violência multifacetada e seletiva; na exclusão social; na justiça, também seletiva; num patriarcalismo gerador de múltiplas formas de opressão, entre outras mazelas.

As elites (econômicas, políticas, acadêmicas, sociais e até religiosas), salvo exceções, são de mentalidade escravocrata: sempre impediram a efetivação de direitos para todos; sistematicamente se articulam para promover a rapinagem do erário e não se acanham em promover o desequilíbrio nas disputas sociopolíticas à medida que a maioria do povo é constantemente esmagada por essa ordem social injusta, elitista e autoritária.

As relações de mando e obediência, características da hierarquização da sociedade brasileira, estão presentes no cotidiano das famílias, das igrejas, das relações de trabalho, nas escolas e em quase todos os espaços da vida, a definir uma cidadania marcada por privilégios para uns pouco e a exclusão e subcidadania, caracterizada pela não efetivação dos direitos, à maioria da população.

Essas elites e alguns segmentos ultraconservadores da classe média são os herdeiros da cultura colonial, submissos historicamente à burguesia mundial, não têm um projeto nacional e são alheios aos interesses do país. Carregam a tradição elitista, racista, etnocêntrica, patriarcal e violadora dos direitos humanos. São os filhotes da Casa Grande que se arvoram, em momentos de crises agudas, à condição de donos ou tutores desse país; suas leis; seu povo...  

Acontece, que nos últimos dois anos, como se não bastasse esse cinismo que mantém o Brasil como o mais desigual do mundo no rol dos países ditos democráticos, um governo não eleito chegou ao poder graças a uma coalizão cujos interesses são inconfessáveis. Esse governo ignorou o projeto político vitorioso nas eleições de 2014 e resolveu, também, e por tabela, rasgar a Constituição de 1988 e com ela os direitos duramente conquistados a duras penas pelos brasileiros depois da ditadura civil-militar (que, lamentavelmente, é aclamada, ainda, por grupos saudosos desse tempo de trevas).

Ora, se a democracia se caracteriza pela criação e expansão de direitos, fica óbvio que, no contexto político atual, não podemos falar, sequer, que vivemos numa "democracia de baixa intensidade". Ou seja, não usufruímos de uma democracia real.

O segundo pressuposto de uma democracia substantiva, para além da democracia meramente formal, é a existência e o reconhecimento dos conflitos como elementos importantes para a vocalização e disputa das várias demandas dos diferentes grupos que compõem sociedades plurais, diversas e que se pretendem democráticas.

Neste ponto, também podemos observar, na prática, que nessa quadra histórica os conflitos sociais foram totalmente militarizados e/ou judicializados pela coalizão que, nos três poderes da república, articula políticas de controle social seletivo e alargamento do estado policial-penal de viés claramente autoritário.

A criminalização dos movimentos sociais e populares; a violência real e simbólica contra setores que demandam por reconhecimento e direitos; as inúmeras tentativas de homogeneização do pensamento, tendo como principal vetor dessa ação a mídia empresarial, e a ação violenta do Estado contra os pobres, os negros e os segmentos vulneráveis com políticas que vão desde a utilização cada vez mais flagrante das Forças Armadas nos conflitos sociais, passando por inúmeras estratégias de silenciamento das vozes divergentes do establishment, chegando a violações concretas, como o aumento da violência e letalidade policial; as políticas perversas contra indígenas, quilombolas, sem-terra e a ampliação do estado punitivo, numa verdadeira caça às bruxas, comprovam que o conglomerado no poder optou por reprimir violentamente os conflitos sociais.

Ora, um governo que não sabe lidar com os conflitos sociais, usando somente da repressão, da estigmatização e da violência, não é um governo democrático.

Por fim, e talvez o mais importante: uma democracia real tem na soberania popular o seu mais importante e valoroso pilar. É do povo que deriva todo o poder. Como determina o artigo primeiro, parágrafo único da Constituição: “Todo poder emana do povo”. E numa democracia de fato, nenhuma pessoa, instituição ou outro poder pode se sobrepor à vontade e deliberação popular.

Sei que essa lembrança, tão elementar, mas necessária, desagrada segmentos elitistas, aristocráticos, conservadores e fascistas que se julgam melhores e mais qualificados que o conjunto da população. Afinal, para esses segmentos a ralé deve-se contentar com seu histórico lugar social: o andar de baixo, sem se meter nos rumos da Nação de e para uns poucos.

Também nesse ponto, sobram motivos para comprovarmos que não vivemos numa democracia de fato. Como se não bastassem todos os estratagemas para se manter a qualquer custo no poder da coalizão que atualmente governa o país, observamos nos últimos anos um movimento pernicioso à democracia protagonizado por setores do sistema de justiça. Um movimento que começou há algum tempo com a judicialização da política (em certa medida derivado das omissões e tramoias dos outros dois poderes) e foi-se aprofundando à politização da justiça até chegarmos a situações que configuram uma evidente partidarização da justiça.

Processos e manobras judiciais totalmente alheios à tradição republicana e um estranho hiperativismo de juízes e promotores enveredaram o país no caminho do lawfare, ou seja, do uso indevido de recursos jurídicos para a perseguição política seletiva, chegando ao ponto atual no qual o processo político e eleitoral está tutelado pela justiça.

Todos sabem que, historicamente, o processo eleitoral é formatado para a manutenção de elites políticas, econômicas e partidárias para se perpetuarem no poder. O novo, nesse momento, é que essa engenharia lesiva está se tornando ainda mais antidemocrática.   

A soberania popular corre o risco de ser totalmente maculada. E, a depender dos próximos acontecimentos no cenário jurídico, político e eleitoral, teremos eleições farsescas que, nessas condições, não legitimarão o próximo governo.

Nesse estado neoliberal, onde o espaço privado dos interesses dos poderosos é cada vez mais alargado e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos da maioria dos cidadãos é encolhido os direitos humanos são alvo de destruição. E é exatamente isso que o governo atual está a fazer nesse momento. As contrarreformas aprovadas por um Congresso avesso ao povo, todas elas, atendem aos interesses privados de uns poucos e contraria os interesses públicos da grande maioria do povo brasileiro. Ademais, tais reformas fraudulentas ferem de morte as políticas de promoção, proteção, reparação e defesa dos direitos humanos em nosso país.

Um governo sem legitimidade popular, flagrantemente elitista e corrupto e sem compromissos com a democracia de fato não atua na perspectiva da construção de um projeto de sociedade lastreado nos direitos humanos.

E só podemos pensar num projeto de sociedade baseado nos direitos humanos se a dignidade humana, a expansão e garantia de direitos e a democracia de fato forem realidade política.

Aproximam-se as eleições. E para a restauração da democracia de fato o próximo governo deverá se comprometer com a recriação e a ampliação de direitos, o que na prática significa, entre outras ações, revogar todas as medidas restritivas de direitos adotadas pelo governo atual.

Da mesma forma, o novo governo deverá respeitar e conviver com os conflitos sociais, a valorizar a diversidade social, étnica, cultural, política, religiosa e de gênero.

E, por fim, o próximo governo só terá legitimidade se o resultado das urnas refletir a vontade do povo e não de alguns que se julgam os donos da lei, da ordem e da verdade.

Por fim, falar de um projeto de sociedade na perspectiva dos direitos humanos é também analisar criticamente a realidade na qual vivemos. É apontar as lutas emancipatórias e de resistência protagonizadas pela sociedade civil nesses últimos anos. Neste sentido, e terminando essas minhas considerações, quero registrar brevemente que as lutas e a resistência dos setores populares e democráticos nos últimos anos deve ser reconhecida e valorizada.

Não obstante a destruição do estado democrático por forças poderosas, observamos um ressurgimento potente de vários movimentos sociais, principalmente ligados às questões de gênero (feministas e LGBT+), étnicos (movimentos negros) e geracionais (juventudes). Esses movimentos lideram importante resistência à ruptura democrática, denunciam suas feições machista, racista, fascista, homofóbica e velhaca e lutam pela reconquista e pela garantia de direitos.

Ainda há esperança na retomada da democracia de fato com vistas à construção de uma sociedade baseada nos pressupostos dos direitos humanos que são a base de um projeto de sociedade onde caibam todos e todas.

(Conferência realizada na Escola Superior Dom Helder Câmara, no 2º Seminário Nacional "Direitos Humanos como projeto de sociedade: perspectivas e desafios", em 16.08.2018).

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Vamos ao jogo. Mas, eleição tutelada é engodo


Esse final de semana marcou uma etapa importante do processo eleitoral mais estapafúrdio da história brasileira nas últimas três décadas.

Por mais surreal que possa parecer, teremos eleições tuteladas pela justiça, o principal player nessa etapa do golpe.

O candidato com maiores intenções de voto está preso, vítima de um processo eivado de vícios, caracterizado pela corrupção sistemática em todo o seu percurso jurídico. Ou seja, a soberania popular, a pedra-angular da democracia, está solenemente alijada da disputa eleitoral.

Como se sabe, até meados de agosto os partidos e (virtuais) coligações ainda farão ajustes nas suas composições.

Mas, parece que está claro que o campo das disputas será formado à direita pelo representante do establishment, Geraldo Alckmin, e por Bolsonaro - que capitaneará votação da extrema-direita, de setores capturados pelos discursos de ódio e de um conjunto de analfabetos políticos (que são eleitores, diga-se de passagem).

Meireles será uma espécie de tiro de festim para tentar disfarçar o verdadeiro candidato da coalizão golpista, liderada, de fato, pelo partido que planejou, articulou e sustentou o golpe: o PSDB, sob Aécio Neves (que não aceitou o resultado das eleições de 2014, como é notório).

Marina, cada vez mais ao centro, dificilmente decolará: ela se perde e se afasta da confiança do eleitor pela dubiedade de opiniões e propostas e também pelo seu discurso ressentido. 

No campo mais à esquerda, temos Ciro Gomes: um candidato que não deve ser desdenhado pelos setores progressistas. Dificilmente ele passará ao segundo turno, mas, por outro lado, certamente terá um papel decisivo no segundo turno e é melhor que esteja no campo liberal-progressista.

Obviamente, Lula está fora da disputa porque, como dito anteriormente, teremos eleições tuteladas pelo poder judiciário.

Mas, como as esquerdas resolveram participar desse engodo eleitoral que poderá resultar numa democracia meramente procedimental, parece que o maior partido desse campo, o PT, aposta todas as fichas na capacidade de transferência de votos de Lula para Haddad (ou outro nome abençoado pelo líder petista).

Pesquisas dão conta que Haddad associado a Lula teria em torno de 13% dos votos, quantitativo próximo a Bolsonaro que, certamente, desidratará de agora para frente, dado que o establishment e a mídia empresarial trabalharão tresloucadamente pró Alckmin, a fim de alçá-lo no segundo turno.

Acontece que a dupla Haddad e Manuela compõe uma chapa fantástica somente para eleitores da classe média progressista (meio encantados com ambos).

Para o eleitorado em geral, é um grande risco apostar em dois jovens candidatos, ainda pouco conhecidos e contar com a transferência de votos de Lula – que não estará nos palanques, nem nos programas, debates, redes sociais, etc. Continuará cada vez mais isolado em Curitiba.

Haddad é um intelectual de qualidade; foi um bom prefeito de São Paulo, mas teve menos votos nas eleições de 2016 do que no primeiro turno das eleições de 2012. Traz, sob o ponto de vista eleitoral, um passivo complicado.

Manuela é competente e simpática. Mas, como convencerá o eleitor mediano brasileiro que é, tendencialmente, conservador?

Na melhor das hipóteses, mantida a chapa atual (dado que há possibilidades de alterações ainda) Haddad e Manuela estarão no segundo turno, muito provavelmente com Alckmin.

A pergunta, mesmo prematura, é: Haddad e Manuela conseguirão enfrentar uma coalização certeira de toda a direita, o establishment, a mídia, a extrema-direita e boa parte do centro?

Será que o povo - já bastante escaldado da pilantragem que se tornou essa disputa - peitará os desmandos da justiça, a exigir a participação de Lula no pleito?

É bom pensarmos com um pouco mais de frieza e não desprezarmos a capacidade de articulação da coalização que sustenta a camarilha golpista e que fará de tudo para se manter no poder.

Ademais, à esquerda, precisamos observar se a disputa eleitoral suplantará um projeto de reconstrução da democracia, a viabilizar, por exemplo, uma ampla frente das esquerdas no segundo turno. Porque convenhamos, para além das aparências e dos discursos, boa parte das elites político-partidárias, inclusive nesse campo, está muito mais preocupada com a própria sobrevivência, leia-se com a reeleição e o poder, que com objetivos mais nobres.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

O golpe, as eleições e o neoliberalismo

Fonte: Jota Camelo


As disputas políticas contemporâneas, não somente no Brasil, estão resumidas na seguinte questão: a democracia pode conviver com o neoliberalismo?

Há dois projetos de sociedade em disputa. De um lado, articulam-se os grupos, movimentos, partidos e as lutas políticas e emancipatórias em torno da construção de sociedades democráticas, inclusivas, igualitárias; doutro, associam os representantes do poder econômico, em sua fase rentista e improdutiva, concentrador de riqueza e renda - que garante a vida nababesca de 1% da população mundial.

Em primeiro lugar precisamos definir o que é democracia. Obviamente, uma visão liberal-conservadora e estreita define a democracia como um conjunto de regras procedimentais e formas de organização política: eleições livres, imprensa livre, partidos políticos, autonomia dos três poderes da república e acesso aos direitos civis de liberdade e igualdade. E, claro, propriedade privada.

Acontece que os pilares de uma democracia de fato, para além de democracias meramente formais, são um outro conjunto de valores sociopolíticos:

(1) a democracia cria, consolida e garante direitos;

(2) ademais, a democracia considera os conflitos, portanto, as disputas como algo legítimo. E, mais que isso, os conflitos, gerados por múltiplos interesses de grupos sociais, são necessários para o aperfeiçoamento da sociedade.

Mas, a pedra de toque da democracia de fato consiste
(3) na afirmação da soberania popular; ou seja, todo poder vem do povo e não do governante. O povo, através de eleições, escolhe o governante que recebe um mandato para exercer a soberania - que é exclusiva do povo.

Posto isto, façamos um parêntesis: fundamentalmente é preciso deixar claro e cristalino que quando o judiciário (ou qualquer outro poder ou grupo de pressão) tenta tutelar a soberania popular, de fato ocorre um estupro à democracia.

Quando um juiz de primeira instância grampeia uma presidenta e divulga o áudio em rede nacional, mancomunado com um oligopólio de mídia, ao arrepio da Constituição; quando o mesmo magistrado – que se exibe ao lado de políticos corruptos e da pior estirpe -  algum tempo depois, estando de férias, passa por cima de uma ordem de um desembargador no exercício legítimo do cargo, desautorizando-o, e tem a conivência dos tribunais superiores, fica evidente que algo de podre e muito perverso está por detrás do sistema de justiça na sanha autoritária de tutela da soberania popular.

Retomemos.

Historicamente, o Brasil nunca foi verdadeiramente democrático. A violência multifacetada de um país marcado pela exclusão social, pela justiça seletiva, por uma elite de mentalidade escravocrata e pelo patriarcalismo gerador de múltiplas formas de opressão sempre impediram a efetivação de direitos para todos, por um lado e, por outro, desequilibram as disputas sociopolíticas à medida que a maioria do povo é sistematicamente esmagada por essa ordem social autoritária.

As relações de mando e obediência, características da hierarquização da sociedade brasileira, estão presentes no cotidiano das famílias, das igrejas, das relações de trabalho, nas escolas e em quase todos os espaços da vida, a definir uma cidadania marcada por privilégios de uns pouco e uma subcidadania caracterizada pela não efetivação dos direitos à maioria da população.

Nesse contexto, em nosso país, a criação e efetivação de direitos é uma batalha quixotesca. A Constituição Federal de 1988 e os governos seguintes, principalmente a partir de 2003, com Lula, deram alguns passos importantes para a mudança dessa sina. Mas, quando estávamos no caminho civilizatório, a sair de uma democracia meramente formal e de baixíssima intensidade para uma democracia de fato veio, mais uma vez, de forma violenta e avassaladora, o golpe.

Os históricos segmentos refratários e violentos da sociedade (as elites econômicas articuladas pela turma do “yellow duck” e do agronegócio; os setores retrógrados da classe média, representados pela bancada BBB (Bala, Bíblia, Boi) no Congresso; a mídia empresarial antidemocrática e segmentos privilegiados do sistema de justiça sob a batuta dos Estados Unidos) se uniram para golpear a trajetória de construção gradual rumo a uma sociedade verdadeiramente democrática.

O importante é perceber que por trás desse conjunto de atores sociais e políticos conservadores, autoritários e refratários à democracia real estão os interesses do poder econômico.

Para aniquilar a democracia de fato, esses segmentos antidemocráticos são os mentores de um modelo de governança que retira do povo a soberania e a transfere para o mercado.

Assim, esse golpe neoliberal se baseia na ideia segundo a qual o poder público, portanto o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos.

O político, nesses termos, deixa de ser um representante eleito a mediar os vários e legítimos interesses e conflitos sociais, políticos e econômicos e passa a ser um mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos da maioria dos cidadãos.

No estado neoliberal, o espaço privado dos interesses dos poderosos é alargado e, ao mesmo tempo, o espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido. É exatamente isso que o governo golpista está a fazer nesse momento. As contrarreformas aprovadas, todas elas, atendem aos interesses privados de uns poucos e contraria os interesses públicos da grande maioria do povo brasileiro. Ademais, tais reformas fraudulentas ferem de morte a soberania popular – dado que os eleitos em 2014 não apresentaram tais propostas em seus planos de governo e o povo não foi consultado sobre elas pelo governo usurpador.

Ora, uma conclusão é evidente: nos termos do neoliberalismo é impossível uma democracia de fato. Só serve uma democracia de mentirinha, como essa que vivemos atualmente.

E é isso que está em jogo nas próximas eleições. De um lado, os candidatos que representam os interesses do mercado; doutro, o campo popular e democrático, comprometido com a democracia de fato, ou seja, com um país onde caibam todos os brasileiros.

Um último parêntesis: a classe média, cujo pêndulo (apoio ou rejeição) em boa medida define as eleições em nosso país, precisa decidir sobre o lado que vai se posicionar. Ou assume a democracia de fato, abrindo mão de privilégios, ou continuará serviçal dos interesses de uns poucos (batendo panela como verdadeiros idiotas e trabalhando desgraçadamente para, de vez em quando, fazer uma selfie com o Pateta, no decadente império do Norte).


quinta-feira, 19 de julho de 2018

Eleições: fim ou aprofundamento do precipício




Estamos a pouco mais de dois meses das eleições. Aproxima-se o pleito e com ele a esperança de sairmos do precipício; ou, a depender das condições de sua realização, o aprofundamento da tragédia que abate o país.

Desde o golpe, uma camarilha de aventureiros, “com o Supremo, com tudo”, resolveu mandar às favas a Constituição e a democracia. Esses sabujos do rentismo, das elites nacionais e dos interesses norte-americanos no país deram as costas ao povo, principalmente aos segmentos mais vulneráveis (aqueles 70% que ainda estão aquém aos direitos de cidadania).

Com o beneplácito de poderosos segmentos do sistema de justiça, atuando nos tribunais, no Ministério Público e em núcleos policiais, principalmente da PF, articularam toda a sorte de tramoias para manter um cadáver insepulto com 3% de aprovação na presidência e inviabilizar a todo e qualquer custo a possibilidade da vocalização do desejo da maioria dos brasileiros por mudanças no comando do país, com a candidatura e eventual eleição do ex-presidente Lula – um negociador capaz de criar alternativas ao abismo que a horda de impostores impôs aos brasileiros.

Com o processo eleitoral tutelado por capa-pretas que não têm mandato popular e se postam acima da Constituição e com sinais tuiteiros ameaçadores vindos, de quando em vez, da caserna a demostrarem a interferência no jogo político, os brasileiros demonstram desdém às eleições.

Como se não bastasse a campanha de criminalização da política pela mídia venal, encabeçada pela globo e os inúmeros casos de indiferença com a coisa pública - que ocorrem do menor município ao comando central do país -, as pesquisas indicam índices de abstenção, votos nulos e brancos próximos a 50% para o pleito de outubro.

Ou seja, a eventual eleição de um presidente, num país marcadamente presidencialista, nessas condições já tornaria o eleito, a priori, um governante deslegitimado, incapaz de cimentar uma saída ao abismo que encontramos. Incapaz, também, de enfrentar as mazelas deixadas pelo atual desgoverno.

Os próximos dias serão cruciais. O provável expurgo de Lula pela justiça, a baixíssima credibilidade de um pleito sem sua participação, a ausência de um candidato capaz de costurar uma concertação nacional e a interferência inconstitucional de segmentos do mercado, da justiça e da mídia nas eleições poderá lançar o país num precipício ainda mais perturbador, com consequências ainda mais desastrosas.

O Brasil se tornou motivo de piada internacional. Os cidadãos de muitos países acostumados com democracias que respeitam os clamores populares olham para o Brasil com desdém. Não conseguem entender como há tanta patifaria e artimanhas nas mais altas esferas dos poderes da república.

Espera-se algum bom senso principalmente por parte da justiça nesses dias. Dos políticos e dos partidos, alguma resposta à altura das necessidades do país. E que as consequências das próximas decisões responsabilizem, no presente e no futuro, seus autores.

domingo, 24 de junho de 2018

Uma república duplamente tutelada



Em recente artigo, o filósofo Vladimir Safatle alertou que o país caminha para uma espécie de ditadura camuflada, ou seja, a tutela total e irrestrita das Forças Armadas: o jogo consiste a terminar o período de pactos e de democracia aparente da Nova República por meio da transferência do poder político real para as Forças Armadas.

Segundo Safatle, mais importante do que as eleições presidenciais, o verdadeiro deslocamento do poder já terá ocorrido e ele não passa pelos clássicos atores políticos. Hoje, inexiste agenda importante de governo que não passe pelas Forças Armadas: paralisação de caminhoneiros, decomposição do governo carioca e degeneração do governo federal. Em todos esses casos, as Forças Armadas são convocadas e cada vez mais se tornam protagonistas.

Como se não bastasse, nos últimos dias o comandante do Exército resolveu sabatinar os candidatos à presidência. E mais: outro militar é protagonista político na condição de chefe do Gabinete de Segurança Institucional e um general assumiu o Ministério da Defesa. Isso sem contar a ameaça tuiteira vinda da caserna quando o Supremo julgou, há dois meses, um habeas corpus de Lula. Às favas as aparências...

Tenho insistido, por outro lado, desde o golpe de 2016, que setores do sistema de justiça também resolveram tutelar os demais poderes. Chamo de juristocracia um regime político onde qualquer juiz ou promotor de qualquer instância (com ou sem participação das polícias), pode determinar o que bem entender, se utilizando de mecanismos judiciais casuísticos para impor à sociedade, à um indivíduo ou instituição a sua percepção pessoal, servindo a uma ideologia, uma classe ou grupo político em prejuízo da ética, da legalidade ou dos anseios populares. Num post publicado aqui faço uma síntese de como o sistema de justiça está a atuar como protagonista político, ao arrepio da Constituição.

Mas, o protagonismo do Poder Judiciário pode ser observado com mais clarividência nas ações/omissões do juiz Sérgio Moro, do TRF4 e do STF, muitas vezes ardilosamente articuladas, em momentos estratégicos, em toda a trama golpista. O partidarismo e a seletividade na atuação de magistrados e dessas instâncias, em certas ocasiões, chegam a se constituir como escárnio nacional.

Porém, se notarmos com mais atenção, numa perspectiva histórica, as ações arbitrárias que unem bacharéis, outros operadores do sistema de justiça e os militares remontam da proclamação da república: um golpe que teve como principais atores bacharéis, militares, latifundiários e maçons. Desde então, esses segmentos, em diversos momentos da vida republicana, de forma mais ou menos coesa, patrocinaram todo o tipo de tutela à democracia no país.

Não por acaso, durante a ditadura militar, assistimos a convivência amistosa entre os generais, as grandes bancas de advogados, juízes, procuradores e policiais. Obviamente, esses segmentos sempre estiveram a serviço de interesses das elites econômicas, sociais e políticas.

Em vários momentos da vida nacional, essa associação - que envolve os setores jurídico, policial e militar - protagonizou rupturas democráticas.

Os pactos feitos “por cima”, como a famigerada lei da anistia, sempre foram abençoados por esses atores. E os grandes beneficiários dos golpes (no momento, os empresários do yellow duck, os banqueiros, rentistas e latifundiários) são os fiadores dessa união.

Infelizmente, boa parte da classe média, inclusive os setores progressistas, dormiram em “berço esplêndido” depois da Constituição Federal de 1988. Primeiro, porque não houve nenhuma reforma substantiva no sistema de justiça e no modelo militar e policial-militar herdados da ditatura. Ademais, sob a égide do chamado “estado democrático de direito” consolidou-se um pensamento hegemônico segundo o qual a democracia de direito se transbordaria na democracia de fato... e todos poderiam sentir “o sol da liberdade em raios fulgidos [que] brilhou no céu da pátria nesse instante”.

Desgraçadamente, a abissal desigualdade social, o recrudescimento do estado policial-penal e a brutal violência seletiva, transformada em política estatal, continuaram a conviver com uma nação cuja cidadania era de e para poucos.

Não obstante a melhoria dos indicadores sociais desde 1988, principalmente nos governos petistas, o abismo que separa ricos e classe média dos pobres - somado à violência extremada contra estes últimos - denunciava a ouvidos moucos que a democracia no Brasil era uma farsa.

Porém, todos, inclusive os acadêmicos, sempre donos da verdade, afirmavam com retumbante convicção que a democracia brasileira estava consolidada. Dormíamos felizes com lemas do tipo “Brasil: um país de todos”.

Até que veio o golpe e a farsa democrática tupiniquim foi vergonhosamente desmontada.

Mesmo no período do golpe (e posteriormente), assistimos árduos defensores do sistema de justiça (da Casa Grande) em nosso país. Devotados juristas e membros das elites sociais, políticas, partidárias sempre a defender que os tribunais superiores e o STF se submetem à Constituição.

A última encenação nesse sentido se deu no caso da absolvição da senadora Gleise Hoffmann e seu marido. Lembrei-me do ex-ministro José Eduardo Cardozo, em tempos pretéritos, sempre dizendo, com toda a certeza de um bacharel respeitado pelos consortes, como se fosse um ato de fé, que o Supremo reverteria o golpe.

O julgamento do habeas corpus do ex-presidente e as decisões dele advindas com a decretação da imediata prisão de Lula pelo todo-poderoso juiz curitibano, confirmaram que o poder judiciário decidiu, há muito, se consolidar como um dos principais agentes políticos, seja interferindo no processo eleitoral ou atuando na chantagem a todos os demais agentes políticos e poderes, como vem ocorrendo nos últimos anos. Provavelmente, a cartilha de Carmen Lúcia, prefaciada por Luís Roberto Barroso está em vigor no STF: “somos do bem; podemos tudo”. E assim nascem as ditaduras.

Agora, a decisão do ministro Fachin, numa noite de sexta-feira de Copa do Mundo, é mais uma das dezenas de ações e omissões que conformam esse protagonismo inconstitucional e antidemocrático do Judiciário, notadamente do STF.  Como asseverou o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, “o timing do despacho que extingue o pedido cautelar sugere que o jogo foi combinado”. Mais uma vez combinado, diga-se de passagem.

Nossa tese e conclusão: o Brasil está duplamente tutelado. De um lado, a juristocracia que consolida um estado penal-policial-judicial seletivo; doutro, as Forças Armadas cada vez mais salientes.

A rigor, são clubes de amigos desde o início da república que, como castas, querem continuar amigos íntimos para dominarem eternamente essa republiqueta das bananas.