Fonte: QuadrinhosNet/Affonso |
Em 2017, o Brasil conviveu
pacificamente com uma democracia de fachada. Com o golpe, no ano anterior, os
três poderes da República se fundiram num só conglomerado a serviço do capital
financeiro especulativo e outros grupos econômicos, liderados pelo empresariado
do “pato amarelo”. A interferência norte-americana, promovendo “golpes brandos”
em países da América Latina, evidenciou que a velha geopolítica colonialista
ainda sobrevive.[1]
Esse conglomerado age de
maneira unitária, embora com dissidências internas e contradições, e está amalgamado
nos poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Não considera a Constituição,
a soberania popular ou qualquer coisa que sustente o caráter republicano do
nosso país. {*}
Os três poderes da
república, transformados num único corpo, agem sob o comando direto e exclusivo
de banqueiros, especuladores e empresas nacionais e transnacionais. O controle
do poder não está com o povo e nem com os que se auto-intitulam políticos.
O cinismo e a falta de escrúpulos desse conglomerado golpista convivem, lamentavelmente, com a passividade e a idiotia coletiva de uma sociedade anestesiada por uma mídia empresarial, venal e antidemocrática não comprometida com a nossa história, nosso povo e muito menos com a verdade. A revolta já teria acontecido se a população não estivesse hipnotizada pelos meios de comunicação empresariais.
A mídia, ópio do povo, é a
principal fabricante de fake-news na
atualidade, porque se transformou no instrumento do capitalismo rentista para a
manipulação grosseira da realidade, principalmente da política, e a produção
enviesada da informação.
Os tanques de outrora
foram substituídos por outras armas, aparentemente menos letais. No Brasil, as
togas substituíram os militares. Os mecanismos de controle, opressão e exclusão
também são mais sofisticados. Tudo a dar uma falsa aparência de normalidade e
legalidade democráticas.
Democracia, capitalismo e a grande farsa
Como explicar esse estado
de coisas, como se vivêssemos em plena democracia?
Desde sua origem, na Grécia antiga, a
democracia é um sistema de hierarquização do poder arquitetado por atores
políticos que têm interesses de classe por esse modelo de governança. (O
conceito de classe é aqui utilizado para designar os diferentes grupos sociais,
com distintos recursos de acesso ao poder, que compõem uma sociedade).
Como sabemos, a democracia
grega, nos seus primórdios, há cerca de 2.500 anos, excluía dos processos
decisórios as mulheres, os jovens, os estrangeiros e os escravos. Ou seja, na
democracia, cuja palavra significa “governo do povo”, somente os homens livres
deliberavam sobre os rumos da polis
(cidade). O demos (povo) se
restringia, portanto, aos homens livres.
A história, contada desde
então, esconde o fato de que a democracia grega funcionou porque a classe
antagônica estava excluída do processo deliberativo: os escravos não poderiam,
jamais, participar das decisões dos homens livres. Em outras palavras, a
democracia se edificou numa ordem social escravagista. Se os escravos fossem
incluídos à participação no processo decisório, certamente toda a ordem
socioeconômica à época seria implodida, a ocasionar uma divisão estrutural
daquela sociedade.
Resumindo: já no seu
nascedouro, a democracia grega apontava que interesses em contradição são
inconciliáveis e, para o funcionamento desse sistema, alguns sempre dominarão
outros.
A partir do século XVI, a experiência democrática grega é retomada com a criação dos chamados estados-nação. E, gradualmente, com a chegada dos burgueses ao centro do poder, foi-se consolidando no ocidente outra ideia segundo a qual democracia e capitalismo são sinônimos.
Assim, nas democracias
contemporâneas os homens (brancos), detentores do capital, os chamados
burgueses, assumiram o controle do poder. E, como ocorreu na Grécia antiga,
para que o sistema democrático funcionasse nesse novo contexto histórico, era
preciso que a classe antagônica, os operários, a maioria da população, fosse
excluída dos processos decisórios.
Essa exclusão se
concretiza utilizando-se de várias estratégias. Nas democracias
representativas, por exemplo, os sistemas judiciário e eleitoral são montados
para passar a impressão que há isonomia na competição eleitoral e no acesso ao
poder. Na verdade, há mecanismos (legislação eleitoral, por exemplo) que obstaculizam
a participação efetiva da maioria da população na disputa isonômica do poder e
limita o acesso popular nos processos decisórios.
Com a “doutrinação
midiática”, os eleitores pensam que estão elegendo representantes. Na verdade,
elegem, majoritariamente, os donos do capital ou os seus prepostos e as elites
partidárias que colonizam a maioria dos partidos, inclusas as agremiações
autodenominadas de “esquerdas”.
A ideia de eleições
livres, diretas e regulares esconde, sorrateiramente, uma série de regras
procedimentais que impedem a representação efetiva da maioria da população. É
só verificarmos o perfil socioeconômico dos representantes eleitos nas câmaras
de vereadores, assembleias e no congresso nacional. Constataremos, cabalmente,
que a maioria esmagadora da população não está representada (de fato) nas casas
legislativas, apesar das regras procedimentais da democracia (eleições livres,
diretas e regulares; mídia livre, etc.) funcionarem perfeitamente. O mesmo se
dá em relação ao poder executivo: os donos do dinheiro e as elites partidárias
sempre se beneficiam das regras eleitorais, das condições financeiros e da ação
direta do sistema de justiça para dominarem esse poder.
Por óbvio, se a democracia fosse realmente levada às últimas consequências, os trabalhadores, que são a maioria em todos os países, teriam o mesmo poder dos burgueses. E, sendo maioria, os operários definiriam os rumos da sociedade.
Temos que admitir, não
obstante, que os regimes democráticos realizaram importantes avanços sociais no
século XX, principalmente após a segunda guerra mundial. Através de pactos
entre elites ou na adequação das demandas das esquerdas socialistas aos modelos
democráticos capitalistas, tais regimes melhoraram (e muito) a vida dos
trabalhadores em diversos países. Em alguns países, os trabalhadores chegaram
ao centro do poder, por pequenos períodos. Noutros, as migalhas concedidas aos
trabalhadores foram abundantes, passando a impressão que o povo, ou seja, a
maioria dos trabalhadores, decidia os rumos de suas vidas.
É preciso considerar, também,
que a decadência de outros modelos de governança consolidou a crença na
eficácia inquestionável das democracias capitalistas. Experiências de governos
socialistas perderam a batalha (da disputa acerca do melhor modelo de
governança) na mídia empresarial, principal front
de manutenção dos governos democrático-capitalistas na atualidade.
Democracia de fachada e estado de exceção
No Brasil, nunca tivemos
uma democracia real. Historicamente, as elites nacionais sempre se apropriaram
do erário e do estado para se locupletarem e ampliarem seus negócios e
domínios, oferecendo sobejos ao povo. Em alguns raríssimos momentos, houve
pífia expansão do estado social, não alterando substantivamente uma ordem
social estruturalmente excludente, injusta, perversa e violenta.
Não experimentamos, ao
longo do século XX, o “século dos direitos” (Bobbio), mudanças estruturais na
nossa sociedade. A Constituição Federal de 1988, tardiamente, propiciou alguns
parcos avanços sociais à maioria dos brasileiros. Governos mais sensíveis aos
trabalhadores, como nas gestões do PT, colocaram o estado um pouco mais à
serviço dos setores historicamente excluídos e marginalizados. Isso produziu
grande diferença numa sociedade ainda de base escravocrata.
Mas, veio o golpe. E os
neocoronéis, filhos das elites, históricos saqueadores do erário e das riquezas
nacionais, tomaram novamente de assalto o poder. E, como uma horda de bárbaros
sem temor e pudor, respaldados pela velha justiça da Casa Grande e vitaminados
pela mídia empresarial e pela classe média dos privilegiados lançaram o país de
volta ao passado.
Não à toa, os golpistas recorreram ao lema da velha república (criada num golpe por latifundiários, maçons, militares e positivistas), “ordem e progresso”, para caracterizar um governo que, entre inúmeros retrocessos históricos, sociais e políticos não tem um pingo de vergonha em anistiar os latifundiários, os banqueiros e os grandes empresários – eternos larápios do patrimônio e das riquezas nacionais - e penalizar os trabalhadores.
O golpe confirmou a tese:
a democracia capitalista brasileira só é boa enquanto uns poucos se locupletam
dos frutos do trabalho e da vida da maioria. E quando essas castas de
privilegiados e perversos resolvem se unir para defenderem seus interesses a qualquer
custo, nem mesmo as aparências (democráticas) são mantidas.
Aqui, nunca tivemos um
processo revolucionário de baixo para cima. As poucas tentativas de sublevação
do andar de baixo foram violentamente sufocadas pelas elites no poder. Também
nunca convivemos com uma guerra - que desperta solidariedade entre as classes.
Talvez, por esses motivos, dentre outras causas, os trabalhadores, maioria da
população, sempre se contentaram com as migalhas. Some-se a isso o sistema
educacional e a cultura religiosa que domesticam as mentes e corações dos
trabalhadores a aceitarem passivamente suas (péssimas) condições sociais.
Os poucos avanços sociais que
foram auferidos em mais de cinco séculos só foram possíveis em governos que
vigoraram através de pactos entre elites.
O quadro mundial também
deve ser considerado. A subalternidade da política à economia, característica
do neoliberalismo, ajuda a explicar a crise de legitimidade dos órgãos
eletivos, a centralidade do deus-mercado e a fragilidade de governos populares.
Neste contexto, podemos falar de um estado de exceção - uma exigência do neoliberalismo, que reconfigura as estruturas do poder e do Estado a partir de uma lógica de exceção, corroendo até mesmo os pressupostos da democracia liberal.
Trata-se de um estado de
exceção porque convivemos com uma democracia sem povo, a serviço do mercado[2], e
sustentada por medidas autoritárias dos três poderes amalgamados contra o povo
e a Nação. Como diz Joseph Stiglitz, “Os ricos não precisam do Estado de
Direito; eles podem, e de fato fazem, moldar os processos econômicos e
políticos em seu proveito”.[3]
Acontece que, se a exceção
vira regra teremos diante de nós o imenso desafio de pensar como fazer luta de
classes sem as parcas garantias do direito burguês.
Perspectivas para 2018
Muitos analistas políticos
têm considerado que, com o advento do neoliberalismo a partir da década de 1980,
iniciou-se um processo de implosão dos estados de bem-estar social. No Brasil, tardiamente,
esse fenômeno ocorreu décadas depois: houve tentativas durante os governos de
FHC, mas sua concretização se deu com o golpe de 2016.
É importante
considerarmos, mesmo que rapidamente, algumas das variáveis que deflagraram uma
série de conflitos sociais, políticos e culturais. Partiremos dos eventos
ocorridos em 2013, as chamadas “jornadas de junho”. Naquele momento, não
somente no Brasil, mas em várias partes do mundo, uma série de atos de protesto
questionavam, entre outros, a democracia representativa. Vozes de diversos
segmentos sociais, com interesses diferentes, demandavam mudanças substantivas
no modelo esgarçado de governança democrática, no qual os representantes
eleitos não representam os interesses da maioria dos eleitores.
Havia evidências claras de
múltiplas falências que, a rigor, apontavam para algo muito mais profundo: o
esgotamento do modelo do capitalismo rentista. Esse esgotamento pode ser
percebido em várias dimensões: colapso do ecossistema; da política; da economia
baseada na especulação (e sua última grande crise, a partir de 2008, nos Estado
Unidos); das instituições tradicionais (incapazes de dar respostas às demandas
de sociedades cada vez mais complexas).
No mesmo período, sinais
do refluxo da crise econômica global batiam às portas do nosso país. Como
sabemos, o sistema político foi incapaz de incorporar as reivindicações dos
diversos segmentos que saíram às ruas naquele ano.
Nesse contexto, é
importante analisar o fato de parte da classe média brasileira, historicamente
acostumada com privilégios e não com direitos, bandeou para um discurso e
prática que beiram o fascismo. Ao invés
de usar seu poderio político para lutar por justiça social e equidade, ou seja,
contra a concentração de renda nas mãos de poucos, segmentos da classe média
direcionam seu discurso odioso para os pobres e para aqueles políticos e
partidos que representam tais extratos sociais. Considerando-se “superiores”,
não miram o andar de cima; ao contrário, miram o andar de baixo, extravasando o
ódio contra os pobres.
A violência, que sempre
determinou a “ordem” das relações sociais no Brasil, tornou-se o recurso
utilizado em doses cavalares por setores da classe média que tentam
reposicionar-se num cenário de disputas reais e simbólicas.
Não nos enganemos: a paz dos túmulos parece que não existe. Dito de outra maneira, não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios historicamente acumulados e coniventemente aceitos pela sociedade. Não é possível alcançar a paz sem perder nada.
Porém, aparentemente, não
há mudanças significativas à vista, pelo menos no curto prazo. Nas condições
históricas atuais, os processos revolucionários são utópicos. O nível de
controle social, principalmente via mídia e poder judiciário, nunca foi tão
sofisticado. O individualismo, exacerbado pelo capitalismo, destrói a
solidariedade e produz seres humanos que se preocupam só com seus umbigos.
Nesse contexto, defender
essa democracia à brasileira e nos iludirmos na crença segundo a qual eleições
regulares corrigirão nossas mazelas históricas é falácia.
Desgraçadamente, não há,
até o momento, um programa de governo que trata de debater e pautar as reformas
estruturais que conformam esse modelo vergonhoso de sociedade. E, sem reformas
estruturais, teremos que nos conformar na defesa de uma democracia farsante,
que nunca produzirá verdadeira equidade nessa banda dos trópicos. Continuaremos
a viver num país com colossal desigualdade e violência.
As eleições deste ano são
uma incógnita, mas, dificilmente apresentarão um cenário positivo. Os golpistas
não largarão o “osso”; por isso, os três poderes amalgamados num só corpo construirão
estratégias para retirar do povo o destino do país. Na melhor das hipóteses, o
candidato que está mais próximo das demandas populares, o ex-presidente Lula,
será inabilitado do processo eleitoral.
Acontece, que o crescimento da extrema direita no país exige uma resposta organizada e qualificada dos segmentos da sociedade civil que carregam uma perspectiva humanista. Portanto, não se trata de um problema somente “da esquerda”. Quem pensa assim é arrogante.
Não tenhamos, também,
ilusões messiânicas, defendo a tese segundo a qual a luta política se limita
nas eleições. Além de eleições, é importante articular um projeto nacional, que
inclua pelo menos um referendo revogatório das reformas dos golpistas, além de
profundas reformas estruturais: política, da mídia, tributária, da justiça,
entre outras. Isso significa, na prática, um congresso totalmente novo e
conectado com interesses populares e nacionais.
Se isso ocorrer, desse
estrume - que é o governo golpista - brotarão as raízes para a construção de
uma democracia real – experiência inédita nessa terra de santa cruz.
[1] Adolfo Pérez
Esquivel, Nobel da Paz de 1980, escreveu artigo no qual condenava o processo de
impeachment da presidente Dilma
Rousseff, definindo-o como "golpe de Estado brando", já
experimentando em países como Honduras e Paraguai. Segundo ele,
"domesticar os governos e recolonizar a América Latina é o objetivo"
dos golpes em curso na região. "O que a direita não consegue alcançar nas
urnas buscará alcançar mediante a destituição ilegal de presidentes, de
privatizações de empresas públicas e a entrega de recursos naturais", diz.
Ao falar de Michel Temer, Esquivel relata que, segundo o Wikileaks, "o
atual depositário da Presidência do Brasil foi colaborador da inteligência
norte-americana entregando documentos sensíveis a sua embaixada". Leia
o artigo em : http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/555205-democracias-golpe-a-golpe
[2] A riqueza
acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial equivale à riqueza dos 99%
restantes. Essa é a conclusão de um estudo da organização não-governamental
britânica Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse, relativos a outubro
de 2015. O Relatório Mundial de Desigualdade revelou que, em 2016, o Brasil
ficava em segundo lugar em um ranking de desigualdade se considerada a
fatia da renda nacional capturada pelos 10% mais ricos da população. Por aqui,
55% da renda fica com essa parcela da população, número igual ao da Índia (55%)
e equivalente ao da África Subsaariana (54%), atrás apenas do Oriente Médio
(61%).
[3] STIGLITZ, Joseph E. O preço da desigualdade. Lisboa:
Bertrand Editora, 2014, p. 208.
{*} Baseado em: ABDALLA, M. A democracia no capitalismo. IN: Souza, R.; P, Adriana; Alves, C. (orgs). Democracia em crise: o Brasil contemporâneo. Editora PUC Minas, 2017, pp 19-44.
{*} Baseado em: ABDALLA, M. A democracia no capitalismo. IN: Souza, R.; P, Adriana; Alves, C. (orgs). Democracia em crise: o Brasil contemporâneo. Editora PUC Minas, 2017, pp 19-44.
Prezado Robson, gosto muito dos seus comentários. Quero dizer que como grande leitor de História (já li centenas de livros específicos e muitos antiquissimos), concordo plenamente com seu raciocínio sobre a elite predatória que cá temos.
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