Em grupos de conversa, na sala de aula,
em reuniões entre amigos sempre sou questionado sobre o abismo no qual se
encontram as instituições, os atores políticos e a própria democracia
brasileira depois do golpe.
Há um espanto geral, principalmente em
alguns setores da classe média, um pouco mais politizada, acerca do nível de
despudor, mesquinharia, ladroagem e desfaçatez que tomou conta da política
nacional.
Como explicar uma cena política tão
decadente, que parece nunca se aproximar do fundo do poço? Consolida-se a
convicção segundo a qual o escândalo ou o saco de maldades de hoje sempre será
abafado ou superado pelo escândalo ou pela perversão de amanhã. E, nesse jogo,
parece que tudo é natural e normal.
Como entender uma cidadania anestesiada,
incapaz de reagir frente à criminalidade organizada que tomou conta do estado
brasileiro? Aqui cabe o conceito de crime organizado, porque se trata de um
conluio de grupos políticos imersos na corrupção que operam dentro do Estado,
atuando de forma cooperada, envolvendo o judiciário e o aparelho político com
vistas à construção de salvaguardas e redes de influência, objetivando a
consolidação do poder econômico e político de tais grupos.
Poderíamos recorrer a uma das variáveis
do mito de Pandora para tentar explicar o que acontece no Brasil. Diz o mito
que uma mulher de extrema beleza foi enviada por Zeus para se casar com
Epimeteu. O presente de casamento era uma caixa que continha todos os males,
que ficou conhecida como “caixa de Pandora”. Uma vez que Pandora não conseguiu
conter a sua curiosidade e abriu a caixa, ela libertou todos os males e
desgraças sobre a humanidade.
A
trama perversa do golpe abriu a caixa de Pandora dessa república das
bananeiras: escancarou não somente a podridão do sistema político, como também
expôs o nível de manipulação e de controle que a mídia
exerce sobre as instituições e a sociedade brasileira, o envolvimento de uma
juristocracia elitista e conservadora com o submundo da política, o fascismo de
setores da classe média, a fragmentação e as disputas dos setores democráticos
e de vanguarda; enfim, a farsa de uma democracia altamente excludente, erigida
e sustentada na desigualdade social e nos privilégios de elites, com
instituições republicanas dominadas por grupos de interesse ensimesmados e não
comprometidos com princípios basilares de um estado democrático e de direito.
Quando
a ética - que referencia as relações sociais e políticas - é quebrada abre-se o
caminho para o vale-tudo. Todos os males vêm à tona e não há mais limites no
trato com os negócios públicos. As leis e a Constituição passam a ser reles
acessórios sistematicamente manipulados pelos grupos no poder. Como disse Jucá:
“É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional. (...) Com o Supremo,
com tudo.”
Os políticos já não se referenciam no
povo, origem e fonte do poder. O botão do “dane-se” é ligado, como podemos
observar na entrevista de Temer dizendo que não tem medo da impopularidade ou
na fala do juiz Moro, segundo o qual o concurso à magistratura permite ao juiz
a aplicação a lei a partir das suas convicções. É o que acontece no Brasil
atual.
Por
um lado, presenciamos, quase anestesiados, um festival de desmandos e corrupção
generalizados envolvendo os principais atores dos poderes públicos. Um complô
midiático blinda e referenda o grupo no poder, naturalizando os comportamentos
e práticas eivados de toda a sorte de perversidades. Como se tudo fosse
natural, necessário e compreensível...
Têm-se a sensação de um conformismo
frente à banalidade do mal, esta ocorrência tenebrosamente cotidiana da
crueldade institucionalizada, mais ou menos nos mesmos moldes refletidos por
Hannah Arendt.
Noutra ponta, observamos uma população
inerte, sem esperança e confiança no comportamento ético dos ocupantes dos
cargos públicos nos três poderes.
Ora, não é possível falar em democracia
nessas condições. Afinal, o comportamento viciado e corrupto dos ocupantes dos
cargos públicos além de não inspirar confiança nas instituições públicas,
deslegitimando-as, acaba por estimular a violação de quaisquer valores éticos
também pelos cidadãos. Afinal, as pessoas passam a repudiar as instituições
pelo fato dos ocupantes dos cargos públicos não buscarem o bem comum. Os
cidadãos percebem que os atores políticos trabalham contra o povo; atuam
despudoradamente combatendo os interesses daqueles que são os verdadeiros
titulares do poder. Ora, fica evidente que nessas condições não se pode falar
em democracia.
Na política do vale-tudo não há
limites; não há regras; não há pudor. É como se os golpistas, pelos seus atos,
conchavos e omissões, dissessem à população: estamos no poder e podemos tudo.
Uma espécie de inferno de Dante: “Deixai a esperança, ó vós que entrais”...
E é também recorrendo a Dante que
encerro este texto e respondo aos meus interlocutores atônitos em relação a
tudo o que acontece em nosso país. Em “A divina Comédia”, o escritor italiano
Dante Alighieri propôs uma inversão da lógica medieval que imperava até então:
onde tudo era atribuído ao poder divino, sobretudo o destino dos homens, Dante
sugeria que era o homem quem decidia seu futuro com suas ações. Assim,
a Divina Comédia é antes de tudo um livro sobre escolhas.
Assim, podemos concluir que mudança não
virá com um salvador de pátria; nem brotará desse sistema
político-jurídico-midiático sustentado na corrupção. A mudança está nas mãos
dos cidadãos. Nossas escolhas nos manterão no inferno ou nos darão uma chance
de subir ao paraíso. Ou seja, somente quando a sociedade brasileira acordar
desse pesadelo anestesiante do inferno do vale-tudo que se abateu sobre nós
é que teremos condições de superar o golpe.
Não é uma empreitada fácil. Mas, parece
ser o único caminho. Portanto, a resposta ao dilema vem com uma pergunta
crucial: o que cada um individualmente e nos grupos sociais, eclesiais,
sindicais pode fazer para fecharmos a caixa de Pandora e recuperarmos nossa
democracia?
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