terça-feira, 7 de março de 2017

A justiça e a ruptura democrática


Charge: Duke - Internet 

Precisamos problematizar o papel estratégico desempenhado por promotores e juízes na consolidação da ruptura democrática, ou seja, do golpe parlamentar de 2016 em diante.

Inúmeros episódios têm demonstrado, sistematicamente, a postura cambiante do nosso sistema judicial. Como se não bastasse a falta de isonomia da justiça criminal brasileira, tolerante com a Casa Grande e feroz com a Senzala, temos assistido nos últimos anos um processo de protagonismo do judiciário em detrimento dos outros dois poderes.

Esse processo de centralidade do judiciário iniciou com a judicialização da política (no mensalão), derivando na politização da justiça (nas posturas e decisões de Sérgio Moro, Rodrigo Janot e Gilmar Mendes, na lavajato) e, agora, culmina com a partidarização da justiça (com a nomeação de Moraes para o STF). Fala-se, inclusive que a presidente do Supremo estaria sendo preparada para chefiar o executivo, num novo golpe dentro do golpe.

Lembremos que esse processo acontece simultaneamente à ampla campanha de criminalização da política, notadamente dos partidos e seus quadros. Ou seja, à medida que todos os políticos e partidos são lançados na fogueira, o poder judiciário vai tendo sua musculatura reforçada.

Sintomático, também, o fato de, justamente quando o voto popular e de segmentos da classe média passou a eleger políticos e partidos de esquerda no nível central, os grupos de direita, com apoio e metodologia norteamericana (já testados em Honduras e Paraguai), se articularam para surrupiar do povo o direito de escolher seus governantes e recolocaram as elites jurídicas no centro da vida política nacional.

É verdade que os poderes executivo e legislativo, nos três níveis de governo, passam por um processo de deslegitimação: a promiscuidade no financiamento das campanhas eleitorais mostra a podridão do sistema político. Mas, em democracias consolidadas os desvios de rota poderiam ser corrigidos com uma ampla reforma do sistema político, legitimando os poderes que têm no voto popular sua razão de ser e não destruindo tais poderes para entregar a Nação a elites de um poder historicamente comprometido com a Casa Grande.

No momento atual, é kafkiana a relação incestuosa que propicia uma estabilidade política baseada na chantagem entre o Judiciário (leia-se STF, PGR e lavajato) – que controla processos, delações e inquéritos -, o Parlamento e o Executivo, atolados na corrupção.

Entre inúmeros exemplos possíveis desse protagonismo exacerbado da justiça, utilizemos algumas das ações do juiz Sérgio Moro que, mesmo sendo juiz, nunca teve nenhum escrúpulo de explicitar sua afeição e proteção ao PSDB (como Mendes e Moraes, diga-se de passagem). A cena entre o juiz e Aécio Neves, megadelatado, durante uma premiação da mídia golpista causou indignação até mesmo de cidadãos acostumados a relativizar a promiscuidade entre políticos e magistrados.

Conta-se que Moro foi para os Estados Unidos aprender com os agentes da CIA e FBI como, através do sistema de justiça, dar respaldo a um golpe gestado no parlamento, com apoio empresarial, midiático e de segmentos conservadores da sociedade. As relações amistosas de cooperação entre a operação lavajato e órgãos norteamericanos, sem o crivo das instâncias definidas para esse tipo de colaboração, colocam em xeque a soberania nacional e isso não é objetivo de espanto.

Há mais de três anos, em parceria com a PGR, o TRF4 e Mendes, o togado curitibano tornou uma espécie de inquisidor oficial república. Persegue uns (Lula, o PT, etc.); protege outros (Aécio, a mulher de Cunha, etc.).

Ao mesmo tempo, Moro recebe prêmios e tratamento especial da TV globo. Assim, foi assunto à categoria de herói nacional, o exterminador do PT.

É convidado para palestras por grupos de direita no Brasil e no exterior e surfa garboso na onda conservadora que invade violentamente o mundo...

Moro, sendo juiz, já afrontou por mais de uma vez a constituição, como fez no episódio do vazamento do áudio da conversa entre Lula e uma presidenta, sem autorização do STF (apesar de se tratar de diálogo privado de quem tinha foro privilegiado). E, pasmem, os guardiões da constituição, no Supremo, nada fizeram. Aliás, Teori Zavascki, que explicitou descontentamento acerca do arbítrio do togado da república de Curitiba, morreu num misterioso acidente aéreo - que a plebe já esqueceu, porque na república das bananeiras o escândalo de hoje é divulgado seletivamente para apagar o escândalo de ontem.

Usando discricionariamente as prisões preventivas e as delações (como instrumentos de tortura psicológica, como demonstrou em artigo recente o subprocurador geral da república, Eugênio Aragão), Moro ouve dos réus aquilo que deseja ouvir e descarta o que lhe desagrada ou corrompe seus intentos higienistas...

Agora, o inquisidor dos trópicos está com uma encomendada complicada: precisa inviabilizar a candidatura da jararaca para manter Temer, tucanos e demais partícipes da camarilha golpista no comando da proa. Mesmo sabendo que o barco vaza água por todos os lados.

Moro hoje, como Joaquim Barbosa ontem, cumprem um papel crucial para a manutenção do empreendimento da Casa Grande: manter o sistema de justiça no centro das decisões políticas da república. E usar de seu cargo ou do poder da chantagem (porque toda a república está em suas mãos) para manter de joelhos todos os atores políticos, condenando seletivamente uns e redimindo a seu critério outros. 

É sintomático o fato de, recentemente, questionado por um advogado de defesa de um dos réus da lavajato, Moro ter dito: “faça concurso para juiz”. É como se ele dissesse para todos nós: somos juízes; podemos tudo.

Tomemos um outro exemplo para falar de como o poder judiciário se posta acima do bem e do mal: em 2012, quando foi preso Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, acusado de operar um caixa 2, a então ministra, hoje presidente do Supremo, Carmen Lúcia vociferava: “Caixa 2 é crime; é uma agressão à sociedade brasileira"; etc, etc. 

Agora, que foi escancarado o Caixa 2 do seu amigo, o Mineirinho, parece que Carmen Lúcia e seus pares no STF não se revoltam mais. Não vi nem ouvi nenhum ministro do Supremo aparecer indignado na TV ou nos jornais revoltados com as revelações da turma da Odebrecht...

Até o príncipe, FHC, admitiu que o também "menino do rio" recebeu recursos provenientes de Caixa 2. Afinal, ao afirmar que “há uma diferença entre quem recebeu recursos de caixa dois” e quem “obteve recursos para enriquecimento pessoal, crime puro e simples de corrupção" fica óbvio que o cacique tucano não somente admite a corrupção (recebimento de caixa 2), como também expõe mais uma vez seu cinismo envernizado e acadêmico ao diferenciar a "corrupção do bem" do PSDB, da "corrupção do MAL" (com letras garrafais) do PT.

Mas, nessas alturas do campeonato, temos perguntas e não respostas: será que o Supremo (ou pelo menos a presidenta do Olimpo) admitirá que caixa 2 sendo crime é uma agressão à democracia, independente de quem praticou a falcatrua? 

Ou devemos continuar dormindo em berço esplêndido, crentes que a justiça é isonômica na república das bananeiras?

Se a justiça agisse com isonomia a lava jato poderia ser um divisor de águas no combate à corrupção e teríamos uma república onde os três poderes poderiam coexistir em prol dos cidadãos e não para a autoproteção de seus quadros.

Mas, ao que tudo indica, e para a alegria dos verdadeiros interessados no golpe, a justiça está cada vez mais no centro do poder.


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