sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Os (des)caminhos da justiça


Foto: Carol Reis
Quando lançou o livro ‘Quem comanda a Segurança Pública no Brasil? Atores, crenças e coalizões que dominam a segurança pública brasileira’, em 2015, Robson Sávio Reis Souza pretendeu estimular o debate sobre o tema, destacando as origens do cenário atual e as necessidades de mudança. A dimensão do empreendimento ilustra o grau de proximidade desse pesquisador com a área, como demonstra sua especialização em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais e sua participação efetiva como membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Além do amplo conhecimento desse universo, Robson Sávio possui um histórico direto com o contexto APAC (objeto do atual portfólio social do ATOEFEITO): foi o primeiro presidente da unidade de Santa Luzia, no início dos anos 2000.
Com base nessa experiência — que contempla ainda o doutorado em Ciências Sociais pela PUC-MG (onde também coordena o Núcleo de Estudos Sociopolíticos | Nesp) e o mestrado em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro –, o pesquisador concedeu ao ATOEFEITO uma entrevista reveladora sobre o complexo quadro da segurança pública no Brasil, especialmente com relação ao sistema prisional.

ATOEFEITO (AE) — Muito se fala que o Brasil está afundado na criminalidade. Por que isso?

ROBSON SÁVIO (RS) — Sim. Vamos tentar entender um pouco a razão disso. Primeiro, temos deficiências em todo o aparato da justiça criminal. Por exemplo, o nosso modelo policial é focado na repressão depois que o crime acontece e não na prevenção. Isso é uma máquina de enxugar gelo. Quer dizer, em vez de o Estado brasileiro investir muito em uma polícia preparada, que investigue rapidamente os crimes para que a justiça condene de maneira ágil, nós temos uma polícia repressiva e pouco eficiente. É só relembrar que, no Brasil, somente 8% dos homicidas estão presos. O que significa que aqui o custo de matar é muito baixo.
Então, não mudando esse sistema, temos policiais que fazem investigações ruins, que acabam não aceitas pelo Ministério Público, que manda investigar de novo. Só nisso já se passam dois ou três anos. Aí, depois de quatro anos, o Ministério Público oferece uma denúncia e nem sabe mais onde o sujeito procurado está, caso ele não tenha sido preso em flagrante. Se ele tem um bom advogado, isso vai ser postergado e, por falta de provas ou de testemunhas, essa pessoa não vai ser condenada.

AE — Temos um sistema de justiça que foi feito para não funcionar?

RS — Sim! E isso produz o quê? Mais criminosos. Por exemplo, crime contra o patrimônio. Por que as pessoas roubam e assaltam? Porque elas sabem que nós temos baixa vigilância, baixa prevenção, e a possibilidade de serem capturadas por esse sistema, dependendo de quem são ou de onde praticam esse crime, é muito pequena.
Uma coisa é o ladrão de galinha lá na minha cidade do interior, que vai ser preso. Mas imagine um grande contrabandista, que tem toda uma rede poderosa de articulações, ou ainda aquele cara que desmonta peças de carro e que dispõe de uma extensa lista de compradores e receptores… Ele sabe que provavelmente não vai acontecer nada com ele. Isso é um estímulo ao crime. Tendo um excelente advogado, com tantas brechas legais, não vai acontecer nada.
Então, por que a justiça não funciona?… Bom, quem produz as leis? São os nossos legisladores, certo? E eles não investem num sistema mais efetivo certamente porque não querem que a justiça funcione direito. Do contrário, muitos daqueles que operam essa máquina serão presos… E os juízes? Será que conhecem a realidade das pessoas? Estão preocupados realmente em desbaratar as grandes quadrilhas criminosas?…

AE — Ou seja, a sensação de insegurança vai além da paranoia e da propaganda midiática…

RS — Certamente. Os crimes estão aumentando porque nós temos um sistema que não funciona. Agora, por que a sociedade não pressiona para mudar as leis e o sistema de justiça? Porque as classes médias, que tem poder de vocalização, criticam o tempo todo esse sistema, mas se aproveitam dele.
Um exemplo: todo mundo fala que nossas polícias são violentas, mas enquanto eles estão agindo discricionariamente nas favelas não tem problema algum. Agora, mexe com um usuário de drogas lá na Savassi [região nobre de Belo Horizonte — MG]…

AE — Nesse cenário que estaria, então, construído para manter tudo como está, qual o papel do sistema prisional?

RS — Ele faz parte desse jogo de cena. Ele é a ponta disso aí. Os policiais reclamam que não têm dinheiro, que não têm recursos, que não têm infraestrutura… Os juízes dizem que também não têm, que estão atolados de processos… Os promotores, os defensores públicos também não têm… Ninguém tem nada! Todo mundo desarticulado. Há uma bagunça generalizada e a culpa é sempre do outro: a polícia fala que é do Ministério Público, que fala que é da polícia, que devolve para a justiça, que fala que é do sistema prisional.
Tudo é um mesmo Estado e essa lógica de desorganização mantém esse jogo perverso. E a sociedade assiste a isso de maneira cínica e com o sentimento de vingança de “vamos prender mais!”, vamos encarcerar mais, mas o outro, o outro, o outro. Agora, quando é comigo, aí entra em cena o melhor advogado para resolver a questão. Assim, o sistema prisional coroa todo esse jogo de encenação.

AE — Quando você fala “o outro”, esse perfil é determinado pelo racismo e pela desigualdade?

RS — É só você ver o perfil da maioria da população prisional: é o preto, é o pobre, é o jovem na faixa etária entre 18 e 30 anos. Essa pessoa que praticou crime contra o patrimônio, ou que é pequeno traficante e usuário de drogas, é que vai ficar preso cinco, sete, oito anos. E vai sair da prisão muito eficiente no crime por conviver lá com organizações criminosas, que hoje dominam o sistema carcerário brasileiro — o PCC, que surgiu dentro do sistema prisional paulista como resposta dos presos à lógica de repressão do sistema, está hoje presente em todos os estados.
Então, o sujeito entra como pequeno traficante e provavelmente vai sair de lá muito bem articulado, ampliando ainda mais esse sistema de distribuição e de tráfico de drogas pelo Brasil afora. Infelizmente, muitos são mortos de forma prematura em confrontos com a polícia ou na disputa por território… Temos aí um verdadeiro genocídio da juventude negra brasileira: das 60 mil mortes por ano no Brasil (que é mais do que qualquer guerra em curso), cerca de 35 mil estão na faixa etária entre 14 e 29 anos.
Existem locais hoje, no país, em que você não tem nem taxa de reposição, de fertilidade, porque não existem homens disponíveis… Esse é o drama brasileiro. E as pessoas querem mais prisão, mais prisão, mais prisão. E o problema é que o sistema prisional está dentro dessa lógica. Não adianta falar “olha, a minha prisão é excelente, tô fora”. Não! Ela tá dentro. Ela tá reproduzindo essa máquina.
Especialista em segurança pública, Robson Sávio foi presidente da APAC Santa Luzia (foto: Brasil Online)

AE — O brasileiro tem consciência da gravidade de toda essa questão?

RS — Não. Nós temos um sistema prisional que as pessoas não fazem ideia, por exemplo, do custo econômico e social dele. Em termos financeiros, só Minas Gerais gasta por ano algo como R$ 1,5 bilhão com uma estrutura que ostenta um índice de reincidência imenso.
Dentro do sistema prisional você tem a formação de novos infratores pelo aliciamento das organizações criminosas, você tem a corrupção de agentes públicos, tem um jogo de tráfico de influências e por aí vai. Tem um enorme custo social, portanto.
Só que as pessoas não se ocupam em visualizar a repercussão disso tudo na vida da comunidade. Até porque nós temos outro sistema que alimenta o tempo todo o sentimento de ódio e a ideia de vingança como solução, que é a mídia com seus programas policialescos. Não é à toa que vivemos hoje no Brasil um show de rancor no seio da sociedade.
Vários países chegaram à conclusão de que esse sistema de privação de liberdade é o mais caro, mais injusto e o mais difícil de ser administrado, e resolveram mudar a lógica de sua justiça criminal. Na Inglaterra, por exemplo — é claro que é muito difícil a gente comparar os países –, apenas 15% dos crimes são transicionados com a privação da liberdade.
Mas o Brasil vem apostando num rumo diferente. Com a redemocratização, houve mudanças na área da Educação, avanços na área da Saúde, na área da Assistência Social, na área das políticas urbanas, mas na área da segurança pública e da justiça criminal tudo se mantém num mesmo formato. Continuam as mesmas práticas, com as mesmas formas de punição, com os mesmos atores: polícias, ministério público, Poder Judiciário… Agora, será que essa estrutura se mantém por um acaso?…

AE — Mas existem também iniciativas que tentam soluções alternativas, como é o caso das APACs. Você pensa que o Estado e a sociedade têm dado o devido suporte nesse sentido?

RS — Infelizmente, temos uma sociedade vingativa e punitiva, que acha que todas as soluções passam pela prisão, e que sempre deve ser preso “o outro”. Ela não quer pensar a realidade do sistema prisional, cada vez maior e perverso. E ainda em relação à APAC, especificamente, critica muito por achar que ela trata os presos de maneira diferente, quando, na verdade, só busca cumprir a determinação legal de ressocializar o condenado, por meio de uma atuação humanizada.
Por sua vez, penso que o Estado não deixa de ver no sistema APAC uma boa estratégia de ampliação do sistema prisional, e aí reside o problema… Ele amplia o sistema sem modificar sua lógica de aprisionamento. Oferece o mínimo necessário, que é uma transferência de recursos pífia em relação ao que é gasto com o sistema tradicional, e não assume nenhuma responsabilidade em abrir a discussão do sistema em geral.

AE — Por isso as APACs não podem ser apontadas como a solução da questão prisional?

De um ponto de vista efetivo seu método tem enorme valor, mas, de partida, percebemos que o perfil do interno da APAC é específico: ela não dá conta de todos os tipos de preso. Também penso que o método deveria passar por mais avaliações e acatar aprimoramentos… Mas, além disso, destaco a relação com essa política prisional atual de simplesmente abrir vagas.
Se a estratégia for essa, infelizmente, tentando resolver, a APAC acaba alimentando um círculo perverso de aumentar mais vagas de aprisionamento. Vagas que são altamente seletivas, porque não são destinadas necessariamente a quem oferece maior risco social. Em relação a crimes como o homicídio, por exemplo, somente 8% daqueles que matam estão presos. Em compensação, usuários de drogas, negros e pobres estão entupindo nosso sistema prisional.
Sendo assim, não adianta só abrir novas APACs. Tem que estancar esse modelo de sistema prisional. Porque uma coisa é as APACs funcionarem bem para seus presos — trabalho que é necessário –, mas é suficiente?
Na linha atual, a abertura de duas mil vagas nas APACs vem acompanhada de outras duas mil no comum. Só aí já teríamos mais quatro mil presos. E como vai se estancar isso? Só abrindo novas vagas? Construindo novas APACs? Nós teremos um milhão de presos em APACs e o Brasil vai ficar melhor?…

AE — Voltando a falar do sistema prisional como um todo, enquanto braço da legalidade, ele tem contribuído para a promoção da justiça no Brasil?

RS — Ele funciona para excluir, para controlar, para segregar, para limitar as pessoas, e não para praticar a justiça. É obra de uma sociedade altamente elitista e concentradora de poder e de recursos nas mãos de uma minoria, que determina como são as leis e como devem ser aplicadas.
Vamos pegar a questão de corrupção. O sujeito que é corrupto não oferece um risco para a sociedade do tipo de matar alguém; oferece o risco de continuar roubando. Como se resolve isso? Prendendo? Não. Até porque ele fica preso três anos e continua roubando, as empresas continuam funcionando. Seria possível resolver isso fazendo com que ele devolvesse o dobro do que roubou. Essa seria a grande pena. Mas, então, por que não se muda? Porque é muito mais interessante um corrupto que eventualmente é preso (um em mil) ficar cinco anos na prisão e continuar roubando do que você realmente estancar a corrupção com uma pena como essa.
Olha como a sociedade é hipócrita. Todo mundo vota que prendendo o sujeito é que se vai resolver o problema, mas aí ele fica lá três anos, tratado de maneira excepcional, porque nessa hora a corrupção funciona — quem tem bons advogados vai ter boas prisões, tratamento diferenciado — e é assim que o sistema vai acontecendo. Ele existe não para funcionar, mas para segregar.
Veja o caso do traficantezinho de 19 anos. Ele vai pegar cinco anos e sair da prisão muito pior do que entrou. Porque não se trata de descobrir quem produz a droga, quem a distribui. Esse é o grande traficante, o traficante que é empresário, que é político, ou mesmo da justiça. Com esse ninguém mexe. Mexe-se com o que está lá na ponta.

AE — Se o sistema opera dessa maneira, submetido a uma lógica de poder que visa não à efetividade, mas à segregação, porque a sociedade não faz essa crítica?

RS — Acho que há aí a intencionalidade de uma sociedade ainda muito pouco democrática. Uma sociedade que ainda tem no sistema de justiça criminal uma ferramenta de controle das classes perigosas, dos mais pobres, e que utiliza desse sistema para manter o que chama de lei e ordem.
Ambas [lei e ordem] são criação das pessoas. Não são coisas que estão dadas; são construídas histórica, política e socialmente. E o que significa lei e ordem na sociedade brasileira: significa controle social.

AE — Mas e a sensação de impunidade? Como ela convive com as altas taxas de encarceramento? Não é contraditório?

RS — Bom, e porque existe a sensação de impunidade? Por várias questões. É uma situação difícil de explicar porque ela está baseada em algo real, que é o aumento dos crimes e o fato de que alguma pessoa próxima já foi vítima. Mas ela também está baseada um pouco na percepção equivocada das pessoas de que a criminalidade se encontra espalhada da mesma forma em todo lugar. Criminalidade tem a ver com uma série de fatores: territoriais, espaciais, horário, propensão ao crime, vitimização, faixa etária…
Em termos práticos, nós teríamos que pensar uma nova lógica para o sistema de justiça criminal, reformar todas as instituições. Precisamos de um modelo de polícia única, que faça todo o processo de investigação e atuação de campo para que ela seja mais efetiva. Precisaríamos também de um Ministério Público e de uma justiça criminal muito eficientes.
Beccaria, ainda no século XVIII, dizia o seguinte: “mais vale a certeza da punição do que a dureza da lei”. Não adianta ter leis duras se elas não são aplicadas efetivamente e de maneira isonômica para todos. Porque ela ser aplicada efetivamente para alguns e não para outros é outro fator que gera a sensação de impunidade.
Se não houver reformas com uma nova visão da justiça, em que a prisão seja vista como o último recurso para um grupo muito seleto, e que ela seja eficiente e a pena aplicada rapidamente, e a maioria dos crimes transacionados e acompanhados com efetividade pelo Estado a fim de que a pessoa não tenha estímulo para continuar praticando o crime, se nós não mudarmos nesse sentido, não se avançará em nada.

AE — O senhor aponta alguns caminhos, mas, concretamente, vê saída para o cenário atual?

RS — A curto prazo não. Nós temos um dos Congressos mais conservadores da nossa História, e é ele que produz as leis. Acompanhando essa falta de esperanças no Legislativo, temos uma justiça criminal encastelada: juízes que não conhecem a vida do povo, que vivem em tribunais que são verdadeiras redomas de vidro. Uma justiça seletiva, elitista. Sem falar no modelo policial repressivo e na sociedade que vê na vingança e na prisão a solução de todos os males. Então, como que isso vai gerar mudanças no curto prazo? Eu não vejo a mínima perspectiva.
Na Democracia e na vida em sociedade, as leis existem como regramento das paixões individuais. Se não houver a lei, eu faço o que quero e daí temos a sociedade do lobo contra o lobo, como dizia Hobbes. Portanto, as leis deveriam ser aplicadas e cumpridas, mas de maneira isonômica. Do contrário, o crime vira um atrativo em vez de ser um custo. Praticar crimes passa a ser um benefício: eu mato, eu roubo, eu faço extorsão, etc, afinal a maioria não fica presa. Não acontece nada…
Alguma saída é viável apenas com uma mudança cultural dos cidadãos, assumindo a sua responsabilidade pública de participação política e cobrança das autoridades. Ou seja, só quando tivermos uma sociedade mais democrática.
Entrevista: Luiz Gonzaga Oliveira
Ativista do ATOEFEITO, trabalha com jornalismo, teatro e
voluntariado, em geral.
Para impressões, perguntas e comentários sobre o texto, fale com ele:
luiz.ogonzaga@gmail.com | facebook.com/luizgonzagaobh

Nenhum comentário:

Postar um comentário