Em livro conhecido, talvez, de
numerosos estudantes de jornalismo, no Brasil, que carrega o título “Sobre
Ética e Imprensa”, a introdução diz: “a etiqueta é a pequena ética pela qual se
estrutura a gramática dos cerimoniais. Ela pacifica, erguendo-se pelos gestos
que representam, ritualizam-se e reafirma as relações sociais de poder: para o
rei, os súditos se curvam; do bispo, beija-se o anel; os talheres, sempre de
fora para dentro. A etiqueta cria um balé de sorrisos e saudações que celebram
a autoridade posta, traduzindo-se numa singular estética da conduta; extrai sua
beleza dos meneios em glória da hierarquia e do silêncio sobre o que se esconde
nas alcovas. Ela não se pergunta do poder. Ela não inquire – nem deixa
inquirir. Não por acaso, a etiqueta era o orgasmo social da aristocracia. Era a
reiteração de uma ordem que havia nascido para ser eterna, bem acomodada e
imutável” (BUCCI, Eugênio. Sobre Ética e Imprensa. Cia das Letras. São Paulo:
2002, p. 2-10).
Não se perguntam a maior parte das
pessoas que, quiçá seja uma maioria mesmo esmagadora, a moral dita e tão
alegada por si mesmas e a própria ética arrotada possa ser uma etiqueta que não
resiste à primeira prova de fogo. Falam dessa moral, dessa etiqueta, como boa
educação recebida dos pais. Ela se resume a questões basilares. Não posso
cuspir nos outros, devo dizer senhor, senhora, dizer bom dia, chegar cedo no
trabalho, respeitar as autoridades... e muitas outras coisas do mesmo gênero.
Como escreve Bucci, tudo feito para manter no imutável a ordem, sobretudo
quando envolve o poder. A constituição dessa moral, dessa etiqueta, se verifica
como uma estética burguesa que tende a um refinamento consequente e opressor
sobre quem não detém poder algum. Em nome do poder, a etiqueta vai sendo
imposta e sua linguagem dominada para fazer parecer que qualquer movimento em
contrário seja logo visto como falta de bons modos, não importa qual conflito
se esteja vivendo, quais jogos de interesses estejam sendo confrontados. E a
mídia tem hoje sua parcela decisiva de contribuição para reforçar esse “cheiro”
aspirado por toda parte, onipresente, de uma etiqueta bem formulada em “salões
de festas” nos dizendo quais livros ler, pessoas ver e admirar, respeitar,
venerar, bem ao modo como ilustrado em as Ilusões Perdidas de Balzac. A estes
reverenciamos com etiquetas e louvores.
Logo a moral de etiquetas etiqueta quem
precisa se comportar com etiqueta, quem logo será notado se não respeitar
decorosamente os rituais. Serve mais para alguns do que para outros. Serve para
o poder. Esconde facilmente qualquer barbárie, porque a etiqueta não sendo
ética, não tem profundida, vale pela formalidade epidérmica, se esconde em
aparências, distribui incenso a quem preside a morte em nome de belos valores,
como a defesa da família, e o hasteamento da bandeira do discurso de Deus sem
espiritualidade, baseada também unicamente na formalidade religiosa que impõe
regras, segregação, separação, ódio, sem a compaixão que aproxima, cria pontes
e enobrece o caminho humano. A etiqueta não está nem no limiar da ética. É só
um esboço fugaz e primitivo. Não supõe a regra de ouro: “não faça aos outros o
que não queres que façam a ti”. Está antes ainda. É só uma regra
comportamental. Não entra no íntimo do ser humano buscando mínima reciprocidade.
Só faz você olhar para o outro como um infrator. Não é essa a formalidade de que
a democracia está precisando.
Uma convivência só de etiquetas
transforma divergências em diálogos quase impossíveis e a democracia em algo a
se construir diuturnamente. Por isso numa república de etiquetas o fascismo é
aplaudido e não sabe separar o problema da corrupção da defesa dos direitos
humanos e de qualquer direito fundamental. Aqui está o problema. Com a moral da
etiqueta e dos bons costumes, da mulher bela, recatada e do lar, só com isso,
nenhuma democracia pode sobreviver. Com esse imaginário pobre, doente, comida
requentada de períodos anteriores às revoluções culturais do século passado
(que precisam de suas dosagens), sem assumir o pluralismo requerido pelas
sociedades modernas e autônomas, estamos sempre sujeitos a todas as formas de
golpe. O que hora acompanhamos tem repercussões culturais profundas no Brasil,
pois vem atingindo o conjunto da população de uma maneira avassaladora, dos
mais jovens aos mais velhos, inclusive de maneira insuspeita naqueles que não
imaginaríamos pudessem ainda ceder a esse tipo de feitiço.
A etiqueta é a “ética” das aparências,
do bom moço, da boa moça, dos que não dizem palavrões, que escondem suas
falácias em regimentos, que subjugam serviçais que também usam etiquetas e
sentem suas consciências serviçais apaziguadas. Não é a ética que caminhe com
processos democráticos. A ética dentro da vida democrática urge um Nelson
Rodrigues da sociabilidade, que desvele as mentiras da etiqueta, a desnude com
um beijo no asfalto.
Pe.
Magno Marciete do Nascimento Oliveira é presbítero da Diocese de Imperatriz –
MA, Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE),
pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima de Coquelândia e assessor diocesano
da Pastoral Carcerária.
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