Uma crise política se instala e agudiza quando uma combinação de fatores produz um clima a detonar disputas reais e simbólicas na sociedade. Na crise política brasileira atual, alguns elementos são mais ou menos evidentes. Em primeiro lugar, mas não necessariamente nesta ordem, temos os dilemas do chamado presidencialismo de coalizão: um arranjo político que demanda capacidade de produção de agenda e habilidade do presidente na articulação com outros poderes, principalmente com o Legislativo. Porém, o presidente não é o “dono do mundo” e o foco dos protestos direcionado à figura da atual presidente escamoteia a fragilidade de um sistema baseado, historicamente na política do toma-lá-dá-cá das elites políticas e econômicas, avesso aos princípios republicanos. É verdade que o estilo de governar de Dilma Rousseff amplia o problema. Mas, também é verdade que o projeto de governo que ela representa incomoda muito mais.
Para além da crise do presidencialismo de coalizão, há uma crise de representação, marcada pelo distanciamento entre representantes e representados, não somente no Brasil. Adicionem-se ao cenário, os limites da democracia representativa, os poucos e frágeis mecanismos de democracia direta e participativa, nossa cultura altamente individualista e pragmática, a criminalização da política pelos segmentos conservadores e oligopólios da mídia, a perversidade do mercado eleitoral via financiamento das campanhas, a burocratização e centralização partidária e o papel historicamente seletivo desempenhado pela mídia e pelo Judiciário em relação a questões como a pauta e o combate à corrupção.
Além desses, temos na configuração política brasileira elementos marcantes de uma longa tradição autoritária e elitista, a centralização unipessoal do poder, (principalmente no Poder Executivo), a concentração de poder nas mãos de elites políticas tradicionais (a facilitar o clientelismo, a corrupção e o desvio de recursos públicos), um sistema eleitoral defeituoso (principalmente pelo abuso do poder econômico nas eleições, má organização partidária - extinção, fusão, multiplicação ilimitada de partidos e legenda; fidelidade; partidos pragmáticos ao invés de programáticos), além de outras questões como a da desproporcionalidade da representação política dos Estados no Legislativo Federal; a baixa (ou a não) representação de segmentos sociais (indígenas, negros, mulheres) nos Parlamentos.
Tudo isso poderia ser objeto da insatisfação popular, derivando em demandas por reformas no sistema político e eleitoral. E isso seria muito saudável à democracia.
Porém, boa parte daqueles que vêm se manifestando nessas passeatas dominicais neste ano apresenta bandeiras a demandar justamente o oposto de tudo isso. Incomodados com a perda de privilégios históricos, segmentos das classes média e alta, saudosos de um passado ainda recente - que determinava lugares sociais para pobres, classe média e rica, qual sistema de castas -, apresentam pautas das mais conservadoras e retrógradas, como a volta à ditadura ou um governo exclusivo da Polícia Federal e do Ministério Público, sem Parlamento e Poder Judiciário. Isso é tão absurdo que chega à beira do ridículo.
Alguns simbolismos nas manifestações de 16 de agosto
Sociologicamente, observamos nesses protestos sinais de uma mentalidade excludente, de base ainda escravocrata: a ausência da população negra e de segmentos vulneráveis étnica, cultural e economicamente - como se tais segmentos sociais não importassem na formação da agenda pública -, denuncia a seletividade e os interesses dos manifestantes ou, na melhor das hipóteses, dos organizadores desses eventos. Se os protestos fossem representativos da sociedade, todos esses segmentos estariam presentes.
Outro sinal da cultura autoritária das classes média e rica é percebido nos muitos selfies dos manifestantes jubilosos junto a policiais, viaturas policiais e órgãos militares. Fica subentendido que, para esses segmentos, polícia boa é polícia para o controle dos pobres e dos movimentos sociais e para a proteção do patrimônio dos ricos. De novo, a defesa de privilégios e não direitos.
O virulento ódio estampado em cartazes a defender a morte, o assassinato e/ou suicídio de políticos mostra o nível da irracionalidade presente nos protestos. Pesquisas apontam que significativa parte dos manifestantes é composta por pessoas com ensino superior completo. O mesmo grupo que berrava impropérios contra a presidenta em cerimônias como a abertura da Copa do Mundo. São escolarizados e muito deseducados. Neste sentido, fica claro o fracasso do ensino superior brasileiro. Criado originalmente para a formação das elites formou, na verdade, uma horda de sectários raivosos.
A exibição maciça de camisetas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), uma entidade privada cercada de trapaças e falcatruas, cujo ex-presidente foi preso no exterior e os antigos e atuais mandatários não põem os pés fora do país com receio da mesma sina, mostra que esses segmentos não estão preocupados com o combate a corrupção. Muito pelo contrário, pesquisas mostram a tolerância em relação ao tema. Afinal, sonegação e roubo do erário público são práticas históricas das elites socioeconômicas quando ocupam o poder.
É muito simbólico, também, o fato de o principal líder da oposição no momento, o senador Aécio Neves, aparecer na Praça da Liberdade em Belo Horizonte. Esta praça passou por vigoroso processo de gentrificação no governo de Aécio, determinando um lugar social - que já existia menos ostensivamente -, para os seus frequentadores (a classe média da zona sul belo-horizontina). Aliás, essa praça tem um especial simbolismo com o que é a política elitista brasileira. Nela, o povo só é convidado para participar de cerimônias de bajulação das elites políticas da direita e da esquerda (ou alguém acha, por exemplo, que os marqueteiros que prepararam a posse de Pimentel pensam diferente daqueles que encenaram a posse de Aécio nas últimas eleições?). Quando o povo ocupa a Praça da Liberdade para protestar é solenemente recebido pelo cacete da Polícia Militar mineira. Trata-se da liberdade dos burgueses e liberais, que defendem com unhas e dentes os direitos civis e políticos, mas que detestam a igualdade, inscrita nos direitos sociais e coletivos.
Classe média e poder de vocalização de demandas
A classe média, que como já apontamos neste blog não foi convidada para o banquete da (pequena) distribuição de renda dos últimos anos, tem um imenso poder de vocalização e mobilização em torno de suas demandas. Por isso, seus protestos ganham tanta centralidade política e visibilidade midiática.
Sob o ponto de vista meramente numérico, suas manifestações são frágeis e pouco representativas.
Apesar de a mídia, sua principal porta-voz, tentar comparar o momento atual com as vésperas do impeachment de Collor de Melo, são duas realidades políticas, econômicas e culturais tão distintas que, somente torturando os números pode-se chegar a esse tipo de comparação.
O fato é que protestos e reivindicações fazem parte e são importantes para a democracia. O que causa estranheza é o discurso odioso e a total ausência de projetos políticos para o Brasil, tanto dos manifestantes quanto dos partidos de oposição.
Aparentemente, a preocupação não é com o bem-estar do povo, mas a defesa intransigente de privilégios e sectarismos de parte da população historicamente privilegiada. É por isso que, tão importante quanto o número de manifestantes ou o tom dos protestos, os elementos simbólicos devem ter centralidade na análise desses movimentos dominicais de protesto.
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