sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

CINISMO NACIONAL: o fracasso da segurança pública, a omissão dos governos e o silêncio da sociedade

"O ano de 2014 foi marcado pelo agravamento da crise da segurança pública no Brasil. A curva ascendente dos homicídios no país; a alta letalidade nas operações policiais, em especial nas realizadas em favelas e territórios de periferia; o uso excessivo da força no policiamento dos protestos que antecederam a Copa do Mundo; as rebeliões com mortes violentas em presídios superlotados, e casos de tortura mostram que a segurança pública no país precisa de atenção especial por parte das autoridades brasileiras." (Relatório da Anistia Internacional, divulgado em 26.02.2015).

Os problemas da segurança pública brasileira são reflexos de um legado político autoritário: uma engenharia político-institucional que conecta os dilemas da violência urbana atual ao passado da violência rural. 
As bases do sistema público de segurança (ainda) estão assentadas numa estrutura social historicamente conivente com a violência privada, a desigualdade social, econômica e jurídica e os “déficits de cidadania” de grande parte da população.
O medo derivado da violência urbana somado à desconfiança nas instituições do poder público encarregadas da implementação e execução das políticas de segurança produzem uma evidente diminuição da coesão social, o que implica, entre outros problemas, na diminuição do acesso dos cidadãos aos espaços públicos; na criminalização da pobreza (à medida que determinados setores da opinião pública estigmatizam os moradores dos aglomerados urbanos das grandes cidades como os responsáveis pela criminalidade e violência) e na desconfiança generalizada entre as pessoas, corroendo laços de reciprocidade e solidariedade social.

Justiça ou Vingança?
Todas as vezes que ocorre um crime a provocar grande comoção nacional, parte da sociedade brasileira – capitaneada por um discurso minimalista e conservador, com repercussão imediata na grande mídia –  clama por leis draconianas como lenitivo para diminuir a criminalidade violenta. Foi assim com a "criação" da lei de crimes hediondos, por exemplo. O resultado desse tipo de medida repressiva e pontual –  objetivando o adensamento do estado penal –  não apresenta resultado efetivo em termos de diminuição dos crimes.
É admissível e compreensível que, diante de um crime bárbaro, os parentes da vítima desejem vingança. Sob o ponto de vista privado, essa é uma prerrogativa do indivíduo; dos que sofrem a violência desproporcional de qualquer forma e estão sob o impacto dela. Porém, o Estado não tem essa prerrogativa. Considerando-se que o indivíduo pode, intimamente, desejar vingança (haja vista nossa cultura judaico-cristã, que valoriza os atos sacrificiais), o Estado –  mantenedor das conquistas do processo civilizatório, cuja base está na garantia dos direitos humanos –  não pode ser vingativo e passional em seus atos. 
A mesma indignação que move muitas pessoas a desejarem o recrudescimento penal (desde que seja sempre direcionado para o outro) em momentos de comoção não é mobilizadora frente à violência e carnificina generalizadas que atingem, cotidianamente, milhares de pessoas. No Brasil, a cada ano, são assassinadas cerca de 60 mil pessoas. Se somarmos as vítimas do trânsito (que tem se transformado numa guerra virulenta) esse número ultrapassa a casa de 100 mil vidas ceifadas anualmente. Numa década, são mais de um milhão de pessoas mortas por causas externas; o que significa que milhares dessas vidas poderiam ser poupadas.

A desarticulação estatal no enfrentamento da violência e do crime
Outra consequência do aumento dos crimes é que as agências encarregadas pela aplicação da lei (o sistema de justiça criminal: polícias, Ministério Público, Justiça, Sistema prisional) não se prepararam para o recrudescimento e a sofisticação da criminalidade, agindo quase que exclusivamente de modo reativo. 
Impunidade e morosidade são duas das características marcantes do sistema de justiça brasileiro. Condenação de homicídios, por exemplo, tem taxa de resolutividade inferior a 15% dos crimes praticados. Não adianta apontar o dedo somente para as polícias, atribuir responsabilidades para as políticas sociais, delegar funções de segurança para os municípios se o Judiciário e o Ministério Público não melhorarem sua eficiência e efetividade.
Num ambiente de insegurança e medo crescentes, as deficiências na política de segurança pública corroboram o enviesamento da solução: ao invés de se buscarem saídas na esfera pública (e política), governos e sociedade colaboram  para soluções no âmbito privado: a indústria da segurança privada cresce exponencialmente.

O legado da Ditadura
Como se não bastasse toda uma ordem político-institucional e cultural geradora da exclusão e do afastamento de grandes parcelas da população dos direitos de cidadania, o período ditatorial (1964 – 1985) acentuou o esfacelamento de uma cultura democrática em construção ao enfatizar o controle do Estado em relação às chamadas “classes perigosas”. Em boa medida, o conceito da “doutrina de segurança nacional” criado durante a Ditadura Militar continuou vigorando na estrutura de nossos sistemas estaduais e federal de segurança. Até meados da década de 1990, o modelo e as ações de segurança pública limitavam-se à contenção social, a partir do preceito de que “lei e ordem” públicas derivariam no uso da força, das armas e das ações policiais pela exclusiva via da repressão. Em síntese, segurança como “coisa de polícia”.
O autoritarismo, característico desse período, conjugou-se com práticas clientelistas e patrimonialistas - que remontam da formação social e política nacional – na conformação de um sistema público de segurança claramente a serviço de determinadas classes sociais, com o aval da legalidade dada por parte do Estado. Tal situação perdurou mesmo depois da promulgação da Constituição Federal de 1998.
Percebe-se que nas lacunas deixadas pelas políticas de proteção e promoção da cidadania, coube às corporações policiais, quase que exclusivamente, não só a intervenção, mas também a interpretação, com discricionariedade, de sua função social e de como tal função deveria ser exercida. A militarização da segurança pública – com uso excessivo da força policial e a lógica do confronto com o inimigo (muitas vezes encarnado na figura dos pobres e negros, em especial nos territórios periféricos e favelas) tem contribuído para a manutenção do alto índice de violência letal no país. 

"Os problemas da segurança pública brasileira são reflexos de um legado político autoritário: uma engenharia político-institucional que conecta os dilemas da violência urbana ao passado da violência rural."

Os impasses institucionais, principalmente aqueles relativos às alterações substantivas não efetuadas nas estruturas organizacionais das agências responsáveis pela execução das políticas de segurança (polícias, sistema prisional, judiciário, etc.), emperraram a possibilidade de mudanças estruturais – que seriam fundamentais para a superação dos velhos paradigmas que sustentam a política de segurança pública brasileira.
O resultado da falta de governança na segurança pública tanto no plano federal quanto nos estados pode ser assim sintetizado: (a) instituições policiais não conseguem superar os modelos tradicionais tanto de policiamento ostensivo, quanto de policia judiciária – o que pode explicar, em parte, os óbices para uma efetiva integração policial; (b) sistema prisional fundado na contenção dos detentos, com poucas condições objetivas de reinserção social dos presos; (c) política de enfrentamento das drogas é insuficiente, desarticulada e não responde à complexidade do tema; (d) Defensorias Públicas com ação limitadíssima pelo escasso número de servidores e alcance de suas ações; (e) baixa eficiência dos mecanismos efetivos e autônomos de controle externo das ações policiais; (f) falta de transparência dos dados de segurança pública; (g) ausência de participação social nos mecanismos de gestão e controle da política de segurança. 

Segurança Cidadã
Sob o ponto de vista conceitual, só muito recentemente tal política passou a ser entendida como direito de cidadania (superando fase anterior que tratava a segurança exclusivamente como política de controle social pelo Estado). A principal modificação foi-se constituindo a partir da assunção do conceito de segurança cidadã, que privilegia o papel da sociedade civil na relação com a política de segurança pública, velando pela observância das garantias fornecidas no âmbito do Estado de Direito e a busca da implantação de novos princípios e valores que fortaleçam a segurança democrática.
Dar novo conceito à segurança significa considerar que o centro da mesma é o cidadão. Entendida como um bem público, a segurança cidadã refere-se a uma ordem cidadã democrática e permite a convivência segura e pacífica.
Não obstante essa alteração na concepção e nas tentativas de implementação de novos paradigmas na política, as mudanças nas agências executoras da segurança pública foram pontuais. As estruturas e a cultura repressiva dessas agências do subsistema de segurança ainda rechaçam todo tipo de reformas. Ou seja, apesar da mudança na política, houve pouca (ou quase nenhuma) transformação nas ações de segurança pública, na ponta. Isso aponta para um delicado paradoxo: como as mudanças nessas agências foram incrementais, apesar das alterações no âmbito da formulação e da implementação da política, os velhos paradigmas sobre os quais foram erigidas as bases do sistema de segurança ainda se refletem, com evidência, nos elevados indicadores de criminalidade, nos desarranjos do sistema de justiça criminal, na desconfiança nas instituições desse sistema e na sensação de medo e insegurança que campeiam nas nossas cidades.


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